O regime excecional de reequilíbrio financeiro dos contratos – quando as regras mudam num jogo que vai a meio
Está lançada semente em terreno fértil à litigiosidade. E pode bem dar-se o caso de a colheita se vir a fazer de numerosíssimos processos que se arrastarão anos a fio nos nossos tribunais.
No passado mês de abril, a escassos dois dias do término do período de estado de emergência, foi publicado o DL 19-A/2020, de 30/04, que estabeleceu um regime excecional e temporário de reequilíbrio financeiro de contratos de execução duradoura em que são parte o Estado ou outras entidades públicas. Aplica-se a uma pluralidade de tipologias contratuais que apresentem caráter duradouro, incluindo às prestações de serviços, fornecimentos de bens e concessões.
O DL 19-A/2020 veio implementar, em matéria de execução de contratos públicos, a suspensão do exercício dos direitos de propriedade e de iniciativa económica privada prevista nos decretos presidenciais que renovaram a declaração de estado de emergência. Nesse contexto, procedeu à suspensão do direito dos contraentes privados a verem reposto o equilíbrio financeiro dos seus contratos pelo período compreendido entre os dias 3 de abril e 2 de maio. Já fora do quadro de emergência, o mesmo diploma veio limitar a concretização do direito à reposição, com fundamento em quebras de utilização ou em razão da ocorrência da pandemia, à modalidade única de prorrogação do prazo de execução das prestações ou da vigência do contrato. O propósito parece ser o de acautelar a posição do contraente público, numa lógica de repartição de sacrifícios, evitando o pagamento dos montantes correspondentes a direitos compensatórios dos contraentes privados.
Do ponto de vista formal e material o DL 19-A/2020 suscita inúmeras dúvidas e perplexidades que a brevidade destas linhas não permite detalhar. Desde logo, e no plano constitucional, não deverá dispensar-se uma apreciação sobre a compatibilidade da determinação da suspensão do direito à reposição do equilíbrio contratual com os princípios da proporcionalidade e da adequação e, sobretudo, com o critério finalístico da estrita necessidade dessa suspensão para o ‘pronto restabelecimento da normalidade constitucional’. É ao menos legítimo perguntar em que termos a inibição, ainda que temporalmente delimitada, do exercício de direitos legais e contratuais de conteúdo patrimonial concorre para a reposição da normalidade num contexto de pandemia. Por outro lado, importa perceber se as limitações decorrentes do DL 19-A/2020 não legitimam em si mesmas o recurso ao regime da alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, designadamente se não for possível repor na íntegra o equilíbrio financeiro pela extensão do prazo contratual.
Em qualquer caso, porém, o aspeto que a nosso ver cumpre registar para futuro é a circunstância de o Estado legislador se ter feito valer de prerrogativas soberanas para atingir, a seu favor, o âmago da estabilidade contratual nos contratos em que é parte. Em termos práticos, o legislador assumiu o propósito de, numa altura em que se tornaram aplicáveis determinadas disposições legais e contratuais atributivas de direitos aos cocontratantes privados afastar e limitar os seus efeitos. E fê-lo, para mais, com caráter retroativo num momento em que boa parte dos cocontratantes já havia exercido ou manifestado a intenção de exercer esses mesmos direitos. Em suma, o DL 19-A/2020 veio mudar as regras de um jogo que já vai a meio.
Está lançada semente em terreno fértil à litigiosidade. E pode bem dar-se o caso de a colheita se vir a fazer de numerosíssimos processos que se arrastarão anos a fio nos nossos tribunais.
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