Mistérios de Marcelo
Marcelo reconhece que o cenário mais favorável à vida democrática é o da negociação dos Orçamentos entre o PS e o PSD, mas que tal é impossível em clima eleitoral.
A entrevista do Presidente da República é o começo de um novo ciclo com o espírito do velho ciclo. Numa versão mais colorida, Marcelo afirma ao País que esta é a primeira vez que cá vem desde a última vez que cá esteve. Politicamente não havia nada para dizer e nada de significativo foi realmente dito. Cumpre-se o ritual e alimenta-se a novidade no frenesim dos jornais.
No entanto, sendo Marcelo Presidente uma versão de Marcelo Analista, muitos comentadores encontram significados ocultos, avisos velados, ameaças futuras, promessas eternas, entre as sílabas que ficam nas entrelinhas das palavras que não são ditas. É um fenómeno politicamente interessante que Marcelo sempre explorou com habilidade e calculismo, procurando condicionar a acção política dos adversários com tudo o que não diz. O que conta é a presença e a palavra hábil para que cada um leia o que pode, o que entende, o que convém. O Presidente e o Analista têm a capacidade de serem Católicos e Maquiavel ao mesmo tempo.
Mas as palavras que são ditas informam os portugueses que o “Portugal dos Afectos” chama-se agora “Portugal Próximo Desconfinando”, qualquer coisa típica de uma reprise política só que com um título rebuscado e sem inspiração. Depois vem a ideia da pandemia a terminar, mais a crise económica e a nova palavra no léxico do Presidente com a necessidade de uma “reconstrução” que o País agora enfrenta. O Presidente não diz nem disse o que foi destruído em Portugal, tal como não identifica o sentido da reconstrução, se para Sul em direcção à Modernidade se para Norte em busca da Prosperidade. Nada. Não existe uma visão para Portugal depois do ciclo eleitoral que termina e começa em 2023. Demasiado pouco para os portugueses ficarem esclarecidos sobre as perspectivas para o futuro vindas do Jardim Maquiavélico de Belém.
Politicamente há um ruído entre a leveza do Presidente e o peso das palavras do Presidente. Os portugueses devem acreditar na pose ou nas palavras? As palavras afirmam que Portugal vive em clima pré-eleitoral, garantem que os Orçamentos serão aprovados por uma maioria de Esquerda ou por outro qualquer arranjo circunstancial, que o ciclo da reconstrução exige “estabilidade” sem aventuras políticas. A tese da estabilidade é uma tese que só vive pelo medo de um País irresponsável, ingovernável, politicamente lamentável. A estabilidade em Portugal significa estagnação, pouca política e muita administração. Mas sem política não existe Oposição e sem Oposição não existe alternativa democrática. O Presidente pretende um País previsível e medíocre ou a “crise” de uma democracia vibrante de propostas alternativas?
Na realidade, o Presidente é o mais alto Magistrado de uma Nação sem alternativa política, o Presidente de um País de uma nota só, o Presidente de uma Democracia sem alternância. Marcelo reconhece que o cenário mais favorável à vida democrática é o da negociação dos Orçamentos entre o PS e o PSD, mas que tal é impossível em clima eleitoral. Nesta negociação entre visões alternativas está o princípio da Oposição e o cerne da alternância. Esta impossibilidade faz de Portugal um País adiado. Esta impossibilidade transforma o País político num enorme comboio parado numa qualquer estação entre nada e coisa nenhuma. Quanto aos políticos, agitam-se em correrias fantásticas no interior das carruagens paradas convencidos de que estão em movimento para o Progresso. O Presidente tem a obrigação de promover um novo impulso e fazer recuperar a marcha da Nação. Marcelo está demasiado confortável com a proximidade e convivialidade de Costa. O fantasma de Soares devia passear mais pelos corredores de Belém.
Curiosamente, o Presidente da República exibe um “optimismo irritante” nas suas divagações em modo de entrevista. Tentando convencer o próprio Presidente ou os portugueses mais distraídos, Marcelo acredita no arranque da economia para além de todos as previsões nacionais e internacionais, uma visão sustentada na perspectiva de um Portugal parque temático para inglês ver, talvez mais uma questão de fé baseada no oráculo de Belém do que na realidade dos factos. A contabilidade faz-se no fim ou talvez não. O descolar da economia também conta com o Plano de Recuperação e Resiliência. De uma forma extraordinária, o Presidente não é capaz de dizer se o Plano é bom ou se é mau, limita-se a afirmar que é o “Plano possível”. Possível significa a ausência de alternativa, é o que é e logo se verá. A grande preocupação é a execução de tão grande influxo de recursos. Fantástico para um País que sabe gastar, mas que não sabe investir, quando o Presidente não tem uma ideia para Portugal no século XXI. Fica a referência de que o Plano tem as orientações da Europa, mais uma dominante perspectiva económica, mas que falta a dimensão “social” e “institucional”. Afinal, o Presidente parece pensar que Portugal precisa de uma reconstrução social e de uma outra reconstrução institucional. No fundo, a refundação da Democracia.
A entrevista teve lugar no Palácio de Belém, referido como o Palácio do Povo. A tinta lascada nas portas, os cortinados desmaiados, a película de pó sobre a mesa, o relógio parado bem ao centro, um cenário bem adequado aos “Vencidos da Vida”.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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