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Não são os tumultos que marcam os dias. É a ideologia que infecta a esfera pública com declarações definitivas. Vamos imaginar e regenerar o mundo.

Não são os tumultos que marcam os dias. É a ideologia que infecta a esfera pública com declarações definitivas. Vamos imaginar e regenerar o mundo.

A sociedade liberal não passa de um dispositivo ideológico para manter um aparato de repressão e uma estrutura de dominação. A tolerância é a máscara da hipocrisia. A opinião é o simulacro da liberdade controlada. Para o triunfo do progresso é necessário erradicar qualquer identidade nacional, dissolver a ansiedade com a imigração, construir uma sociedade aberta sem fronteiras entre comunidades e divisões entre grupos identitários. Desconstruir a estrutura de dominação é a causa do século. O arco da História curva-se sobre os valores e as identidades comuns na construção da igualdade ao som da ideia exclusiva da justiça social.

A sociedade liberal não passa de um dispositivo ideológico que se demite do exercício da autoridade e da vinculação da ordem. A tolerância é a máscara do medo. A opinião é a falsa liberdade descontrolada. Para o triunfo do progresso é necessário restaurar a ordem, afirmar a identidade nacional, explorar a insegurança com a imigração, construir uma sociedade fechada dominada pela uniformidade da comunidade e pela exclusividade de um único grupo identitário. Construir a nova dominação é a causa do século. O arco da História curva-se sobre os valores de uma identidade inviolável ao som da ideia exclusiva da justiça nacional.

A revolução não é um tweet. A revolução não é um hino ao respeito. A revolução é para os oportunistas e para os idealistas. Mas no final sobram sempre os oportunistas. Saudosistas do passado e saudosistas do futuro são a face visível de um Portugal democrático desgraçado pela mais profunda miséria moral.

Entre o discurso dos dois ódios existe uma realidade social à espera de ser encontrada. O confronto histórico entre duas visões extremas e radicais só contempla a polarização e exclui a ponderação. É a política na sua forma mais primária e primitiva onde só existem discursos demagógicos e ausência de políticas públicas. É a política da vingança, é a política da destruição, é a política do lixo das palavras a arder nas ruas da cidade.

Nos media é a ficção de aventuras entre chamas e polícias, espécie de road movie de um filme que não existe. Nestes “territórios perdidos para a República” confunde-se reportagem com documentário antropológico onde impera o impressionismo, o sensacionalismo, o facilitismo, a preguiça intelectual. A preguiça intelectual domina um Portugal distraído que finge não existir.

Portugal é um país pós-colonial, multiétnico. Lisboa é uma cidade cercada por uma coroa de pobreza herdada dos bairros de barracas e dos fluxos migratórios externos. Migrantes internos e migrantes externos juntam-se em colonatos divididos internamente e com fronteiras para o país normal. É a lógica dos arquipélagos urbanos. É a lógica das pequenas Palestinas no coração de uma Europa dividida. Circulares externas e transportes públicos e postos de controlo policial. Dois mundos no mesmo espaço nacional. Um país, dois sistemas.

Fala-se de Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), mas devia falar-se de Zonas de Exclusão Económica (ZEE). Existe também em Lisboa as Zonas de Exploração Turística (ZET), onde os portugueses são figurantes no seu país transformado em pólo de atracção de riqueza que o país não produz. Tudo somado, vivemos numa nação estratificada política e economicamente, onde cada zona parece ter uma função específica na grande ordem de uma Distopia Democrática ou na pequena ordem dos Planos sem Plano. Afinal onde vivem os portugueses reais?

Observe-se ainda a terminologia em circulação – bairros, territórios, zonas. O bairro é parte de uma localidade que se distingue por exibir uma determinada condição. Um território projecta um padrão de comportamento em que um ou mais grupos defendem uma determinada identidade. Uma zona é um espaço geográfico destinado a uma determinada cultura. Na lógica social das coisas, Lisboa já não é Lisboa, pois encontra-se fragmentada num sistema multipolar de bairros, de territórios e de zonas que, na sua diversidade e complexidade, pulverizam o país político com os reflexos de uma realidade para além do ideal da República. Sem pedir à nação que regresse com todos os fantasmas, exige-se que o Estado continue a cumprir com os seus deveres que são a derradeira garantia dos direitos democráticos.

É a política entre o passeio marítimo e a esquina do gueto com o ruído das chamas que ardem na inconsciência de um país comum.

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