Ou morre Sócrates ou morre a Justiça
O MP não pode ter opiniões ou suspeitas, tem de ter factos concretos e provas conclusivas e é isso que aguardamos num processo com uma acusação melindrosa.
No dia em que a SIC brindou todo o país com uma violação a sangue frio, à vista de todos, do Segredo de Justiça, exibindo os interrogatórios a José Sócrates, eu estava na Cinemateca a ver “O Bígamo” (The Bigamist), de Ida Lupino. A história de um homem casado, bem na sua vida profissional, mas ao qual faltava algo que descobre em los Angeles: a atenção de uma outra mulher.
Gostava das duas, ambas o completavam, não vivia no engano pois nunca mentiu claramente a nenhuma delas, apesar de nunca ter dito a verdade também. Quando é descoberto, pelo homem que é surpreendido por aquela bigamia, a reacção é dicotómica. Não o fuzila com a crítica, porque o outro, no seu âmago, lhe parece um homem de bem: «não consigo perceber o que sinto por si, desprezo-o e tenho pena de si. Não quero sequer apertar-lhe a mão, e ainda assim quase lhe desejo boa sorte», diz.
É com esta divisão de percepção que oscila a sociedade portuguesa no que toca ao julgamento popular de Sócrates. No tribunal dos media, onde mais facilmente se queimam reputações, com informação cirurgicamente passada pelo Ministério Público (MP) para jornais, revistas e televisão, o ex-Primeiro-Ministro está condenado. O MP num exercício de violação do Segredo de Justiça perpetrado pelo próprio, semeou as bases para que a opinião pública criasse a ideia de que Sócrates levava uma vida luxuosa, incompatível com os seus rendimentos. E todos sabemos que a voz do povo é pouco branda para ostentações de riqueza.
Porém, até agora, são muitos os indícios mas provas cabais, desconhecemos. Todos os portugueses têm direito à opinião sobre Sócrates, no entanto, o que aqui está em jogo é outra coisa. O MP não pode ter opiniões ou suspeitas, tem de ter factos concretos e provas conclusivas, logo, evidentes e é isso que aguardamos na construção de um processo que envolve uma acusação deveras melindrosa e que não pode deixar margem para erros.
Quero afirmar taxativamente que enquanto cidadão me incomoda bastante que seja criada uma série com magníficos meios de produção (nisso tiro o chapéu aos jornalistas e editores da SIC) tendo por base a fuga concertada pelo MP de vídeos que deviam ser privados, tal como já achei grave excertos do interrogatório andarem a fazer capas de jornais e revistas. E escusa de vir agora a Procuradoria-Geral da República anunciar um inquérito à violação do Segredo de Justiça que, para mim, isso só serve para atirar areia para cima das pessoas e lavarem as mãos como Pôncio Pilatos, pois todos sabemos de onde saíram as fugas.
Este processo arrasta-se há anos e irá continuar pois o novelo é enorme e aqui julgo que a estratégia do MP não foi a mais assertiva. Se escolhessem um dossier e arranjassem provas sérias de crimes de corrupção e tráfico de influências sobre um assunto, tudo poderia ser mais simples. Contudo, as pontas do novelo são imensas e correm o risco de nem todas terem o destino que o MP deseja quando pegou nelas e isso abalará a consistência deste vasto caso.
Até à sentença final há algo que tem de estar sempre subjacente: a presunção de inocência, por muito que seja complexa e até bizarra a relação de Carlos Santos Silva, o amigo que todos gostaríamos de ter, com o ex-líder do PS. E pouco serve a Inquisição das redes sociais e das conversas de café, se o MP não conseguir uma condenação concludente. Se assim acontecer José Sócrates está morto, pessoalmente e politicamente, se houver debilidades na acusação e este vier a ser ilibado, é a Justiça que morre e a sua credibilidade estará enterrada. E nenhum cidadão pode deixar de acreditar na Justiça, pois é um pilar do sistema democrático que fica amputado.
Nota: O autor escreve segundo a antiga ortografia.
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