Editorial

Os cofres cheios e a abundância

Nem os cofres estão cheios, nem o país vive em abundância. Estas ideias são um caminho para a tragédia, para se perder mais uma oportunidade para mudar de vida.

Desta vez, o discurso que marcou a tomada de posse do novo Governo não foi o de Marcelo Rebelo de Sousa — como o foi há dois anos quando pré-anunciou a dissolução do Parlamento se António Costa saísse. Desta vez o discurso que marcou, e que ficará como guia de avaliação da legislatura foi mesmo o do primeiro-ministro Luís Montenegro. E isso é o que deve ser, o regresso a uma normalidade política num quadro de tanta anormalidade — sim, por causa de um partido que se chama Chega.

Em primeiro lugar, Luís Montenegro disse uma coisa que pode parecer óbvia em circunstâncias normais, mas que é muito relevante nas circunstâncias políticas que saíram do dia 10 de março e de um resultado das eleições para o qual ainda não se sabe exatamente como gerir: O Governo está para quatro anos e meio ou, claro, para cair se houver algum partido que prefira a instabilidade política, económica e social.

Luís Montenegro sinalizou as prioridades políticas, a saúde, a justiça e a luta contra a corrupção, os impostos, abriu a porta ao diálogo político com o PS, mas clarificou dois pontos que são críticos para permitir que este Governo seja mesmo uma oportunidade ao fim de oito anos de gestão das circunstâncias. Os cofres não estão cheios nem vivemos um país de abundância (e é até difícil perceber como se chegou a estas ideias peregrinas num espaço de poucas semanas).

A campanha eleitoral levou todos os partidos a prometerem muito a todas as classes profissionais, ou pelo menos a criarem expectativas, com exceção dos professores, para os quais houve mesmo um compromisso claro, quer da AD, quer do PS. Com a divulgação das contas públicas de 2023, um saldo orçamental recorde de 1,2%, correspondente a um excedente de mais de três mil milhões de euros. Mas é uma folga? Nem por sombras, quando a dívida pública é marginalmente inferior a 100% da riqueza criada no país em cada ano. E quando a despesa pública supera os 115 mil milhões de euros por ano. É, na melhor das hipóteses, uma almofada que não pode ser desperdiçada. O excedente foi em 2023, é certo que há receita estrutural (nomeadamente em sede de IVA por causa da inflação), mas a dinâmica da despesa, desde logo na saúde e pensões, já é pressão suficiente.

O primeiro-ministro prometeu, em campanha eleitoral, devolver o tempo de serviço dos professores em cinco anos e prometeu avançar com uma redução de impostos em IRS e IRC. Só estas duas promessas são suficientemente relevantes para cuidar de saber se é possível ir mais longe noutras classes e corporações sem pôr em causa o que Marcelo lembrava: Não é preciso criar problemas onde eles não estão, leia-se no equilíbrio orçamental. É isto que explica, desde logo, o estatuto de ministro de Estado que Montenegro deu a Joaquim Miranda Sarmento e também o facto de a gestão da administração pública passar para a tutela das Finanças. E bem.

Mais importante, Luís Montenegro falou na abundância. Ou melhor, na ideia de que uma qualquer “abundância”, que não existe, nos livra da exigência, da necessidade absoluta, de reformar o país, de reformar o Estado. Seria um erro crasso, uma oportunidade perdida. Se o Governo não fizer reformas, se não mudar estruturas, se se limitar a gerir até às próximas eleições, seja elas dentro de um ano ou quatro anos e meio, será uma década perdida. Mais uma.

O país precisa de mudar, precisa de um choque de concorrência, de abertura, de mercado, de mérito, de eficiência, de criação de valor. A tese da abundância — de onde virá ela? — só serve para impedir o apoio social necessário à mudança, sem a qual estaremos condenados à pobreza. E por paradoxo que possa parecer, é mesmo um Governo com tudo a perder que pode arriscar fazer tudo para ganhar.

PS: Se Pedro Nuno Santos quer ser levado como político de Estado — como demonstrou na eleição de José Pedro Aguiar Branco –, não pode fazer números como fez ao não aparecer na tomada de posse de Luís Montenegro. Se quer ser levado a sério, não pode ser um bloquista com mais deputados.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Os cofres cheios e a abundância

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião