Reformar o Estado é mudar a cultura

Reformar o Estado é muito mais do que reorganizar secretarias-gerais dos ministérios, digitalizar alguns processos e realizar exercícios de revisão da despesa pública de comedida ambição.

A reforma da administração pública está para o Estado como o novo aeroporto está para a região da grande Lisboa. Há décadas que se fala, mas tarda a sua concretização plena.

Já esteve em vários programas de Governo, incluindo o anterior, mas agora é que vai mesmo acontecer. É essa a promessa de Luís Montenegro, com direito a ministério próprio. Na tomada de posse, prometeu “guerra à burocracia”, elegendo-a como o primeiro constrangimento “que limita a nossa capacidade de crescer”.

Reformar o Estado é muito mais do que reorganizar secretarias-gerais dos ministérios, digitalizar alguns processos e realizar exercícios de revisão da despesa pública de comedida ambição. Montenegro parece ter percebido que é preciso ir muito mais longe.

Para a tarefa, o chefe do Governo escolheu Gonçalo Saraiva Matias, até aqui presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, instituição onde se tem feito muita e boa investigação sobre políticas públicas. O professor de Direito da Universidade Católica parece ter o currículo e o perfil adequado para a tarefa. E que tarefa!

Os muitos programas Simplex já adiantaram algum serviço e hoje a relação dos cidadãos e empresas com o Estado é muito mais digital. Mas não se reforma o Estado sem novos processos de gestão, sem muita formação dos funcionários públicos, muita transformação tecnológica, racionalização de procedimentos. Sobretudo, não se faz sem uma mudança de cultura.

No Estado desconfia-se dos cidadãos e mais ainda das empresas. A burocracia é vista como um travão contra os abusadores, partindo do princípio que todos o são. A burocracia tem de existir, mas com conta peso e medida. Um pedido de licenciamento não pode ser encarado como um crime em potência até prova em contrário, e quem o formula um chico-esperto à espera de um deslize.

Essa mentalidade faz arrastar os processos. Conseguiremos livrar-nos dela?

Ainda mais terrível é a burocracia dos pequenos poderes. Das entidades e funcionários que complicam apenas para fazer notar a sua importância e justificar a sua existência.

Luís Montenegro está consciente do problema e declarou guerra à “cultura de quintal de muitas entidades, funcionários e dirigentes” e sublinhou que é necessário “mais confiança”.

Felizmente, também não faltam funcionários que tentam ajudar e só não fazem mais porque as regras não permitem.

Às vezes nem é sequer o estar de pé atrás; é o medo de decidir sobre o que não se consegue avaliar por falta de conhecimento.

A reforma do Estado não se faz sem quadros qualificados e para os ter é preciso que a Função Pública seja um bom sítio para trabalhar. Não porque garante um emprego para a vida, mas porque oferece uma remuneração competitiva, uma experiência enriquecedora e reconhecimento do mérito.

Como a despesa pública tem de ser controlada, reformar o Estado também obriga a reduzir custos, gerar eficiências, acabar com redundâncias e desperdícios, conter o aumento do número de funcionários. O Estado não tem de ser um peso, tem de ser um facilitador.

Gonçalo Saraiva Matias é o titular da pasta, mas dependerá também do empenho dos seus colegas no Conselho de Ministros para concretizar a missão que lhe foi confiada de simplificar e desregular.

Um exemplo: ter 4.300 taxas e taxinhas, segundo a contabilização que foi feita num estudo da CIP divulgado em 2020, também é burocracia. Não é só o custo monetário, é o custo administrativo que elas representam. Ora estas taxas estão dispersas por entidades de múltiplos ministérios.

O ministro estará bem acompanhado. Bernardo Correia, country manager da Google em Portugal, vai ser o secretário de Estado para a Digitalização e Paulo Magro da Luz, antigo CEO da consultora de recursos humanos EGOR e conselheiro de Carlos Moedas na Câmara de Lisboa será o Secretário de Estado para a Simplificação.

Resta desejar-lhes boa sorte. Vão precisar dela.

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