Ordem nas ordens

A nobre finalidade que presidiu à sua criação está bastante secundarizada face à defesa dos interesses das respectivas classes profissionais.

Há uns anos, a Deco decidiu pegar num carro a gasolina e noutro a diesel e levá-los num périplo por várias oficinas. Ao primeiro tinha eliminado a folga da vela do primeiro cilindro e colocado um fusível fundido no motor do limpa pára-brisas; Ao a gasóleo tinha desapertado um tubo ligado ao turbo. Os resultados dessa experiência revelaram a já esperada falta de competência e/ou de honestidade: Houve quem substituísse válvulas e quem reparasse os cabos do sistema eléctrico. Pelo menos, na conta que apresentaram a pagamento era o que dizia. E, como a maioria de nós não percebe o suficiente de motores, se o mecânico diz que teve de pôr uma bobine de ignição nova, nós resignamo-nos.

Claro que é um bocadinho aborrecido ficar com o carro parado em plena rotunda do Marquês, às nove da manhã de um dia de semana em que chove. Até porque os demais condutores buzinam como se uma pessoa estivesse ali de quatro-piscas ligados para tirar fotografias à estátua ou para reservar lugar para uma putativa vitória no campeonato, quando a segunda volta nem começou. Mas não é tão grave como quando estão envolvidos assuntos de saúde ou de justiça, duas áreas que também exigem conhecimentos técnicos específicos não acessíveis a quem não teve formação nelas.

É para isso que existem as Ordens profissionais, para defenderem os direitos fundamentais dos cidadãos, protegendo-os, pela via da autorregulação, de más práticas que eles não têm capacidade de detectar. E é por lhes estar destinada esta função de salvaguarda do interesse público que as Ordens profissionais são associações de Direito Público, constituindo expressão da administração autónoma do Estado.

Nesse sentido, não me chocou a notícia de que a Autoridade Tributária iria assumir a cobrança das quotas em atraso devidas às Ordens profissionais (afinal, elas também estão obrigadas a prestar contas ao Tribunal de Contas). Sobretudo, quando a nossa máquina fiscal já se presta a fazer de “cobrador de fraque”, por exemplo, para dívidas de portagens ou de coimas em transportes públicos. Mais chocada fico que esse papel seja desempenhado ao estilo dos quadros intermédios da Máfia, aqueles que ameaçam partir rótulas à bastonada.

Aparentemente, em termos fiscais, abandona-se o princípio da presunção de inocência e inverte-se o ónus da prova. O contribuinte é assumido à partida como um meliante e há que fazê-lo pagar primeiro e ele que reivindique depois (se tiver dinheiro e paciência para isso). Isto é tão mais grave quanto a máquina fiscal se preocupou bastante em reduzir os erros de tipo I (não perseguir os reais devedores), mas descurou a diminuição do erro tipo II (cobrar a quem não tinha de pagar). Que os membros das Ordens profissionais passem a estar sujeitos a este tipo de conduta não me satisfaz, mas fundamental seria alterar o modo de actuação da Autoridade Tributária.

Mas deixando o Fisco e regressando às Ordens profissionais. Cumpre-me observar que a nobre finalidade que presidiu à sua criação está bastante secundarizada face à defesa dos interesses das respectivas classes profissionais. A coberto da protecção dos “consumidores”, as Ordens criaram inúmeras barreiras no acesso às profissões, comportando-se como agentes do melhor corporativismo, tão presente e tão prejudicial ao país.

Isso mesmo notou a troika. De tal modo que, no Memorando de Entendimento que assinou com Portugal, incluiu um tópico dedicado às profissões reguladas, onde prescreve a redução do seu número, a adopção de medidas que liberalizassem o acesso a tais profissões e a melhoria do funcionamento do sector através da eliminação de requisitos injustificados ou não proporcionais.

Em 2013, a Lei n.º 2 veio estabelecer o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais; o de acesso e exercício de profissões e de atividades profissionais seria definido dois anos depois, pelo Decreto-Lei 35/2015.

Há umas semanas, a OCDE veio revelar os resultados do seu projecto conjunto com a Autoridade da Concorrência para avaliar o impacto concorrencial nos sectores de transportes e profissões auto-reguladas. Relativamente a estas últimas, as duas instituições concluíram que, não obstante algumas melhorias nos últimos anos, o acesso continua a ser bastante condicionado, numa prática restritiva de concorrência. É uma reforma estrutural que é capaz de não ter sido implementada com a profundidade digna do nome “reforma”. E talvez não tenha sido a única. E isto é uma bocadinho mais grave que saber quem cobra as quotas.

Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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