O que se passa com o Brexit?

A saída do Reino Unido demonstrou as “vistas curtas” da Comissão e de outras instituições da UE, e dos governos nacionais, e confirmou a tendência de concentrar poder na burocracia de Bruxelas.

Na semana passada recebi alguns comentários sobre o artigo que escrevi relativo aos efeitos do Brexit e a impossibilidade de se fazer uma primeira avaliação. Esses comentários mostram que no continente europeu continua enraizada a convicção de que o Brexit foi um erro e de que os próprios britânicos estarão arrependidos de terem saído da União Europeia.

Essa convicção é formada por notícias que nos chegam através da comunicação social e por comentários de diversa índole, que vão sempre naquele sentido e não admitem contraditório. Mas assenta também na dificuldade que as pessoas têm em aceitar posições contrárias, especialmente quando vão contra as suas convicções mais profundas ou abalam as bases em que assenta o seu pensamento. No caso da UE, onde os portugueses acreditam ser mesmo importante estar, dificilmente é aceite que haja outros povos que não queiram a mesma coisa.

A “teimosia” em não querer perceber o ponto de vista dos outros resulta de uma espécie de “dissonância cognitiva” que afecta os espíritos lusos e de outros países. As pessoas preferem acreditar que os únicos que ainda não condenaram o Brexit são radicais isolacionistas anti-imigração, básicos ignorantes das Midlands ou idosos saudosistas do império britânico. Os últimos irão envelhecendo e morrendo, e os primeiros não contarão para um futuro regresso por serem demasiado ignorantes ou muito radicais.

Então o que se passa com o Brexit? O que se passa é que o tema está “congelado” no Reino Unido e os defensores do regresso à UE – onde se incluem BBC, “The Economist”, “Financial Times”, “The Guardian” e outros – não estão contentes com a situação.

O “Financial Times”, fiel à sua pertença ao “lobby” pro-UE, fez recentemente uma tentativa para reavivar o tema. Apresentou uma reportagem em que algumas empresas britânicas se queixavam do aumento da burocracia para exportar para a UE. O que o jornal nunca disse foi que a reposição das fronteiras no formato actual foi uma imposição da própria UE, na tentativa de garantir que os britânicos não beneficiariam com a saída.

Se houve aumento da carga burocrática para a exportação de bens ou de serviços do Reino Unido para os países da UE, ou maior controlo de passaportes, foi porque Bruxelas e os estados nacionais assim o quiseram, não foi por opção britânica. Os britânicos nunca o quiseram, note-se bem, mas a Comissão Europeia a isso obrigou. Incrivelmente, a reportagem do FT opta por deixar implícito que a responsabilidade é das autoridades britânicas.

Mas a principal mensagem da reportagem era a queixa de que a classe política britânica não abordava a saída da UE. O seu objectivo foi tentar recuperar o tema para as próximas eleições para não o deixar morrer e para tentar forçar a discussão sobre um futuro regresso. Uma agenda política explicita de um jornal que se deixou embalar pelo activismo intolerante que hoje envenena as sociedades ocidentais.

É extraordinário como é que uma parte da comunicação social perdeu completamente a noção do que é razoável e tente forçar a discussão de um tema cujos efeitos concretos ainda não são conhecidos porque passou pouco tempo desde que os britânicos saíram da UE. Pior ainda, que tente forçar a discussão de um tema muito fracturante na sociedade britânica, que provocou acesas disputas dentro de famílias, dividiu comunidades, separou partidos em fações opostas e promoveu lutas políticas e legais entre políticos, funcionários públicos e tribunais.

Discutir o Brexit com razoabilidade

Isto não quer dizer que o tema do Brexit não deva ser discutido. Deve, mas é preciso primeiro perceber os seus efeitos para que essa discussão seja útil. A forma como a imprensa está a tentar forçá-lo na opinião pública apenas servirá para provocar mais acrimónia e discussão sem qualquer utilidade.

Essa discussão deve ser alargada e abranger toda a sociedade, e não deve ser limitada aos ‘mandarins’ que tentaram bloquear o Brexit e à população supostamente “evoluída” e “sofisticada” de Londres, a única relevante (como assumia implicitamente um dos comentários que recebi) porque é muito favorável ao regresso à UE e porque comunga dos ideais de uma Europa unida e de um futuro federal, em que todos seremos cidadãos da mesma polis.

Parte da própria população “sofisticada” de Londres partilha desta visão, mas muita também se recusa a aceitar uma perspectiva que vai contra as suas convicções enraizadas. Acontece que os nove milhões que habitam Londres têm cabeça e ideias próprias, e não são carneiros que se deixam sonolentamente conduzir, como a imprensa os tende a apresentar.

Para isso contribui o facto de 41% da sua população ser estrangeira e não ter nascido no Reino Unido. Desses, 350 mil são indianos, 135 mil da Nigéria e com mais de 100 mil nacionais residentes estão, por esta ordem, Itália, Polónia, Bangladesh, Paquistão e Roménia. No total há 54 países com mais de 10 mil nacionais residentes em Londres, incluindo 36 mil portugueses.

A ingenuidade em se achar que as pessoas do Bangladesh, da Nigéria, do Paquistão ou da Índia são adeptos fervorosos do regresso do Reino Unido à UE tornou-se uma verdade indesmentível na comunicação social pró-UE e nos respectivos comentadores. Mas é falsa.

Os adversários do Brexit tentaram criar expectativas muito elevadas junto da população para que a saída se viesse a revelar um falhanço. E em parte conseguiram-no porque muitas pessoas esperavam que a saída limitasse a imigração ou reduzisse a burocracia, só para dar dois exemplos. O governo britânico falhou nestas duas matérias e as pessoas interrogam-se legitimamente sobre a vantagem de ter de volta o controlo (“take back control” foi a principal mensagem do Brexit) se o governo se revela incapaz de alterar os resultados das políticas.

Mas mesmo os que inicialmente foram mais renitentes em aceitar o Brexit por terem medo das deslocalizações dos bancos e das sociedades financeiras para o continente, como os profissionais do sistema financeiro (a indústria mais importante em Londres), já perceberam que isso não vai acontecer.

A “City” de Londres não se desmembrou apesar de todas as ameaças de Bruxelas, de Paris e de Frankfurt no sentido de “transferir” os mercados financeiros. Londres continua a ser o maior mercado bolsista (e o sexto do Mundo) e o maior centro de operações de compensação da Europa. Algumas empresas novas estão a preterir Londres como mercado de cotação, mas estão a ir para os EUA e não para a UE. E Londres continua a ser o maior mercado mundial de câmbios, com uma quota de 31%, não tendo perdido essa posição por causa do Brexit.

A “City” de Londres não se desmembrou apesar de todas as ameaças de Bruxelas, de Paris e de Frankfurt no sentido de “transferir” os mercados financeiros. Londres continua a ser o maior mercado bolsista (e o sexto do Mundo) e o maior centro de operações de compensação da Europa. Algumas empresas novas estão a preterir Londres como mercado de cotação, mas estão a ir para os EUA e não para a UE. E Londres continua a ser o maior mercado mundial de câmbios, com uma quota de 31%, não tendo perdido essa posição por causa do Brexit.

A discussão deve abranger também a performance económica e as relações comerciais. A performance económica britânica nos últimos anos não foi famosa, apesar de ter sido melhor do que a alemã ou do que a francesa. Mas não será indiferente a este resultado o facto de o Reino Unido ter sido o primeiro país do G7 a diminuir as suas emissões de carbono para metade, uma opção com custos económicos significativos que coincidiram no tempo com os do Brexit e da pandemia.

As mudanças no comércio e os obstáculos criados no acesso ao mercado único da UE tiveram consequências. O comércio externo do Reino Unido em bens e serviços cresceu 21% entre 2019 e 2022, apesar dos custos da transição energética e dos choques da pandemia e do Brexit. Mas o crescimento do comércio foi maior para o resto do Mundo (27%) do que para a UE (14%), confirmando as dificuldades burocráticas que a reportagem do FT apresenta. As exportações aumentaram 21% para fora da UE e as importações 33%.

Esta reorientação do comércio externo britânico para outros pontos do Mundo resultou, em parte, dos acordos de comércio assinados a seguir ao Brexit, com mais de cem países, e de parcerias como a assinada com os países da ASEAN. E sucedeu apesar de acordos importantes com a Índia e com os EUA, por exemplo, não terem sido assinados. A outra razão foram as barreiras colocadas pela Comissão Europeia nas trocas com o Reino Unido, que prejudicaram também países que aquela entidade deveria estar a defender.

A liberalização do comércio sempre foi um valor promovido pelos britânicos precisamente pelas vantagens que traz. A reorientação do comércio externo britânico para fora da UE provocou situações de criação de comércio, que beneficiam o Reino Unido e outros parceiros no exterior, e de desvio de comércio, que prejudicam Reino Unido e países da UE. Por isso, e ao contrário do que o leitor possa pensar, este menor crescimento nas trocas com a UE não é só uma perda para o Reino Unido, mas é também para vários países da União.

Para além disso era Londres que fazia avançar a concretização do Mercado Único nos serviços, actividades que representam 80% das economias desenvolvidas. Com a saída do Reino Unido, o funcionamento do Mercado Único passou a integrar medidas protecionistas, sob o chapéu de “projetos de interesse europeu comum” e “auxílios estatais”, em que o elemento comum é a promoção de campeões nacionais, impulsionada por França, Alemanha e Itália. A ideia de que a concorrência beneficiaria os povos da UE perdeu relevância na Comissão Europeia.

Alguns leitores poderão perguntar qual o interesse deste tema para Portugal? O interesse é muito grande porque o nosso país foi afectado de uma forma muito negativa pela saída do Reino Unido. Não pelo comércio bilateral, que até aumentou, mas pelo maior protecionismo e risco de perda de soberania. Esta não será certamente a perspectiva dos que recusam a hipótese de a decisão do Brexit ter sido a mais adequada para os britânicos.

A saída do Reino Unido demonstrou as “vistas curtas” da Comissão e de outras instituições da UE, e dos governos nacionais, e confirmou a tendência de concentrar poder na burocracia de Bruxelas à custa da legitimidade nacional. Em Portugal são muito poucos os que reconhecem esta realidade.

 

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

O que se passa com o Brexit?

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião