O mal de Mao

Mao lançou a campanha das Quatro pragas, agora o Bloco de Esquerda quer suspender o alojamento local em Lisboa. Recomendo-lhes as publicações dos Censos.

Em 1958, Mao Tsé-Tung lançou a Campanha das Quatro Pragas. Moscas, mosquitos, ratos e pardais: eram estes os quatro animais (irracionais) que Mao queria exterminar. Os três primeiros por questões de higiene. Os pardais porque comiam as sementes; ou seja, eram uns pássaros capitalistas que privavam o povo dos frutos do seu trabalho. De modo que o povo foi incentivado a aniquilar os pardais, para que nem o primeiro milho fosse para eles. E o povo foi bastante eficaz, quase os conseguiu extinguir.

Sucede que os grãos eram a parte dos hidratos de carbono das refeições dos pardais. A proteína, eles iam buscar aos insectos. E, por isso, quando aqueles pássaros quase desapareceram, gafanhotos e outros bichos que tais proliferaram e deram cabo da produção de arroz. Em Abril de 1960, o governo chinês percebeu isso. Para poder manter o nome da campanha, trocou os pardais por percevejos como alvo a abater, mas já era demasiado tarde: mais de 30 milhões de pessoas morreram de fome. O Grande Salto em Frente foi um grande salto para o abismo.

Lembro-me frequentemente desta história pela sua eloquência na ilustração de como decisões, quiçá bem-intencionadas, podem produzir efeitos devastadores e até contrários ao propósito que as motivam, quando não se estudam bem os problemas e todas as relações envolvidas, quando não se consideram todos os efeitos directos e indirectos. E espero que quem está encarregado de pensar políticas públicas não a ignore.

Lembrei-me desta história no outro dia, quando li que o Bloco de Esquerda quer suspender o alojamento local em Lisboa, que acusam de estar a expulsar os habitantes do centro de Lisboa.
Sem a missão de bater em panelas para não deixar a passarada pousar e assim a matar de exaustão, há que encontrar outras formas de entretenimento. Bem que as pessoas do Bloco de Esquerda podiam divertir-se no site do INE. Recomendo-lhes as publicações dos Censos. Consultá-las permite ficar ciente de que as freguesias que constituem as zonas do Centro e do Centro Histórico passaram, no seu conjunto, de mais de 610 mil residentes em 1960 para pouco mais de 245 mil, em 2011.

Nesse conjunto de quarenta freguesias (com referência à organização de 1959), não há uma que em 2011 tivesse ganhado população face a 1960. Se o contraponto for 2001, encontramos nove em que o número de moradores cresceu. Todas as outras mantiveram a trajectória de declínio. Por exemplo, a do Castelo conseguiu perder ainda mais 40% dos seus ocupantes; Encarnação, Pena, Santiago, Santo Estêvão, São Paulo e Sé tiveram decréscimos superiores a 20%.

Portanto, ainda que a Baixa, a Graça ou a colina de Santana hajam perdido habitantes durante a última década – afirmação para a qual não há dados estatísticos a confirmar (ou a desmentir) –, não se encontra aqui nenhuma inversão da tendência dos últimos 50 anos, em que a cidade se foi esvaziando de gente a morar nela, sendo as casas convertidas em escritórios, em consultórios, em sedes de organizações várias (onde se incluem partidos e sindicatos). De modo que responsabilizar o alojamento local pela expulsão dos habitantes do centro de Lisboa é teoria a carecer de factos. Nem opinião informada chega a ser. É mais uma questão de fé. Ou fezada, vá.

Mas mais. Nem só de população residente nos falam os Censos. Eles também versam sobre habitação. Para além das frequentemente citadas estatísticas sobre prédios devolutos e/ou em elevado estado de degradação, há um quadro que mostra que, nas freguesias de São Miguel e de Santo Estêvão, 23% dos imóveis tem uma área útil inferior a 30 m2. São nove as freguesias onde esse escalão representa mais de 10% do parque habitacional; se considerarmos casas um pouco maiores, até 40 m2, passamos a contar vinte e três freguesias em que pelo menos 10% do stock residencial é dessa dimensão.

Eu sei que uma pessoa vai ao Ikea, vê aqueles simulacros de apartamentos com 25 m2, com ideias geniais de arrumação e de aproveitamento de espaço, e até lhe apetece trocar o seu T2 por um cafofo. Mas vamos ser realistas: a maioria de nós não consegue que a suas coisas caibam em tão pouco espaço, pois não? Nem com a ajuda da Marie Kondo. No entanto, para servir de alojamento temporário a quem vem com uma mala que a companhia low-cost garantiu não ser mandada para o porão, aquelas casas, em ruas estreitas onde os prédios distam dois metros do da frente, estão perfeitas.

Quer-me, pois, parecer que os pardais do alojamento local não comem as sementes da habitação no centro de Lisboa. Mas, mesmo que as debiquem, olhemos para o retrato mais geral.
Em Dezembro de 2018, a Direcção-Geral do Património Cultural lançou a Revista de Museus. Para o primeiro número, escolheu o tema “Museus e Turismo” (e curiosamente a capa tem um priolo, que os não especialistas em Ornitologia poderão facilmente catalogar de pardal). No artigo em estilo de editorial, Álvaro Domingues afirma: “Quaisquer que sejam os caminhos para cruzar relações entre museus e turismo, facilmente vamos desaguar na conclusão de que o turismo é muito importante para os museus tal como o inverso. Não se ganha muito em atirar um contra o outro”.

Museus ali bem pode ser uma sinédoque de cultura, um dos sectores que mais beneficiam da presença de turistas. Mas também os transportes, a construção ou o comércio: o turismo tem enormes ligações a outras actividades económicas, seja porque estas são fornecedoras do sector do alojamento e restauração, seja porque os turistas são consumidores de variados bens e serviços nos destinos que visitam.

Por isso, a relação entre turismo e crescimento económico tem recebido alguma atenção dos académicos, com a grande maioria dos artigos científicos a concluir que a actividade turística é promotora do crescimento económico.

Numa revisão de literatura sobre o tema, Juan Gabriel Brida, Isabel Cortes-Jimenez e Manuela Pulina confirmam esta relação, mas também notam que diferentes segmentos do turismo têm diferentes impactos. E o segmento do alojamento local está cheio de turistas que privilegiam as experiências de autenticidade e que são adeptos da economia da partilha; ou seja, é um segmento que só em parte se constitui como substituto dos empreendimentos turísticos convencionais, até porque um dos motivos para a sua escolha é encontrar numa casa comodidades que não se vêem num quarto de hotel. É um segmento com aquele tipo de turista que as pessoas identificam como sofisticado e desejável. E que vai em boa medida desaparecer, se o alojamento local acabar. Como o arroz com o sumiço dos pardais.

Isso mesmo revelam vários artigos, como o de Daniel Guttentag, Stephen Smith, Luke Potwarka e Mark Havitz. Olhando para padrões comportamentais, Iis Tussyadiah e Juho Pesonen demonstram que os hóspedes do alojamento local têm estadas mais longas e participam em mais actividades de lazer. Por isso, a ideia de que o segmento está associado a menores receitas para o destino é contrariada num estudo do Banco Mundial, onde são referidos vários benefícios do alojamento local, tais como a capacidade de atrair novos mercados, a sua dispersão geográfica ou o menor impacto ambiental. Além de ser uma fonte de rendimento para os anfitriões, muitas vezes a fonte de rendimento que lhes permite conservar os seus imóveis.

Por outro lado, num país como Portugal, que durante tanto tempo dedicou uma parte tão grande do PIB ao sector imobiliário, o alojamento local veio trazer o adjectivo “produtivo” a esse investimento. Investimento produtivo e virado para a exportação.

Um artigo recente, publicado em Março na Tourism Economics, da autoria dos portugueses João Pedro Ferreira e Pedro Ramos e de Michael Lahr, usou Lisboa como objecto de estudo dos efeitos do alojamento local. Baseando-se em três cenários possíveis em termos de dinâmicas demográficas, aqueles autores chegam sempre à mesma conclusão: globalmente, o aumento de alojamento local gera ganhos. A distribuição destes é que difere geograficamente consoante o cenário. Naquele em que população activa é “expulsa” do centro, Lisboa participa menos nos benefícios, reflectindo a actuação das forças centrífugas e centrípetas de Krugman. O que não é minimamente preocupante para quem sabe que Portugal não é só a capital.

Acho que este pardal come muitos insectos devoradores de colheitas. Mas a Câmara de Lisboa prepara-se para o atacar, restringindo as novas licenças em sete bairros da capital, o que é uma óptima forma de proteger da concorrência quem já está no mercado, garantindo-lhes que poderão praticar preços acima dos que vigorariam se houvesse livre entrada (as chamadas rendas excessivas). E a medida é tão mais incompreensível, quando estamos prestes a realizar um novo recenseamento, que nos fará um retrato muito preciso da realidade em termos de população e de parque habitacional. Dados que deviam estar na base das políticas públicas que implementamos. Afinal, é para isso que montamos uma operação como os Censos: para dispormos de informação que nos ajudem a saber a que aves apontar.

No já mencionado artigo da Revista de Museus, Álvaro Domingues, citando Umberto Eco, diz: “Ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afrontá-lo, o nosso valor. Portanto, quando o inimigo não existe, há que construí-lo”. Estranhamente, a Esquerda elegeu o alojamento local como seu inimigo. Eu apelo a que não matem o pardal.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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