O primeiro de uma nova série de perdões?

Quem é que não gostaria de ver as suas dívidas acomodadas por via administrativa!? Seriam muitos votos, certamente.

Há muito que era pedido e ontem foi finalmente anunciado: o Presidente norte-americano, Joe Biden, vai promover um perdão de dívida sobre empréstimos destinados a financiar estudos universitários. O perdão será de 10 mil dólares por devedor que hoje aufira rendimentos até 125 mil dólares por ano e deverá beneficiar milhões de antigos estudantes.

Segundo estimativa avançada pela imprensa, a medida beneficiará 43 milhões de indivíduos dos quais 20 milhões poderão ver as suas dívidas dos tempos académicos completamente eliminadas. A medida é abrangente, ainda que para já restringida aos empréstimos promovidos por entidades públicas federais, prevendo ademais uma majoração do perdão até 20 mil dólares por indivíduo no caso de pessoas de menores rendimentos. Mas a medida está longe de ser consensual. Mais ainda, muitos questionam-se sobre o alcance da mesma. Será este o primeiro de muitos perdões de dívida numa altura em que nunca houve tanta dívida no mundo?

Os empréstimos estudantis são questionáveis. A educação é uma espécie de bem público, pelo que o seu financiamento através do Orçamento do Estado faz sentido. Este é o entendimento que em geral observamos na Europa continental, não obstante os diferentes modelos de oferta (público ou privado) em exibição nuns e noutros países. Por outro lado, algumas das melhores universidades do mundo permanecem no mundo anglo-saxónico onde, de um lado e doutro do Atlântico, se tem promovido o conceito dos empréstimos estudantis (“student loans”) ainda que beneficiando de financiamento público e de bolsas de estudo privadas à mistura. Na Europa o acesso à educação superior é dado como adquirido. No mundo anglo-saxónico representa um investimento. Isto dito, aos olhos de um europeu continental, não deixa de causar espécie que alguém, tendo concluído a sua licenciatura, carregue depois uma dívida que facilmente pode atingir as dezenas ou até centenas de milhares de dólares ou de libras. Só nos Estados Unidos os empréstimos estudantis representam 1,6 triliões de dólares (escala longa)!

A medida de Biden não é pacífica. Muitos no Partido Democrata pediam um perdão bastante maior, ao passo que no Partido Republicano critica-se a iniquidade da medida em relação àqueles que já saldaram as suas dívidas. Ambas têm o seu fundamento. Todavia, é na crítica dos Republicanos que poderá estar o rastilho de medidas futuras com alcance ainda maior. De facto, a medida é injusta para com aqueles que já saldaram as suas dívidas. É também injusta em relação àqueles cujos “student loans” não estão enquadrados sob programas de financiamento promovidos pelo governo federal. Além disso, o argumento da iniquidade pode também ser transportado para outros tipos de crédito. Por exemplo, estarão as pessoas que têm créditos à habitação, cujas taxas de esforço têm vindo a ser agravadas pela aceleração do mercado imobiliário (por sua vez, possivelmente o resultado da acção de entidades como a Reserva Federal), a ser tratadas de forma desigual? O que fazer a estes devedores? E os Estados? Será que a dívida soberana de países como Portugal, Grécia ou Itália é sustentável?

O assunto da reestruturação creditícia está de volta. No âmbito soberano, a valorização do dólar e o conflito entre a Ucrânia e a Rússia estão já a provocar danos por esse mundo fora. No âmbito empresarial, com o cenário de recessão a ganhar plausibilidade, para lá caminhamos. E no plano pessoal, a subida das taxas de juro e a perda de poder de compra por via da inflação também não ajudam. As dinâmicas são pouco favoráveis em todos os domínios institucionais e mesmo que a inflação contribua para desinflacionar todo o endividamento a que se assiste, algumas reestruturações acabarão por ser feitas à bruta. Desta vez não será diferente! Ainda que desta vez a banca pareça estar mais forte para enfrentar a eventual intempérie, os bancos não ficarão imunes ao problema geral de excesso de endividamento que, globalmente, o mundo exibe. Mas desta vez a iniciativa de cancelar a dívida, em vez de resultar do colapso financeiro, poderá partir propositadamente da agenda governamental e operada através de medidas mais “elegantes”.

Há uma ideia que tem feito caminho nos círculos de poder nos últimos 20 anos. Chama-se “helicopter money” – imaginem um helicóptero a lançar notas do ar para o público em êxtase em baixo. A estratégia funcionaria da seguinte forma: através de uma devolução fiscal em benefício dos contribuintes, feita pelo Tesouro, a partir de dinheiro criado do nada pela Reserva Federal (que seria directamente creditado na conta do Tesouro).

Este esquema evitaria o efeito negativo das imparidades de crédito e o custo político dos resgates bancários. Mas, por outro lado, adicionaria à pressão inflacionista pela criação monetária que implicaria. Onde é que quero chegar? À constatação de que a armadilha de endividamento em que o mundo se encaixotou não permite a subida das taxas de juro para níveis demasiado elevados nem a saída “tout court” dos programas de expansão monetária. A inflação, quando excessiva, é um mal. Mas, para muitos decisores de política, a tentativa de sair da armadilha de endividamento na secretaria (e através da inflação) poderá vir a revelar-se politicamente tentadora.

Quem é que não gostaria de ver as suas dívidas acomodadas por via administrativa!? Seriam muitos votos, certamente.

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