O Orçamento e a Menina do Balão Vermelho
Tal como Banksy no leilão, o Ministro das Finanças só está preocupado com o imediato no curto-prazo, desprezando os efeitos intencionais e centrando toda a atenção na etiqueta com o preço e nos likes.
Há uma contradição constitutiva em cada Ministro das Finanças — todos querem equilibrar as contas e ir para o céu ao mesmo tempo que drenam todo o dinheiro possível e impossível dos bolsos dos constituintes. Quando uma sociedade entra na espiral destrutiva da despesa, no vórtice do défice, na vertigem da dívida, o Orçamento apresenta-se como a narrativa da salvação, uma espécie de novela ou romance da identidade da nação.
Através da escrita ficcional de um Orçamento criativo, o país atinge o zen próprio da paz de espírito no meio do caos das nações da Europa, uma voz oceânica tangencial à superioridade política e à excentricidade financeira. O Ministro das Finanças torna-se num avatar social, a figura que partilha do sentimento e dos valores da nação, não um técnico em tons de cinza, mas um artista de todos as almas na profusão de um dégradé de cores.
O Orçamento remete a atenção mais circunspecta para o leilão da Sotheby’s onde foi vendida a obra da autoria de Banksy intitulada “Girl with Ballon” pela módica quantia de 1,4 milhões de dólares. No momento exacto em que a obra é licitada, a tela desliza e passa por um dispositivo oculto na moldura que a recorta em tiras paralelas. No vídeo no Instagram, a imagem da operação apresenta a seguinte legenda de Bakunin, atribuída a Picasso: “The urge to destroy is also a creative urge”. Há qualquer coisa de Schumpeter nesta legenda, fazendo fé na frase do economista quando este se refere ao capitalismo como o exercício da “destruição criativa”. Sendo assim, Banksy destrói a sua obra para precisamente valorizar a mesma obra, transformando-a num objecto único produzido no instante preciso da venda no mercado livre e aberto.
Confirmando a tese, Banksy já autenticou a nova obra produzida pela destruição do original, agora com o novo nome de “Love is in the Bin”. Na lógica cínica da maximização do lucro, esta operação equivale ao oportunismo financeiro de quem joga hoje o valor de amanhã. Na lógica cínica da maximização da virtude, esta operação equivale à acção típica de um ‘hedge fund’, iludir o nível de conhecimento e perícia para investir na performance sem risco, no momento. O que está em causa na operação financeira não será o activo físico da obra de arte, mas o activo virtual do acontecimento. Convém relembrar que as redes sociais são instâncias produtoras de valor, uma colecção de plataformas de informação em busca permanente de notícias e acontecimentos. Sem uma teoria do valor, o valor é determinado pelo número de ‘likes’ e partilhas no volátil mundo virtual da imaterialidade permanente.
O Orçamento é o leilão anual dos recursos de um país. Dos recursos próprios e dos recursos comprados a crédito no grande bazar da dívida. A tentação para maximizar os recursos próprios e minimizar os recursos próprios adquiridos é um exercício clássico da ficção orçamental. O Ministro das Finanças passeia o seu talento livre dos escrúpulos da imparcialidade através de um documento que recorta em tiras as diversas camadas de constituintes. Promete justiça e virtude no discurso, mas apresenta um exercício cínico e calculista para manipular as escolhas no mercado político. Tal como Banksy no leilão, o Ministro das Finanças só está preocupado com o imediato no curto-prazo, desprezando os efeitos intencionais e centrando toda a atenção na etiqueta com o preço e nos ‘likes’ na guerra política virtual. Do alto do menor défice dos últimos 40 anos, o Governo não se livrou, ainda assim, de receber uma carta de Bruxelas a alertar para inconformidades.
Fica a sugestão para uma medida original e transparente a ser concretizada pelo Ministério das Finanças e denominada “Orçamento de Estado – Novos Horizontes”. Em todo o território nacional tornar disponível a presença de um holograma do Ministro disponível para responder com verdade a todas as perguntas dos portugueses. “Acredita na política do Euro-Grupo?”; “Seria capaz de aplicar este Orçamento sabendo que ainda seria Ministro das Finanças em 2023?”; “Escolha um tema – acha que as palavras do Primeiro-Ministro são para levar a sério?”; “Ainda acredita em milagres?”. Deste modo o Ministro das Finanças seria o profeta do futuro, desmaterializado e ready-made para as redes sociais.
Em questões de Orçamento o Ministro das Finanças começou por ser a menina do balão vermelho para acabar em tiras e no lixo sem o amor dos portugueses.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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