Marcelo pediu menos ruído. Costa fez ouvidos de mercador
Ao 11º estado de emergência, Costa e Marcelo claramente desentenderam-se. António Costa fez tábua rasa do decreto presidencial sobre o estado de emergência.
Só nos primórdios da pandemia é que Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa se desentenderam sobre o estado de emergência. Nessa altura, o Presidente da República queria apressar a declaração do estado de emergência, mas o primeiro-ministro achava que ainda era cedo, preferindo manter a normalidade democrática, sem pôr logo em causa a suspensão de direitos, liberdades e garantias.
Uma das razões que levava António Costa a considerar que ainda era cedo, escrevia o Publico a 16 de março, é que o estado de emergência tinha de ser renovado de 15 em 15 dias, “o que leva a um clima de sobressalto institucional durante um período que será longo e pode durar mais de dois meses”.
O estado de emergência não durou dois meses, dura há quase um ano. Se no dia 16 de março, Portugal tinha registo de 331 casos de Covid-19, hoje já vamos em 778.369 infetados desde o início da pandemia.
Marcelo Rebelo de Sousa acabou por levar a melhor e a verdade é que nas renovações dos estados de emergência que se seguiram não assistimos propriamente a nenhum “sobressalto institucional”. Muito pelo contrário, Marcelo e Costa estiveram sempre em grande sintonia. Se o decreto presidencial abria as portas a uma limitação da liberdade de circulação, no mesmo dia ou no dia seguinte o Conselho de Ministros aprovava e operacionalizava a medida. Se o decreto sugeria o encerramento de algum estabelecimento, logo a seguir saía um decreto-lei do Governo a densificar a vontade de Belém.
Se os decretos presidenciais pudessem ser vistos como um medidor do estado de saúde da relação entre Belém e São Bento, poderíamos considerar que o penúltimo, o de 28 de janeiro, já mostrava algum mal-estar, quando Marcelo fez questão de escrever que o Governo podia proibir ou limitar “aulas presenciais”, que é como quem diz que não podia proibir aulas à distância nos colégios privados.
Quinze dias volvidos, e com uma entrevista de Rui Rio à TVI pelo meio a pedir ao Presidente que fosse mais exigente com o Governo, o novo decreto presidencial para renovar o próximo estado de emergência saiu de Belém pejado de recados e sugestões, nomeadamente sobre as escolas. Isto numa altura de algum desgaste no Governo a que Marcelo naturalmente não quer fica associado.
No decreto, lia-se sobre as escolas, que “deverá ser definido um plano faseado de reabertura com base em critérios objetivos e respeitando os desígnios de saúde pública”. Na conferência de imprensa que deu após o Conselho de Ministro, António Costa fez tábua rasa desta sugestão. Questionado várias vezes sobre o assunto, o primeiro-ministro limitou-se a dizer que seria “prematuro falar sobre a reabertura das escolas”. E para que não houvesse dúvida repetiu mais tarde: “é extremamente prematuro”.
A irritação de António Costa para com Marcelo (não se sabe muito bem a propósito do quê) ficou patente quando os jornalistas questionaram o primeiro-ministro sobre a parte do decreto em que o Presidente escreveu que os espaços abertos, como os supermercados, deveriam poder continuar a vender livros. Costa respondeu, algo agastado, que “o senhor Presidente da República nos proibiu de proibir a venda de livros e material escolar nos estabelecimentos que se mantêm abertos”. A expressão “proibiu de proibir” deveria ser proibida numa relação sã entre Belém e São Bento.
Sobre a sugestão feita por Marcelo no decreto para o Governo “continuar a prever mecanismos de apoio e proteção social, no quadro orçamental em vigor”, António Costa respondeu com ar de grande enfado, afirmando que o Governo “continuará a adotar as medidas de apoio à economia à medida do que for necessário”.
Para terminar este momento de “sobressalto institucional”, Marcelo Rebelo de Sousa escreveu no decreto presidencial que “podem ser determinados níveis de ruído mais reduzidos em decibéis ou em certos períodos horários, nos edifícios habitacionais, de modo a não perturbar os trabalhadores em teletrabalho”.
António Costa foi confrontando três vezes pelos jornalistas sobre esta medida e da primeira vez ficou mudo, da segunda ficou calado e da terceira ficou em silêncio. Não se percebeu se por distração ou se por desprezo pela medida sugerida pelo Presidente da República.
Não é fácil interpretar o estado de animosidade de António Costa para com Marcelo Rebelo de Sousa. A verdade é que o dia terminou com o Presidente da República, em Belém, também um pouco a despropósito, a rejeitar crises políticas e eleitorais: “Não se conte comigo para dar o mínimo eco a cenários de crises políticas ou eleitorais. Já nos bastam a crise da saúde e a crise económica e social”. Não se percebe se está a atacar ou se está a defender o Governo.
O que já se percebeu é que Marcelo não quer eco, não quer ruído, não quer barulho. Costa está politicamente amuado, também não se percebe muito bem porquê, e faz questão de não baixar os decibéis. A boa vizinhança entre São Bento e Belém já teve melhores dias.
Há duas semanas, Marcelo deu uma entrevista ao humorista Ricardo Araújo Pereira, na SIC, em que explicou o segredo para uma boa relação com António Costa: “Cada um vive na sua casa; é uma relação institucional que pode ter momentos afetivos, mas não uma relação afetiva que pode ter momentos institucionais, e, como todas as relações humanas, tem momentos bons e momentos maus, só que não os traz a público. Portanto, resolve-se”.
Já se percebeu que estamos num daqueles “momentos maus”. Resolvam-no.
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