O que espera Bruxelas para abrir o processo contra o novo défice de França?
Se a Comissão Europeia não aconselha o Eurogrupo a agendar uma decisão inicial sobre a abertura de um PDE contra França perderá toda a autoridade e minará a credibilidade do euro.
O mundo não está para previsões carregadas de certezas que os factos desmentem. A natureza do mundo da globalização e da digitalização é precisamente a possibilidade de prevalecer o imprevisível.
Outra coisa é procurar verificar as tendências. Nesse aspeto, impressionou-me a declaração, esta semana, de David Lipton, o número dois do FMI e por muitos considerado o garante dos interesses dos EUA no Fundo. Olhando para o estado da economia global, ele veio dizer mais ou menos isto: vejo os astros conjugarem-se para uma nova crise global para a qual, de resto, nem os países nem os bancos centrais se prepararam convenientemente.
Se a declaração é meramente tática — começou a negociação da nova distribuição de quotas no FMI e a organização acha que precisa de mais financiamento — peca por excessiva e causa danos de confiança; mas pode ser que a declaração seja um ato de realismo num período em que ser pessimista talvez seja o modo preferível de continuar a ser realista. As previsões catastrofistas não costumam confirmar-se; mas lá que há crescentes sinais de preocupação, isso há.
Como será, tendencialmente, o ano de 2019? O que devem esperar ou recear os empresários e os investidores, os consumidores e os trabalhadores? E já agora os desempregados e os que vão entrar no mercado de trabalho? Somemos dois ais dois para ganhar luminosidade global.
Comecemos pela Europa em que quase todas as previsões se alimentam de revisões em baixa. Esta semana, os governadores dos bancos centrais de França e da Alemanha (e também de Espanha com valores ainda assim acima de 2%) vieram dizer que nenhum dos dois países crescerá mais do que 1,5% este ano, bem abaixo das expectativas iniciais; e confirmaram que em 2019 as duas grandes economias do euro ficarão novamente abaixo dos 2%. O que é bastante menos do que o previsto (no caso de Espanha o regulador espera uma desaceleração para 2,2%).
No caso de França, parece haver um grande impacto da crise dos coletes amarelos — não apenas impacto direto, mas sobretudo efeito na confiança e sobre a viabilidade da presidência Macron; é essencialmente o reflexo económico de um modelo que já não dá mais de si. Uma dívida pública a chegar aos 100% do PIB (com as medidas de Macron chega mesmo e até passa), uma despesa pública que representa no total cerca de 55% do Produto e uma pressão fiscal bárbara (impostos mais contribuições) superando em muito a média europeia e chegando à casa dos 48%, eis a equação impossível que Macron nem aflorou no seu discurso.
São fardos pesados demais que oneram a competitividade de França.
O caso da Alemanha é outro: segundo o respetivo banco central, registou-se uma diminuição sensível da produção de automóveis em virtude das alterações das regras quanto às emissões poluentes; e uma queda previsível das exportações, tendo em conta que a Alemanha é dos países que mais sofre com a subida das tensões comerciais mundiais, sendo, como é, uma economia exportadora altamente dependente, por razões diferentes, dos mercados americano e chinês. Estes dois impactos conduzem a uma expectativa modesta de crescimento.
O terceiro fator vem da Ásia e mais precisamente do Japão. Passou discreta a revelação de que a economia nipónica — que tem um estado de anemia prolongado e que muitos pensam ser estrutural — voltou ao crescimento negativo (menos 0,6% no terceiro trimestre). É difícil estabelecer um ciclo quando o sobe e desce é tão pronunciado como tem sido no Japão (primeiro trimestre negativo, segundo bom e terceiro muito mau). Se porventura o quarto trimestre confirmar a tendência de contração, a terceira maior economia do mundo ficara à beira da recessão.
A China, quando entrou na OMC, deveria ter sido convidada a instituir um sistema estatístico credível e homologável. Não aconteceu assim no meio da euforia global — de modo que agora as economias desenvolvidas do Ocidente (e outras) andam meio às cegas quando analisam o desempenho chinês. Convém lembrar que China não tem nada parecido com o INE ou com o Eurostat, para falar em entidades que o público português conhece. É o Politburo do Comité Central do Partido Comunista que governa a República Popular da China que fixa os objetivos e posteriormente emite os dados estatísticos que permitem fazer leituras aproximadas ou interpretações próximas da verdade.
É certo que as autoridades de Beijing têm feito um esforço de aproximação a parâmetros internacionais, mas o facto é que o sistema estatístico é ainda muito politico e pouco independente. São as regras do jogo. Para o que conta, o que se ficou a saber esta semana é que a China reconhece estar a crescer menos por causa da guerra comercial: sendo líder mundial na exportação de bens a China é uma economia muito exposta a uma crise comercial; soube-se também que a produção industrial caiu com intensidade e há rumores de que o indicador ‘oficial’ de crescimento do PIB poderá estar, no final do quarto trimestre, mais perto dos 6% do que dos 6,5% projetados já como curva decrescente controlada. Em ternos chineses, essa queda — a verificar-se — é severa.
E, finalmente, os Estados Unidos da América. Está toda a gente à espera dos resultados do quarto trimestre, mas há alguns indicadores avançados que são menos brilhantes — sobre a tendência em baixa nas várias classes de activos; ou sobre o imobiliário; ou ainda sobre a venda de automóveis. Mas atenção: os Estados Unidos estão a crescer sem interrupção há dez anos e os últimos dois — fenómeno acentuado pela reforma fiscal de Trump — foram mesmo francamente muito bons se considerarmos o crescimento do PIB; a redução do desemprego; ou os indicadores de confiança e bom clima de negócios. Há portanto margem para ajustar, contrair ou desacelerar — se for o caso americano.
O problema é a conjugação dos astros e a espessura crescente de uma ideia de que — globalmente — alguma coisa pode suceder (os motivos variam muito, desde o impacto do protecionismo até à fragilidade das moedas de alguns emergentes ou potencias médias). Em geral o pressentimento negativo começa ou acaba numa crise da e na confiança.
De momento, 2019 parece ser um ano para opções prudentes. Não é um ano para grandes audácias ou riscos. De todos os ‘astros’ principais da economia global nenhum parece entrar em 2019 em melhor forma do que iniciou 2018. A leitura política é óbvia: há risco de uma moderação do crescimento global, o que não se conhece é a medida dessa moderação…
Talvez o sinal mais indicativo desta tendência seja a súbita distensão (precária e provisória — mas já é um avanço) entre os EUA e a China. Uma de duas ou as duas ao mesmo tempo: a China pode estar com maiores dificuldades do que confessa (na guerra comercial com os EUA é óbvio que a China tem mais a perder); ou então tanto os EUA como a China chegaram à conclusão de que a escalada da crise comercial está a delapidar perigosamente a confiança global, o que no final do dia prejudica ambos. Neste último caso seria uma interessante fórmula de dissuasão mútua.
Sobre a penosa rendição — no sentido político — de Macron com a França sitiada pelos ‘gilets jaunes’, está quase tudo dito. Falta acrescentar um detalhe que é um ‘pormaior’. Enquanto a Itália decidiu subtilmente baixar o défice proposto de 2,4% para 2,04% (de modo a fazer abortar o processo de sanções) Macron decidiu fazer disparar o défice francês de 2,8% para 3,5%. Ou seja, acima da regra (e do esforço) dos 3%.
Aguarda-se o momento — que já tarda — em que a Comissão Europeia aconselha o Eurogrupo a agendar uma decisão inicial sobre a abertura de um PDE (Procedimento por Défice Excessivo) visando a situação orçamental de França. Se o não fizer ou se o fizer tarde de mais, Bruxelas perderá toda a autoridade e minará a credibilidade do euro…
Nota: A opinião de Paulo Portas é publicada com base no ‘Global, o comentário semanal no Jornal das Oito da TVI, ao domingo.
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