A Justiça é o último reduto quando tudo o resto falha. As imperfeições da democracia têm ali, muitas vezes, a correcção possível. Se ela nos falha pode falhar-nos tudo. E ela falha-nos.
Neste sábado a “bolha” das redes sociais entreteve-se a discutir se o Expresso devia ter ou não feito manchete com uma declaração da directora-geral da Saúde em entrevista ao jornal: “Graça Freitas admite 1 milhão de infectados em Portugal”. Sim, é uma discussão interessante. Mas prefiro destacar a honestidade e transparência de Graça Freitas, colocando em cima da mesa cenários extremos num país onde a regra é a relativização, a desvalorização e o relaxe. E isso, como sabemos, volta e meia acaba muito mal.
O que é preocupante é que mesmo ao lado dessa manchete o Expresso tinha outro título que, aparentemente, não fez ninguém pestanejar: “Presidente da Relação viciou escolha do juiz no caso Rangel”. Neste caso já não estamos perante cenários que podem ser trágicos. O que se vai passando na Justiça é real, está a acontecer. E não é bonito de se ver.
O
Público deste domingo volta ao tema com detalhes: o anterior presidente do Tribunal da Relação de Lisboa combinou com o actual que seria este a ajuizar o recurso de um processo que o também juiz Rui Rangel tinha perdido na primeira instância. Tudo a pedido do interessado e, claro, feito à margem das regras para a distribuição de processos por juízes. E, surpresa, não é que o Tribunal da Relação veio a dar razão ao queixoso, invertendo a decisão anterior? E, nova surpresa, não é que um novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça veio a confirmar a primeira sentença, para desgosto de Rui Rangel e atirando para o lixo o “cozinhado” que preparou com os dois colegas juízes da Relação?
É evidente que aqui, como em qualquer área, não é uma andorinha que faz a Primavera. Nem duas ou três. Nem quatro, vá lá, se recordarmos que a juíza Fátima Galante é também arguida na Operação Lex, que está na origem disto tudo. Em todo o lado há gente séria e gente pouco recomendável e os juízes não são uma casta especial.
Mas há outros sinais que denotam uma doença profunda do sistema. Nos últimos dias ficámos a saber que
um dos processos contra Vale e Azevedo prescreveu por terem passado 20 anos sobre os factos que deviam ter ido a julgamento – em causa estava o desvio de 1,2 milhões de euros do Benfica para os bolsos do então presidente – e que a decisão judicial que decidiu a demolição do Prédio Coutinho em Viana do Castelo acaba de ser anulada por um tribunal superior 15 anos depois.
Estes são os casos mediáticos. Por eles podemos suspeitar o que se passará em centenas, milhares de outros processos que deixam vidas em suspenso durante décadas ou permitem a impunidade de criminosos.
E podemos também falar da falta de preparação moral e de valores que alguns juízes demonstram em sentenças machistas que violam os mais básicos direitos de vítimas que tiveram o segundo infortúnio de ir parar às mãos daqueles magistrados.
Um sistema que perpetua uma abissal diferença de tratamentos entre ricos e pobres, que não consegue tomar decisões em tempo útil para cumprir a sua função mais básica, que maltrata vítimas com frequência, onde aparecem focos de corrupção a vários níveis ou onde a percepção de independência e coragem na investigação criminal de poderosos anda ao sabor de quem ocupa os cargos é um sistema doente.
De todas as grandes áreas sectoriais a Justiça é aquela onde a democracia mais falhou. Nada na Educação, Saúde, Segurança, Defesa ou áreas sociais se lhe compara, apesar das visíveis dificuldades numa ou noutra área.
E logo a Justiça. Ela que é olhada como o último reduto quando tudo o resto falha. As imperfeições da democracia têm ali, muitas vezes, a correcção possível. É na Justiça que os cidadãos devem confiar para o equilíbrio de relações que, à partida, são desequilibradas e injustas. É para ela que todos olham para travar abusos dos poderes. É nela que queremos confiar para lutar contra a corrupção ou a fraude, a violência ou os ataques à propriedade os abusos da liberdade de imprensa ou dos eleitos.
Se ela nos falha pode falhar-nos quase tudo. Não sabemos se todos os protagonistas da Justiça terão a noção do que se está a passar e da gravidade das consequências.
E as restantes partes interessadas? O Conselho Superior da Magistratura? O Supremo Tribunal de Justiça? O Presidente da República e o Governo? Os advogados?
Não se vê ninguém particularmente preocupado com o que se passa. Nem para os habituais “é preciso uma profunda investigação, doa a quem doer, custe o que custar” que, como os vestidos pretos, ficam sempre bem e nunca comprometem.
Os rituais do sector sucedem-se da mesma forma, com as mesmas vestes, com os mesmos formalismos, com o mesmo respeitinho, com os mesmos salamaleques, com os mesmos e repetitivos discursos e apelos. As aberturas oficiais dos anos judiciais são, aliás, um bom retrato do imobilismo e clausura a que o sector se remeteu, alheio ao mundo que o rodeia.
Fazem-se ou simulam-se “pactos para a Justiça”.
Mas há uma parte da Justiça que teima em perpetuar os tiques do tempo da outra senhora. E não há democracia saudável que possa resistir a uma coisa destas.
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Quando a Justiça se senta no banco dos réus
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