O que dizem as entidades independentes do OE2024?

A proposta de OE2024 revela uma consolidação orçamental conjuntural, que resulta de uma cobrança recorde de impostos, baixo investimento público e serviços públicos em colapso, apontam a UTAO e CFP.

O Orçamento do Estado (OE) é sempre analisado por duas instituições de grande credibilidade e competência: a UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) e o CFP (Conselho de Finanças Públicas). Os dois relatórios saíram no passado dia 25 de outubro.

Comecemos pelo documento da UTAO. O relatório salienta o equilíbrio das contas públicas, mas, como sublinhei aqui na análise ao OE24, a redução do saldo estrutural desde 2016 resultou da descida da despesa com juros. O défice estrutural, em 2015, era de 2% PIB. A despesa com juros em 2015 era de 4.5% PIB e será de 2.3% em 2024. Ou seja, a redução de dois pontos percentuais (pp) do PIB no défice estrutural resulta apenas do efeito da diminuição da despesa com juros, fruto da política monetária do BCE. O gráfico abaixo mostra como teria evoluído o défice estrutural, se a despesa com juros se mantivesse ao nível de 2015 (com tudo o resto constante).

Como também referi no artigo anterior, isso é visível no Saldo Primário Estrutural que, entre 2015 e 2019, manteve-se praticamente inalterado, e que em 2024 será ainda inferior a 2019.

Mas a UTAO salienta outros pontos muito relevantes. Primeiro, que “há uma reflexão coletiva de fundo que a sociedade precisa fazer acerca da orientação da política económica em geral no médio prazo”. Como tenho dito muitas vezes, desde 2000 que a discussão económica em Portugal tem estado demasiado centrada nos temas do défice orçamental e da dívida pública, e menos, como devia, no crescimento económico, na reforma do Estado e na eficiência da despesa pública. As Finanças Públicas são apenas um instrumento das políticas públicas. Contas públicas equilibradas, do ponto de vista estrutural, e uma dívida pública baixa é uma condição necessária, mas não suficiente, para um desenvolvimento económico e social sustentável.

O equilíbrio estrutural das Contas Públicas significa que, em períodos de expansão económica, a política orçamental deve ser orientada para superavits orçamentais nominais (aproveitando o efeito do ciclo económico nos estabilizadores automáticos – aumento da receita fiscal e redução do desemprego). Em períodos de recessão, a margem orçamental deve ser usada (novamente) numa política orçamental contra-cíclica (com estímulos orçamentais e deixando os estabilizadores automáticos funcionarem). Para isso, é preciso que, em períodos de crescimento económico, a divida pública se reduza (e tenha um valor baixo em percentagem do PIB), para que depois, em períodos de recessão, haja margem para acomodar uma política orçamental expansionista (contra-cíclica).

Também tenho defendido, desde há muito tempo, a necessidade de se criar um “consenso orçamental”, por forma a garantir que as Finanças Públicas deixam de ser o principal tema de discussão e de preocupação.

Para além da dívida pública e da política orçamental contra-cíclica, o “consenso orçamental” impacta também na equidade intergeracional. Ao acumular défices e dívida pública, estamos a obrigar as gerações futuras a pagarem mais impostos (ou eventualmente a nossa própria geração mais à frente no tempo). Ora, com um saldo orçamental equilibrado, a despesa teria de ser toda financiada com recursos gerados no presente, e não com recursos a serem criados no futuro.

Só um “consenso orçamental” de Finanças Públicas equilibradas permite fazer a verdadeira escolha que se impõe numa Democracia: Que tipo de Estado queremos?

O “consenso orçamental” não é um debate monolítico sobre Economia e sobre as funções do Estado. Pelo contrário, é exatamente esse consenso que nos permite fazer escolhas enquanto sociedade. Se a maioria da sociedade portuguesa optar por um modelo com mais Estado, muito bem, teremos então de ter uma carga fiscal mais elevada. O que não podemos é querer ter mais despesa e deixar parte dela para as próximas gerações pagarem (até porque as grandes obras públicas, cuja utilização dura décadas, estão em grande medida feitas). Se, pelo contrário, a maioria da sociedade quiser impostos mais baixos, teremos de adequar a despesa pública a essa decisão.

Assim, é fundamental fazer a Reforma das Finanças Públicas (da Administração Financeira do Estado), por forma a criar regras para uma Política Orçamental com a orientação do equilíbrio estrutural. E, sobretudo, dotar o Estado de uma gestão financeira, patrimonial e de recursos humanos moderna, tornando a despesa pública mais eficiente.

A UTAO enfatiza: “Convém a sociedade e o poder político debruçarem a sua atenção sobre alguns desafios estruturais que impendem sobre o modelo de especialização produtiva do País e a qualidade dos serviços coletivos prestados aos cidadãos e às empresas”.

Porém, a UTAO deixa ainda vários alertas sobre o OE24 que vale a pena ter em atenção.

  • O primeiro é que, em 2023-2024, a economia portuguesa terá um crescimento do PIB real acima do PIB potencial. Isto apesar de em 2023 a economia crescer 2.2% e em 2024 somente 1.5%. Estes dados resultam do facto de Portugal ter um PIB potencial muito baixo, inferior a 1.5%. Essa é a medida da baixa produtividade e competitividade da economia, e a razão pela qual Portugal não consegue ter, desde 2000, um crescimento económico robusto e prolongado no tempo.
  • O segundo aspeto está no ponto 48 do sumário executivo do relatório. A UTAO explica que a redução do défice de 2022 para 2023 e para 2024 (e os superavits que serão atingidos nas previsões do governo) resultam de dois efeitos: um forte aumento da receita fiscal e uma retirada das medidas de apoio às famílias e às empresas relativas à inflação. Alerta ainda que a retirada dos estímulos orçamentais respeitantes às medidas transitórias de mitigação dos efeitos da inflação e da pandemia é quase absorvida por novas medidas de efeito permanente. Em termos conceptuais, assiste-se à troca de despesa transitória por despesa permanente (no valor de 2,3 mil M€, ou seja 0,8% do PIB). Portanto, a redução do défice é toda feita à custa de mais receita fiscal, agravando-se a despesa estrutural. Num contexto de desaceleração económica ou mesmo de recessão, os efeitos desta política não deixarão de acarretar consequências negativas.
  • O terceiro ponto está relacionado com o PRR. Diz a UTAO que volta a adiar-se a implementação do PRR, um atraso persistente que poderá comprometer as previsões de receita e despesa constantes do OE, que reviu novamente em baixa a execução do PRR em 2023, em 1,5 mil M€, face ao programado no Programa de Estabilidade apresentado em abril. Refira-se que o PRR valerá cerca de 2 mil M€ de investimento público, ou seja, 0.8% PIB. A previsão de investimento público do governo é de 3.3% do PIB. Mas, como a execução têm ficado entre 20% a 30% abaixo do previsto no OE, se o governo em 2024 executar 2.7%-2.8% do PIB, sem PRR teremos um valor próximo, ou mesmo inferior, a 2% PIB.
  • Isto liga com o quarto alerta. Desde 2012, o investimento público líquido de amortizações é negativo. Ou seja, há mais de 10 anos que o investimento público não repõe a depreciação do stock de capital. Por outro lado, o investimento público que se tem realizado é, em grande parte, financiado com verbas Europeias.

A UTAO faz também fortes críticas ao anúncio, que é meramente propaganda, do fim das cativações (*). O OE, ao contrário do anunciado pelo Ministro das Finanças, não elimina as cativações, que continuam num valor de 824 M€. Apenas procede a uma descentralização da sua gestão. Veremos como a circular da DGO sobre a execução orçamental e o decreto-lei de execução orçamental tratarão esta matéria. É verdade que, no OE, aparenta haver uma redução do crivo do Ministro das Finanças, mas veremos como isso se operacionaliza.

Outro aspeto que o relatório foca é a evolução dos rendimentos em Portugal, sobretudo do PIB per capita. Em 2000, o PIB per capita português era 72.3% da média Europeia (e 62% da média da zona Euro). Passados quase 25 anos, em 2023, é de 67% e 61%, respetivamente. Ou seja, face aos restantes países da União Europeia, em termos relativos, somos hoje mais pobres do que há 25 anos. E face aos nossos parceiros da zona Euro estamos iguais.

No ano 2000, éramos o 15º país da União Europeia em PIB per capita em paridades do poder de compra, com 85% da média da UE. Em 2022, éramos o 21º (ou 22º se considerarmos a ultrapassagem pela Roménia esperada em 2024), com 77% da média da UE. Pior do que nós, só a Letónia (74%), Croácia (73%), Grécia, Eslováquia e Bulgária. Considerando que a Letónia prevê um crescimento para 2024 de 2.8% e a Croácia de 2.4%, a continuar assim não demorarão muito a ultrapassarem Portugal.

Sobre o IUC (escrevi sobre este tema na semana passada), a UTAO refere algo que subscrevo: “Com a adoção da medida “atualização faseada do IUC”, conjugada com a medida de despesa “incentivo ao abate”, o MF manifesta a intenção de influenciar o comportamento dos consumidores na aquisição de viaturas “mais amigas do ambiente”. No entanto, a atualização faseada do IUC não deixa de ser uma medida que penaliza a posteriori os proprietários de veículos antigos — quando os veículos matriculados após 2007 foram comprados, os proprietários já sabiam que teriam de contar com a componente ambiental no IUC, situação que não sucedeu com os proprietários dos veículos agora atingidos por esta alteração fiscal.”

A UTAO também faz, mais uma vez, uma reflexão sobre como o processo orçamental se tornou absurdo, com o regime de propostas de alteração. Falarei disso em breve.

Já o relatório do Conselho das Finanças Públicas (CFP) começa por salientar a natureza pró-cíclica da política orçamental no OE24 e como isso é um erro. Adicionalmente alerta que o “fundo” que o Ministro das Finanças quer constituir com os excedentes de 2023 e 2024 viola a Lei de Enquadramento Orçamental (artº 21 e 25) e que os excedentes devem ser canalizados para a redução da dívida pública. O CFP diz algo similar ao que referi anteriormente sobre o “consenso orçamental” e a necessidade de reforma das Finanças Públicas e da Gestão Financeira do Estado (**).

O CFP faz também uma análise do impacto das alterações no IRS no OE24, com a conclusão que são os segmentos da população de rendimentos mais altos aqueles que vão beneficiar das mudanças. Os maiores beneficiários estão entre o 5º e o 9º decil de rendimento. A redução do IRS concentra os benefícios, não apenas em valor absoluto, o que seria normal, mas em termos relativos, entre o 5º e o 9º decil. No 1º decil a redução do imposto é de 1.4%. No 4º decil é de 5.8%, mas no 8º decil é de 8%.

Em síntese, uma consolidação orçamental conjuntural, que resulta de uma cobrança recorde de impostos, baixo investimento público e serviços públicos em colapso.

(*)

“A continuação das cativações em 2024, ainda que sem o poder de veto da área política das Finanças quanto à sua libertação, parece esquecer o elevado custo administrativo das entidades públicas e das tutelas indispensável para, primeiro, colocar cativações no orçamento inicial e para, depois, conseguir a libertação das dotações e as consequentes alterações orçamentais. Tanto antes, quando a autorização política do MF era indispensável, como doravante sem a mesma, os obstáculos permanecem, embora sem a fricção do passado com o MF. E permanece a falta de transparência e legitimidade associadas às cativações (…) Se se quer limitar a despesa, é mais transparente e mais barato assumir isso mesmo nos tetos de despesa propostos ao Parlamento para aprovação.”

(**)

“A capacidade para criar um espaço orçamental sólido que permita essa gestão cíclica da política orçamental reflete, por fim, a capacidade de combinar, de forma virtuosa, políticas estruturais orientadas para o crescimento económico (hoje também associadas a objetivos transversais de sustentabilidade ambiental e social) com políticas de melhoria institucional acomodatícias das primeiras. Entre nós, tarda em concretizar a reforma do sistema orçamental em articulação com a (tão almejada) reforma da Administração Pública.”

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