O sr. Medina e o Pai Natal
Lisboa continua sem ter direito a uma visão criativa por parte de alguém que a tente transformar naquilo que deve ser: uma cidade cosmopolita mas agradável para viver, trabalhar e passear.
Shirley Temple, que se tornou uma das crianças-prodígio de Hollywood, a terra de todas as fantasias, recordou um dia que a marcou para sempre: “Eu deixei de acreditar no Pai Natal quando tinha seis anos. A minha mãe levou-me a um centro comercial e ele pediu-me um autógrafo”. O sr. Fernando Medina, que não conseguiu seguir carreira em Hollywood, nunca terá tido uma experiência como a menina Shirley. Assim, teve de continuar a acreditar no Pai Natal. Com o tempo evoluiu. Hoje crê que é o Pai Natal. E que está, em Lisboa, a distribuir prendas. Talvez sonhe que, se um dia forem reconhecidos os seus dotes superiores, possa ser Primeiro-Ministro ou mesmo Presidente da República. Será então mais famoso do que o Pai Natal.
Cada um segue a quimera que quiser. Mas, até lá, o sr. Medina aspira terraplanar Lisboa. E torná-la a imagem da sua fantasia. Quer fazer de Lisboa a sua Versailles. Com um outro estilo de Corte. O projecto, cerzido desde há anos, está a chegar ao ponto de rebuçado. Para ele, Lisboa será uma cidade que será uma mistura entre o Dubai arquitectónico e um condomínio turístico. Com o povo fora de portas, vindo apenas para prestar serviços a uma “cidade limpa” e “verde”.
A sua “estratégia para o turismo 2020-2024” certifica esta visão. É por isso que pode dizer: “Não estamos a falar de uma coisa pequena, 15 mil milhões (de euros) é o equivalente a 10 vezes o que gera todo o sector do calçado no país e seis vezes as vendas da Autoeuropa”. De forma modesta o sr. Medina vem dizer aos comuns crédulos que o turismo é tudo e indústrias estruturantes são amendoins. Foi com ideias destas que os ingleses impuseram o Tratado de Methuen e Portugal destruiu o seu têxtil e ficou a ver a Revolução Industrial por um canudo.
Pior, no seu “planinho”, o sr. Medina sonha “potenciar” Marvila e Beato como zonas “trendy” e criar um pólo Reserva Natural do Estuário, com o turismo dedicado à “tradição rural”. Essa ideia de dividir Lisboa em “reservas de estilo” é digna de um Nobel. Sobre a segunda, depois do que projecta para o Estuário do Tejo com o novo aeroporto, pode-se criar um novo tipo de turismo “bird watching”: observar aviões a descolar e a aterrar porque os pássaros não existirão. E sobre a “cidade verde”? Tiram-se os carros da Baixa, mas acena-se os maiores poluntes de todos, os barcos de cruzeiro.
Se juntarmos tuda esta irrealidade à linha circular do Metro (feita para quem vive na zona turística poder andar sem demoras) e aos planos imobiliário para Entre Campos e Praça de Espanha, o Monopoly está embalado. É triste. Não se pense que o sr. Medina inventou alguma coisa.
Basta ler o que escrevia o grande escritor e monárquico convicto Carlos Malheiro Dias, em 1904: “o pobre foi escorraçado de todos os locais saudáveis e arejados, tangido para Xabregas, para Alcântara, para a Mouraria, para Alfama. E a Lisboa dos ricos desenvolve-se, prospera, aformoseia-se”. Agora são as classes médias a serem corridas dos novos centros de cobiça.
Quando José Carlos Ary dos Santos escreveu o poema “Lisboa, Menina e Moça”, falava ainda de uma cidade onde os bairros eram os seus pulmões, cercando um Terreiro do Paço poderoso. Era uma cidade típica, sem ser moderna. Décadas depois, sem conseguir ser moderna, está a deixar de ser típica. Lisboa desinvestiu dos bairros e não investiu numa visão que a tornasse moderna sem desprezar o passado alfacinha e sem ignorar a riqueza cultural que as diferentes emigrações lhe trouxeram.
O problema é que Lisboa continua sem ter direito a uma visão criativa por parte de alguém que a tente transformar naquilo que deve ser: uma cidade cosmopolita mas agradável para viver, trabalhar e passear. Com uma história. Se for só arquitectura pseudo-moderna com bairros “trendy”, não serve para nada. Nem para o futuro turismo, porque este vai mudar muito rapidamente. Lisboa precisa de ser autêntica, na sua diversidade. E não ser uma “pequena Versailles”. Ao remover o antigo, para criar um novo efémero, o sr. Medina não legará uma cidade de futuro. Os seus herdeiros receberão betão sem alma.
Sugestão da semana:
Nestes tempos conturbados, nada como ir ver a exposição “Sociedade das Nações (1920-1946): Promessas e Legados” na Biblioteca nacional. Estabelecida após a I Guerra Mundial, este forum das nações, não sobreviveu ao novo mundo após segundo conflito global. A ONU viria depois.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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