Os governantes eternos
O regime político da República Popular da China não tem pretensões a apresentar-se nem como uma democracia eleitoral, nem como um sistema liberal.
E se os governantes pudessem ser eternos? O princípio republicano da renovação e da limitação temporal do exercício do poder há muito parece ter resolvido essa questão. Os monarcas absolutistas consideravam-se ungidos de uma graça divina que os legitimava e os elevava acima do comum dos mortais. Foi para libertar os homens comuns do governo destes homens providenciais que as revoluções liberais, em particular a Revolução Americana, estabeleceu o governo das leis sobre o governo dos homens. Assim, as democracias liberais fundaram-se no equilíbrio entre o governo do povo, através da eleição de representantes e de governantes por tempo determinado e seguindo a vontade da maioria, e o Estado de direito, que assegura os direitos, liberdades e garantias dos indivíduos contra os abusos de poder, inclusive, ou sobretudo, por parte da maioria.
Foi este o modelo que singrou e que se desenvolveu nas suas diversas variantes no Ocidente nos últimos três seculos e que se espalhou um pouco por todo o mundo. Sabemos que as teorias (e as práticas) da democracia não são uníssonas. Mas ainda que tenhamos o entendimento de que o sistema em que vivemos deve ser descrito como uma poliarquia, para utilizar o termo de Robert Dahl, sabemos que a existência de mecanismos e de opositores preparados para substituir os governantes em exercício são fundamentais para a salubridade do poder e para a capacidade dos regimes superarem as suas crises.
O regime político da República Popular da China não tem pretensões a apresentar-se nem como uma democracia eleitoral, nem como um sistema liberal. Subsistem muitas dúvidas, hipóteses e teorias de como é que tal pode ser compaginável a prazo com um sistema económico capitalista, cada vez mais integrado na economia mundial, um crescimento do PIB candente e a emergência de uma classe média. Mas até há pouco tinha o seu próprio mecanismo de limitação de exercício do cargo de Presidente da República a dois mandatos consecutivos (dez anos). Agora, que a Assembleia Nacional Popular removeu da constituição a limitação de mandatos, a pergunta que ecoa nos arredores da China (ou seja, um pouco por todo o mundo) é a de se Xi Jinping quererá ser um presidente para a vida.
Esta congeminação tem sido afastada pelos correligionários do regime e mesmo no exterior há quem assinale que a nomenclatura do Partido Comunista Chinês impõe limites ao poder do líder. Mas o lugar de Secretário-geral do Partido Comunista, de onde de facto emana o poder e na constituição do qual o nome o pensamento de Xi Jinping foi entronizado no passado mês de outubro, também não tem limitação de mandatos. Neste contexto, não têm faltado as vozes que sublinham o risco de perpetuação de Xi Jinping no poder.
Por quanto mais tempo? Xi Jinping, nascido em junho de 1953, foi saudado por ter ascendido a Secretário-geral do PCC e a Presidente da China ainda antes dos 60 anos. Se quisesse ser um presidente para a vida, estando hoje com apenas 64 anos, se tivesse a resistência biológica de Mao Tsé-Tung poderia aspirar a governar por mais 18 anos. Se vivesse até à idade em que morreu Deng Xiaoping poderia governar mais 28 anos. Mas não está a esperança de vida a aumentar? No século XXI, até que idade poderá um homem, neste caso um homem-governante, viver, governar?
Uma das desinquietantes interpelações que o historiador Yuval Noah Harari faz no livro Homo Deus é a de quais seriam os resultados no campo da política se num futuro próximo as pessoas vivessem até aos 150 anos: «Incomodá-lo-ia o facto de ter Vladimir Putin no poder nos próximos 90 anos? Pensando melhor, se as pessoas vivessem até aos 150 anos, Estaline ainda seria dono e senhor da Rússia, forte como nunca aos 138, aos 123 anos o Presidente Mao estaria na meia-idade e Princesa Isabel continuaria à espera de herdar o trono do seu pai, Jorge VI, que teria 121 anos de idade. O Príncipe Carlos teria de aguardar pela sua vez até 2076.»
Harari vai mais longe (e em várias dimensões, por isso vale a pena ler e reler o livro), retratando o combate ao envelhecimento e às doenças a que estamos a assistir, no fundo, como uma luta pela imortalidade ou, pelo menos, por uma amortalidade em que as causas de morte ficariam reduzidas a acidentes. Não por acaso, este tema parece obcecar alguns dos mais bem-sucedidos no modelo de criação de riqueza da globalização contemporânea. E se aos super-ricos juntássemos os detentores de poder à frente de países no grupo daqueles que nos próximos anos vão procurar, incessantemente, obter os elixires da eterna juventude? A questão pode parecer metafísica e, em grande medida, é. Mas o mundo já assistiu a grandes desgraças por muito menos.
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