O Estado que não sabe que imóveis tem quer expropriar à vontade
Em 2009 uma portaria obrigou a uma inventariação dos imóveis do Estado. Sem sucesso. Mas o Estado sabe muito bem os imóveis que cada cidadão tem, a morada, os m2, idade do imóvel, se tem elevador.
O Parlamento aprovou esta semana a autorização que permite ao governo legislar sobre um “regime especial aplicável à expropriação e à constituição de servidões administrativas”.
O que é isto vai implicar? A simplificação dos processos de expropriação de terrenos ou com a constituição de uma servidão administrativa. Mas será também simplificado o acesso a uma justa e rápida indemnização aos proprietários expropriados? Nada disso. “Será dada primazia à declaração de utilidade pública, de seguida à posse administrativa e, só depois, por acordo com o proprietário ou por determinação do tribunal, será fixado o valor da indemnização”.
Portanto, quem tenha bens que se possam atravessar no caminho de próximos investimentos públicos que se cuide porque pode ficar sem eles sem saber quando ou por quanto vai ser compensado. Simplex para o Estado, Complex para os proprietários, esses malandros que têm o desplante de ter imóveis.
Todos sabemos que o Estado é tão ligeiro a querer pôr e dispor dos bens alheios como é absolutamente incompetente a gerir o seu próprio património.
Esta semana – estas coincidências não se inventam – tivemos mais uma homenagem a essa incapacidade.
Com a solenidade e gravidade que o assunto merece, o Governo aprovou em Conselho de Ministros “o decreto-lei que regula a realização do inventário do património imobiliário do Estado com aptidão para uso habitacional”. A ideia é “a criação de uma bolsa de imóveis do Estado para habitação, no âmbito do Programa de Estabilização Económica e Social” – preparem-se porque a partir de agora, seja para expropriar ou para comprar caixas de clips por ajuste directo tudo vai ser feito “no âmbito do Programa de Estabilização Económica e Social”.
Portanto, estamos em Setembro de 2020 e o Estado não conhece os imóveis que tem nem a sua finalidade ou uso potencial.
Mas sabemos que o Estado sabe muito bem os imóveis que cada cidadão ou empresa têm, a morada correcta de cada um, os metros quadrados, a idade do imóvel, a existência de elevador ou mesmo de ar condicionado.
Esta enorme competência do Estado em relação ao património alheio – que se deve ao uso, e bem, de ferramentas tecnológicas avançadas, eficientes e eficazes – está relacionado com três letrinhas, como sabemos: IMI, as iniciais de Imposto Municipal sobre Imóveis que rendeu ao Estado no ano passado cerca de 1.500 milhões de euros.
Mas o Estado desorganizado, lento, burocrático e quase sempre inimputável na sua incompetência é mesmo assim: tem a ferramenta dentro de casa, investe nela com os recursos dos contribuintes mas só sabe utilizá-la contra estes. O resto, fazer o que deve para uma gestão dos seus recursos públicos em benefício de todos, cai sempre em saco roto.
Valha-nos a confissão: “Temos dezenas de milhares de imóveis, grande parte sem utilização, falta fazer o inventário” foi o que disse Pedro Nuno Santos, Ministro das Infraestruturas e da Habitação no briefing desse mesmo Conselho de Ministros.
Estas “dezenas de milhares de imóveis, grande parte sem utilização” estão por lá há muito tempo. Ou presume-se que estejam, porque o dono nem isso sabe. E teriam dado muito jeito nos últimos anos, quando o aumento do turismo veio criar uma pressão na procura de imóveis e fazer subir os preços.
Nessa altura, como bem sabemos, gerou-se grande comoção política e uma série de iniciativas para tentar colocar no mercado casas que pudessem chegar a quem as procura a preços mais baixos.
E quando se foi à procura de imóveis adivinhem para onde é que partidos, deputados e governo olharam? Obviamente, para os malandros dos privados que têm casas e não as querem arrendar ou vender a preços que permitam que a classe média possa aceder a elas nos centros de Lisboa e Porto.
Leia-se aqui (Fevereiro de 2019):
“Nós pretendemos tornar incomportável manter prédios devolutos”. Ah sim? Menos os do Estado, claro. Isso dá muito trabalho.
Ana Pinho, que acaba de sair do governo, pelo menos ainda ficou a tempo de descobrir que afinal o Estado tem “dezenas de milhares de imóveis, grande parte sem utilização”, como disse o “seu” ministro. Que pena não ter sabido disso antes, há uns quatro ou cinco anos, a tempo ainda de cumprir com recursos do Estado – de todos nós, entenda-se – uma parte da política de habitação cujo ónus atirou, como sempre, para cima dos malandros dos proprietários privados. Sim, estes são uns criminosos que têm casas vazias por aí. Já o Estado, com “dezenas de milhares de imóveis, grande parte sem utilização” é sempre, por definição, uma pessoa de bem.
Mas no reino da inimputabilidade política e da gestão do património público tudo é possível.
Poder-se-á pensar: isto é um problema novo, que surgiu há poucos anos com o aumento do turismo – o tal que diabolizámos mas do qual já temos saudades, não é?
Calma que não é bem assim. “Realização do inventário do património imobiliário do Estado”? Mas onde já ouvi isto no passado?
Não é difícil de descobrir. Site da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, património imobiliário. Área de legislação.
Sem vos querer maçar demasiado com isto, que é tudo muito aborrecido:
- Com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 162/2008, de 24 de Outubro, o Governo aprovou o Programa de Gestão do Património Imobiliário Público (PGPI) para o quadriénio 2009 -2012, o qual estabelece as medidas e procedimentos de coordenação a efectivar na administração dos bens imóveis do Estado, tendo em conta as orientações da política económica e financeira, global e sectorialmente definidas.
- Com a Portaria n.º 34-A/2009 de 15 de Janeiro foi criado, na dependência do membro do Governo responsável pela área das finanças, o Conselho de Coordenação de Gestão Patrimonial, ao qual compete coordenar e acompanhar a execução do Programa de Gestão do Património Imobiliário do Estado.
- Com a Portaria n.º 95/2009 de 29 de Janeiro foi determinada a inventariação dos bens imóveis e os direitos a eles inerentes do Estado e dos institutos públicos, “destinando-se a assegurar o pleno conhecimento dos referidos bens imóveis, abrangendo, designadamente, a seguinte informação:
- a) Identificação;
- b) Situação jurídico -registral;
- c) Classificação;
- d) Natureza;
- e) Localização;
- f) Estado de conservação;
- g) Entidade que ocupa;
- h) Caracterização do pessoal que trabalha regularmente no imóvel;
- i) Propriedade/situação do imóvel;
- j) Tipo de valor;
- l) Tipologia e dimensão dos espaços e áreas ocupados.
Onde está então este inventário? Alguém se importa de o fazer chegar ao ministro Pedro Nuno Santos?
Isto foi há dez anos mas já havia decisões semelhantes anteriores. Podia continuar a mostrar a embriaguez de leis, portarias, resoluções, decisões, anúncios solenes, constituição de comissões e conselhos – a propósito, que trabalho produziu o tal o Conselho de Coordenação de Gestão Patrimonial e quanto custou? – que se seguiu a isto. Resultado? Zero. Ou melhor. Resultado? Novo anúncio, novas leis, novo “desta vez é que é”.
E não, não é por falta de recursos. Além da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças – que desde 2016 deixou de publicar os relatórios trimestrais sobre o património imobiliário do Estado, obrigação que deve decorrer de uma qualquer lei que não está a ser cumprida -, o Estado tem uma empresa pública dedicada só ao imobiliário.
É a Estamo, detida pela Parpública, que tem como objecto social “a compra, venda de imóveis incluindo a revenda”, a “administração e arrendamento de imóveis” e bla bla bla.
Se não sabem como se faz podem, por exemplo, perguntar à Administração Tributária como se mantém uma base de dados de imóveis. Como a tutela ministerial é a mesma e tudo já viram como é fácil arranjar os contactos para falar com eles? Podem sempre pedir ao ministro que dê uma palavrinha.
E que tal juntá-los todos a uma mesa para trocar umas ideias sobre o assunto?
Poderia também participar o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado que “foi criado há quatro anos com o objectivo de requalificar património do Estado e criar habitação a preços acessíveis. Governo autorizou que Fundo de Estabilização da Segurança Social investisse até 1400 milhões de euros. Quatro anos depois, a Fundiestamo não fez obras num único fogo.” (notícia de Julho deste ano do Público)
Como se vê, os resultados alcançados têm sido inversamente proporcional aos anúncios, verborreia legislativa, entidades metidas a barulho e soluções financeiras e contabilísticas pouco transparentes e ineficazes – pelo menos para os fins que são anunciados porque se são eficazes para outro tipo de objectivos é outra coisa.
É apenas um exemplo da enorme bagunça que reina em muitas áreas do Estado. É um exemplo entre muitos que por aí proliferam.
Este tem um custo económico e social muito elevado. Basta pensar em quantos organismos do Estado não estão a ocupar espaços arrendados – e a pagar rendas chorudas a fundos privados, alguns até abutres, quem sabe – com outros imóveis do Estado devolutos duas ruas ao lado.
Mas os vilões desta história serão sempre, como sabemos, o sr. Manuel e a D. Maria que se reformaram e foram viver para a terra e decidiram que não vão arrendar o apartamento T2 que acabaram de pagar ao banco porque os netos podem precisar dele quando forem para a faculdade em Lisboa.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico.
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