Sedes fantasma e as implicações para os moradores

  • Maria Ana Pires
  • 27 Março 2025

É necessária uma reflexão sobre a permissibilidade legal de se poder constituir uma sede social em qualquer morada, independente da ligação efetiva com a sociedade.

E se descobrisse que uma sociedade utiliza a sua morada como sede? Ainda que, à primeira vista, esta situação possa parecer meramente teórica, na prática ocorre e revela-se particularmente problemática, gerando inúmeros transtornos para os terceiros envolvidos. Com efeito, surgem casos em que sociedades “fantasma” são constituídas em moradas alheias (ou até em moradas inexistentes), sem que os moradores tenham qualquer possibilidade de contacto com os respetivos sócios — muitas vezes estrangeiros — ou afetando novos proprietários de imóveis que, ao adquirirem o bem, se deparam com a existência prévia de uma sede social indesejada. Nessas circunstâncias, os novos moradores ou proprietários são associados, injustamente, à sociedade aí registada, sendo que terceiros, que estabelecem relações comerciais com esta, podem ser induzidos em erro.

A sede social é, nos termos do artigo 12.º do Código das Sociedades Comerciais (doravante, CSC), o local concretamente definido em que uma sociedade tem o seu domicílio e é um dos elementos de indicação obrigatória aquando da constituição de uma sociedade, devendo constar do pacto social (cfr. artigo 9.º, n.º 1, alínea e) do CSC). No entanto, a sua definição não pode, nem deve, ser encarada como uma mera formalidade, pelo contrário deve corresponder ao local onde se vai desenvolver a atividade administrativa e a gestão efetiva da sociedade.

Não obstante, a prática revela que a mera indicação de uma morada é, por si só, suficiente para efeitos de registo comercial, sem qualquer prova ou verificação da efetiva ligação entre a sociedade, os seus sócios e o local indicado.

Se, num plano teórico, esta simplicidade administrativa pode aparentar ser vantajosa, na prática, suscita dificuldades e implicações jurídicas significativas. Atingindo o seu expoente máximo quando a sociedade incorre em situação de incumprimento, especialmente no que respeita às suas obrigações financeiras e fiscais. Nesses casos, os terceiros alheios à sociedade podem receber, na sua correspondência, citações e notificações fiscais e judiciais, sendo, por vezes, em casos mais gravosos, surpreendidos com a visita de agentes de execução, com vista à penhora sobre os seus bens, uma vez que a execução pode recair sobre os bens móveis existentes na morada designada como sede social. Nestes casos, será imputado aos moradores o ónus de provar judicialmente a ausência de relação com a sociedade, e de que os bens presentes no imóvel que foi indicado como sede não pertencem à sociedade em questão. A situação agrava-se quando, para remover uma sede indevidamente constituída, se exige a deliberação dos sócios (cfr. artigos 12.º, n.º 2, e 85.º do CSC), o que pode criar um entrave para os terceiros, que, na ausência de colaboração dos sócios, veem-se compelidos a recorrer a ações judiciais para pôr termo a tal situação.

Perante este cenário, é necessária uma reflexão sobre a permissibilidade legal de se poder constituir uma sede social em qualquer morada, independente da ligação efetiva com a sociedade. Impõe-se assim, face à inexistência de mecanismos céleres e eficazes que permitam aos terceiros envolvidos denunciar a utilização indevida da sua morada, a criação de mecanismos expeditos de denúncia e que originem consequências para as sociedades que utilizem, como sede, moradas com as quais não têm ligação. Uma dessas consequências poderia ser a de obstar a prática de quaisquer atos de registo comercial dessa sociedade, excetuando-se, entre outros atos, a alteração de sede. Tais medidas reforçariam a segurança jurídica e protegeriam os direitos de terceiros de boa-fé, permitindo resolver esta questão que para muitos se trata de um autêntico pesadelo. Ignorar este problema significa perpetuar uma realidade que afeta, sem aviso, cidadãos comuns.

  • Maria Ana Pires
  • Advogada da Broseta

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