Editorial

O caso Marquês pode repetir-se?

No dia em que o juiz Ivo Rosa vai anunciar se Sócrates, Salgado e companhia vão a julgamento por corrupção, há uma pergunta incómoda. O caso Marquês pode repetir-se em Portugal?

Hoje é o dia de todas as decisões na Operação Marquês, isto é, é mesmo o primeiro dia do resto deste processo que não está “apenas” a julgar o antigo primeiro-ministro José Sócrates, Ricardo Salgado e mais 26 arguidos. Não é, nesse sentido, o dia decisivo, é mais um dia. Porque qualquer que venha a ser a decisão do juiz Ivo Rosa, e parece que se adivinha como mais provável uma acusação sem o crime de corrupção, o processo não acaba aqui, abre-se outro ciclo, seja ela o julgamento ou o recurso do Ministério Público da decisão do juiz. Por isso interessa(-me) mais o que significa este processo para a avaliação de um sistema político-financeiro que dominou o país e sobretudo o que fizemos desde então para que tal não volte a ser possível.

Este processo Marquês já dura há demasiado tempo — e como dizem os especialistas, Ivo Rosa transformou o processo instrutório num pré-julgamento, o que também explica este sentimento de dramatismo sobre o que vai anunciar hoje e os seus efeitos na credibilidade da justiça e dos políticos — e isso corresponde efetivamente a injustiça. Já se perderam as referências do que está em causa e tudo parece estar resumido a saber se José Sócrates vai ser ou não julgado por corrupção. Mas o que está em causa na Operação é muito mais do que isso. Se a acusação e eventual condenação de um ex-primeiro-ministro é muito grave, o julgamento e condenação de 28 arguidos entre os quais também estão os líderes do sistema financeiro e empresarial como Ricardo Salgado, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro traduzem outra coisa, um sistema extrativo que dominou o país e que contribuiu decisivamente para a bancarrota em que o país entrou em 2011.

Resta a pergunta: Seria possível voltar a repetir-se um caso como este, ou parecido, uma cumplicidade entre líderes políticos e financeiros, entre a elite política e empresarial, para dominar o país e enriquecer à custa da pobreza de todos os outros, da estagnação económica e da degradação social? A resposta não é óbvia, e isso é assustador. Não é óbvia porque o país continua a ter enormes problemas institucionais, que pareciam estar a ser corrigidos depois da intervenção externa, mas que entretanto foram postos em causa pela forma como o Governo decidiu substituir a procuradora-geral da república ou o presidente do Tribunal de Contas, com a cumplicidade do Presidente da República e a anuência do PSD.

Ao fim de seis anos de governo do PS, a ministra da Justiça apresentou um plano anti-corrupção. Seis anos. E curiosamente, é agora, num momento de decisão do juiz Ivo Rosa, que o PS e o PSD se entendem para acabar com os megaprocessos. E as vias verdes legais para facilitar a contratação pública com fundos comunitários, a bazuca que aí vem? O país estará hoje mais atento aos sinais, mais do que em em 2009 e 2010, há mais escrutínio e mais exigência, desde logo jornalística, mas isso não chega. Há um nível de supervisão financeira crescente, nomeadamente da banca a partir do BCE, mas isso também não chega.

Se é verdade que Portugal é hoje um país sem dinheiro, aflito para conseguir apoiar os mais atingidos por esta crise, também vive um contexto de crescente intervenção estatal, e logo de maior dependência dos agentes privados, das famílias e empresas, em relação a quem está sentado nos cargos de poder no Estado. Estas dependências nunca são positivas, mesmo quando são necessárias, como é o caso do momento atual, sobretudo porque quem tem poder ou o reforça raramente está disponível para dele abdicar logo a seguir.

Se o país tivesse uma cultura de liberdade, estaríamos descansados, porque esta crescente dependência do Estado seria temporária e seria revertida logo que possível. Mas os sinais que ouvimos e lemos todos os dias não são esses, nem do PS, que está no poder, nem do PSD, que quer lá chegar. Já vamos no 14º estado de emergência, por razões bondosas, a saúde pública, mas aceite quase sem discussão.

A presença do Estado está para ficar, diminui a liberdade individual e cria necessidades, ou tentações, e dependências, desde logo financeiras. São as condições perfeitas para o reaparecimento das redes, as redes clientelares que levaram a casos como a Operação Marquês

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