Multiculturalismo, assimilação, qual o modelo a adoptar? O Governo não sabe, mas sabe que o mundo mudou e que Portugal não voltará a ser o mesmo.

O governo legisla sobre a imigração. A política portuguesa é tomada de assalto pelo tema não por boas nem por más razões, mas porque a questão é talvez a mais visível no debate público. A visibilidade política garante a reputação de um “governo fazedor”, afirma a performance de um “governo transformador”, empenhado agora na organização e desenvolvimento de Portugal. A urgência do governo não diz nada sobre as suas prioridades políticas mais duras, mais persistentes, mais “reformistas”.

A questão da imigração surge no discurso político pelo descontrolo absoluto do sistema que deve regular a boa circulação dos indivíduos entre fronteiras. Para um liberal a circulação dos indivíduos deve ser livre e aberta pois existe uma “mão invisível” que regula os mecanismos internos ao processo. Quando os mecanismos internos falham, impõe-se o longo braço do Estado para restabelecer o equilíbrio. O liberal continua a ser um idealista assaltado pela realidade.

Para a esquerda, variada e socialista, a imigração é um direito humano e as fronteiras uma invenção do Estado enquanto expressão de uma governação ao serviço de uma classe social. Nesta perspectiva, a imigração é um desafio ao Estado e à organização da economia de mercado. Quando o acesso à cidadania é uma mercadoria que distingue vistos gold de imigrantes miseráveis, a cidadania deixa de ser um mecanismo de integração tornando-se efectivamente numa operação orquestrada de exclusão social ao serviço de uma oligarquia capitalista. Quem tem recursos adquire a cidadania, quem não tem recursos adquire um lugar na fila para aceder a uma senha. O que se verifica na realidade é que a aquisição da cidadania perdeu o seu estatuto emancipatório na sequência de um ideal cosmopolita que não existe. Nas suas circunscrições territoriais, a Humanidade é uma abstracção e não reconhece nem pratica o valor da igualdade – E o valor da igualdade distingue a esquerda de qualquer direita, clássica ou radical.

Neste sentido a ênfase à esquerda neste “contínuo humanista” é uma face da luta permanente contra o Estado ao serviço de uma classe social e contra a organização estabelecida de uma economia de mercado. Para a esquerda, resolver o caso da imigração é resolver as contradições internas ao Estado capitalista e estabelecer o Estado universal baseado no valor da justiça social.

Curiosamente um dos maiores argumentos a favor da imigração vindo sectores da direita mais clássica e liberal são as necessidades da economia. O inverno demográfico, a falta de trabalhadores para sustentar uma economia de mercado em crescimento, preocupa empresários e Governo. Logo a imigração não tem qualquer valor moral. A imigração é novamente um expediente pragmático para preencher os lugares em falta no “grande exército de reserva” de que falava Marx. A ideia de cidadania não tem mais uma vez qualquer valor emancipatório ou de reconhecimento da dignidade do outro. Tudo não passa de um cálculo estatístico baseado no desequilíbrio entre a oferta de trabalhadores a baixo custo e a procura de trabalhadores a baixo custo. É a realidade dos trabalhadores sazonais, convidados, invisíveis. O cerne da questão não está na imigração nem na integração, mas toda a preocupação está na maximização dos lucros e no benefício para a comunidade nacional. O argumento é hipócrita, as razões são puramente contabilísticas, o propósito é manter a distribuição da matriz de rendimentos controlada.

Ainda se acrescenta a referência aos “imigrantes com elevadas qualificações” como fonte para a inovação e a prosperidade económicas. Os imigrantes com elevadas qualificações têm acesso ao mundo desenvolvido e não se submetem às condições e aos salários que são oferecidos aos portugueses. Os portugueses são os imigrantes porque os imigrantes recusam ser os portugueses.

O que é verdadeiramente novo na Europa e em Portugal por extensão é a associação da motivação económica ao argumento nacionalista. A imigração é observada com base num critério étnico e cultural, o que transforma toda a discussão sobre a nova comunidade política. A obtenção da cidadania tem assim um critério exclusivista baseado num normativo legal, no respeito das leis e dos costumes, no domínio da língua, na observação de um modo de vida. A cidadania deixa de ser o ideal universal que a esquerda defende para se transformar no ideal comum de uma comunidade de destino que a direita defende. A direita radical identifica na imigração uma ameaça à cidadania nacional consagrada a partir de uma base étnica e cultural. É a clássica discussão entre o solo e o sangue.

O rasgão na Rua do Benformoso é uma cicatriz na consciência nacional. Multiculturalismo, assimilação, qual o modelo a adoptar? O Governo não sabe, mas sabe que o mundo mudou e que Portugal não voltará a ser o mesmo.

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Mentalidade imigrante

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