Trump, a reforma da UE e a Administração Pública em Portugal
O regresso de Trump requer, acima de tudo, um maior pragmatismo dos nossos governantes, tanto na União Europeia (UE) como a nível nacional.
O regresso de Trump requer, acima de tudo, um maior pragmatismo dos nossos governantes, tanto na União Europeia (UE) como a nível nacional. Não se pode contrariar um mercantilista e isolacionista apelando aos valores humanistas que orientam a UE, precisamos de ser mais competitivos e usar todos os fatores de pressão desde já, o que requer equipas negociais fortes e priorizar políticas com impacto imediato em áreas críticas. Acresce que, desta vez, Trump terá mais poder para conduzir as suas políticas, por mais irrealistas que algumas soem, e provavelmente uma equipa mais preparada. A nível nacional, urge uma reforma profunda do Estado para baixar a carga fiscal e elevar o investimento público.
A análise pode dividir-se em duas partes.
1. A UE confronta-se com as suas fragilidades a nível económico, mas como esperar que resolva em meses, com soluções maioritariamente já conhecidas, o que não resolveu em décadas?
Neste primeiro ponto, analiso os sinais dados pela UE na “Declaração de Budapeste sobre o novo pacto para a competitividade europeia”, de 9 de novembro, que mais não é do que uma reação à vitória de Trump, na sequência de dois dias de reuniões dos líderes europeus na capital húngara.
Em resumo, “face a novas realidades geopolíticas e a desafios económicos e demográficos”, os líderes da UE estão “determinados a garantir a nossa prosperidade (…) e impulsionar a nossa competitividade, fazendo da UE o primeiro continente do mundo com impacto neutro no clima e assegurando a soberania, a segurança, a resiliência e a influência da UE a nível mundial”. “É imperativo colmatar urgentemente os défices de inovação e produtividade, tanto em relação aos nossos concorrentes a nível mundial como no interior da UE”, identificados nos relatórios de Mário Draghi e Enrico Letta, que “constituem uma base sólida sobre a qual faremos avançar o nosso trabalho de forma ambiciosa”.
“Para impulsionar a nossa competitividade, importa aproveitar todos os instrumentos e políticas de forma abrangente e coerente, tanto a nível da UE como a nível dos Estados-Membros. Manter o statu quo já não é uma opção”. “Sublinhamos a necessidade premente de uma ação decisiva (…) e apelamos a (…) esforços resolutos e coletivos em relação aos seguintes vetores de competitividade”:
1.1. Mercado Único: a Comissão deverá apresentar, até junho de 2025, uma “estratégia horizontal nova e abrangente para aprofundar o mercado único”, incluindo um roteiro com prazos e marcos claros.
1.2. Integração financeira: progressos na União da Poupança e dos Investimentos (até 2026) e na União dos Mercados de Capitais, e conclusão da União Bancária.
1.3. Política industrial: a Comissão deverá apresentar, com caráter prioritário, uma “estratégia industrial abrangente em prol de indústrias competitivas e empregos de qualidade”, para que “a UE continue a ser uma potência industrial e tecnológica”.
1.4. Desburocratização: Lançar uma “revolução em termos de simplificação” e assegurar um “quadro regulamentar claro, simples e inteligente para as empresas e reduzir drasticamente os encargos administrativos, regulamentares e de comunicação de informações, em especial para as PME”.
1.5. Defesa: “aumentar a prontidão e capacidades em matéria de defesa”, nomeadamente “reforçando a nossa base tecnológica e industrial de defesa”, e aproveitando o potencial da indústria espacial. O alto representante e a Comissão apresentarão, sem demora, opções de financiamento público e privado.
1.6. Inovação: “colocar a Europa na vanguarda da investigação e inovação a nível mundial, especialmente em matéria de tecnologias disruptivas”, e “cumprir o objetivo de atingir a meta de despesa de 3% do PIB em I&D até 2030”. Trabalhar sobre a proposta de Enrico Letta de uma “quinta liberdade” no mercado único dedicada ao talento e conhecimento, com ênfase em inovação e formação de competências.
1.7. União da Energia: “mercado da energia plenamente integrado e interligado”, assegurando o aprovisionamento de “energia limpa e a preços comportáveis”. Serão tomadas medidas urgentes.
1.8. Economia circular: maior eficiência de recursos e um “mercado integrado de materiais secundários, especialmente de matérias-primas críticas”. É esperado um ato legislativo da Comissão a este respeito.
1.9. Tecnologia: reforçar as capacidades e “promover tecnologias inovadoras”, acelerar a digitalização em todas as indústrias, garantindo a privacidade e a segurança. A Comissão apresentará propostas até junho.
1.10. Emprego: “aproveitar o talento”, “investir em competências” e reforçar o diálogo social, a igualdade de oportunidades e a redução das desigualdades, em linha com o Pilar Europeu dos Direitos Sociais.
1.11. Política comercial: “prosseguir uma política comercial ambiciosa, sólida, aberta e sustentável, articulada em torno da OMC, que defenda e promova os interesses, a diversificação económica e a resiliência da UE. Reforçaremos a nossa segurança económica, defendendo ao mesmo tempo uma economia aberta e construindo parcerias internacionais”.
1.12. Agricultura: setor agrícola competitivo, sustentável e resiliente, reforçando a sua posição na cadeia de abastecimento alimentar e assegurando uma concorrência leal a nível mundial e no mercado interno.
Quem acompanhe minimamente as políticas da UE, certamente reconhecerá que a maioria das propostas acima não soa a nada de novo, trata-se de uma repetição de intenções que ouvimos há décadas, como ao nível da desburocratização, mercado único, integração financeira, política industrial, energia e inovação.
Mesmo que os excelentes relatórios de Draghi e Letta, que inspiraram os 12 pontos acima, tragam alguma adaptação ao contexto mais recente, repetem em grande parte soluções há muito conhecidas e nunca implementadas por falta de capacidade e de vontade política, tornando-se assim irrealistas, em boa medida. Penso até que o reconhecerão, sabendo como funciona a UE por dentro, com todos os seus vícios.
Desde logo, o difícil processo decisório numa União a 27 é um fator que tem contribuído para a não concretização de soluções e continua presente, assim como os egoísmos nacionais, que até se tenderão a acentuar no atual contexto, dada a ascensão dos populismos e a fragmentação politica resultante, com realce para a fragilidade dos governos da Alemanha e da França, bem como a surgimento de líderes autoritários em países de Leste com posições divergentes, dificultando ainda mais as decisões a 27. Com o alargamento esperado da UE a mais países, a agilização do processo decisório é ainda mais premente.
Assim, mesmo que a UE reconheça agora as suas fragilidades e se comprometa a resolvê-las com urgência para enfrentar uma nova Administração Trump, como esperar que o faça em meses, com soluções maioritariamente já conhecidas, quando não o conseguiu em décadas, para mais num contexto político mais difícil que no passado? Este é o ‘elefante na sala’. Apesar de tudo, penso que é possível fazer alguma coisa e evitar o pior cenário, que é o desmembramento da UE e do projeto do euro.
Mario Draghi seria um excelente negociador para tudo o que tenha a ver com competitividade – incluindo a política comercial –, até por ter produzido um relatório detalhado sobre a matéria e ser um economista reputado e respeitado internacionalmente, após passar por cargos de grande relevo. Seria a sua segunda oportunidade para salvar o euro e, de forma associada, a UE, que Trump quererá dividir.
O que esperaria ouvir, em primeiro lugar, seria o anúncio de um ou dois nomes de peso para negociar em nome da UE com a Administração Trump em áreas chave, de forma integrada, pois será preciso usar todos os fatores de pressão possíveis. Trump já sinalizou que Elon Musk terá um forte impacto em várias áreas, desde a reforma da Administração à política externa, passando pela política de inovação.
Mario Draghi seria um excelente negociador para tudo o que tenha a ver com competitividade – incluindo a política comercial –, até por ter produzido um relatório detalhado sobre a matéria e ser um economista reputado e respeitado internacionalmente, após passar por cargos de grande relevo. Seria a sua segunda oportunidade para salvar o euro e, de forma associada, a UE, que Trump quererá dividir.
Será também preciso encontrar um nome de peso e gerador de consensos na área da defesa e política externa, para negociar uma solução de paz duradoura para a Ucrânia e o continente europeu que seja realista e o mais justa possível nas condições atuais e com os interlocutores existentes, pois não há progresso económico sustentável sem paz. É também disso que depende o futuro e o progresso da UE. Uma Ucrânia em paz e parte integrante da UE alargará ainda mais o seu mercado interno e o seu peso geopolítico – mesmo que, a curto e médio prazo, gere um peso financeiro de reconstrução, dependendo das condições de paz que forem negociadas –, bem como o interesse em aderir de outros países de Leste.
Recordo que, mesmo que a UE esteja mal em termos de competitividade – de forma mais notória nos últimos anos, em particular após o conflito na Ucrânia, que significou o fim do gás barato russo –, é um dos maiores mercados de consumo do mundo, no seu conjunto, e integrará mais países num futuro próximo, pelo que este fator deverá ser usado ao máximo nas negociações com a Administração Trump.
Como referi, Trump poderá também procurar dividir os países da UE negociando de forma bilateral, o que torna ainda mais premente a consensualização de interlocutores de peso, a meu ver.
Na declaração de Budapeste, gostaria ainda de ter lido, de forma mais concreta, as principais medidas urgentes sinalizadas nas áreas chave mais prementes face a discurso de Trump, como são o financiamento da defesa, a energia e a política comercial, pois serão também relevantes na negociação.
Recordo que Trump foi eleito prometendo:
- Obrigar os países europeus da NATO a pagar mais pela sua defesa (ameaçando mesmo tirar os EUA da Aliança ou não defender um país europeu que seja atacado se não tiver ‘pago a sua quota’) e acabar rapidamente com a guerra da Ucrânia (sem dizer em que condições, sabendo-se da proximidade a Putin);
- Aumentar a produção de petróleo, o que significa energia ainda mais barata para as empresas dos EUA, não querendo saber das alterações climáticas (irá novamente retirar os EUA do Tratado de Paris);
- Subir tarifas sobre produtos oriundos da UE (bem como os da China).
Ao nível da energia, com o fim do gás barato da Rússia, muitos países da UE começaram a comprar gás natural liquefeito (GNL) aos EUA, que é mais caro, mas é um elemento de transição ainda necessário. Ou seja, em matéria de gás natural, substituiu-se a dependência da Rússia pela dos EUA (mais nuns países do que noutros), que se torna agora mais um concorrente do que um aliado com Trump como presidente.
Se Trump pode ameaçar subir o preço do GNL ou cortar abastecimentos aos países da UE, estes também podem ameaçar diversificar e comprar menos, mas para tal devem começar rapidamente a encontrar fornecedores alternativos. Espero, por isso, algumas movimentações neste mercado proximamente.
Em suma, precisamos de uma UE que saiba negociar o seu futuro de forma dura e arguta a breve prazo.
2. Com uma UE possivelmente mais fragilizada após a vitória de Trump, torna-se mais urgente a reforma primordial do Estado e do sistema fiscal, preparando-nos para crescer mais com menos apoios europeus
Com o fim do PRR e o expectável corte de apoios da UE no futuro Portugal 2040, temos de rapidamente elevar a nossa capacidade endógena de gerar investimento, via reforço da poupança interna, e de o atrair, via reforma do Estado, bem como do sistema fiscal, para que seja mais simples e atrativo. Esta estratégia torna-se ainda mais urgente com a vitória de Trump, pois poderá enfraquecer ainda mais a economia da UE e o seu orçamento, bem como dividi-la ainda mais a nível político, se não houver ações decisivas como as referidas no ponto anterior. Portugal deve, por isso, ‘esperar o melhor e preparar-se para o pior’, fazendo o nosso ‘trabalho de casa’.
São várias as razões para esperar menos entradas líquidas de fundos europeus em Portugal nos próximos anos, pelo que temos o dever de aproveitar muito melhor este último grande afluxo de apoios. Com efeito, após o fim do PRR será preciso pagarmos a sua componente de empréstimos e, no que se refere às subvenções, elas foram conseguidas à custa de orçamentos futuros da UE (o Mecanismo de Recuperação e Resiliência, onde se insere o PRR, foi financiado com emissão de dívida da UE), significando que haverá menos dinheiro para distribuir pelos países no próximo quadro plurianual de financiamento da UE (onde se inserirá o Portugal 2040), com a agravante que haverá novas áreas de apoio (prioridades) e se espera a entrada de novos membros (prioritários no acesso aos fundos de coesão), incluindo a Ucrânia, a que se juntarão os prováveis custos da sua reconstrução (que estarão também em jogo nas negociações de paz). Acresce que não há condições políticas para subir as contribuições dos países para o Orçamento da UE (apenas 1% do PNB), como sugeriu o nosso Primeiro-ministro, nem avanços em receitas alternativas.
Portugal tem, por isso, de se preparar para viver com muito menos fundos da UE o mais cedo possível. Em particular, precisamos de aumentar rapidamente a nossa competitividade e o nosso crescimento económico potencial, que segundo o Ageing Report 2024 irá baixar de forma drástica após o fim do PRR.
Portugal tem, por isso, de se preparar para viver com muito menos fundos da UE o mais cedo possível. Em particular, precisamos de aumentar rapidamente a nossa competitividade e o nosso crescimento económico potencial, que segundo o Ageing Report 2024 irá baixar de forma drástica após o fim do PRR.
Infelizmente, não há sinais no Orçamento de Estado de 2025 nem no Plano Orçamental Estrutural de Médio Prazo – com o qual o governo se comprometeu perante a Comissão Europeia – de uma reforma profunda do Estado, que permita baixar significativamente o peso da despesa corrente e abrir margem no futuro para uma descida mais expressiva da carga fiscal e um aumento do investimento público nacional que mais do que compense a perda esperada de fundos europeus.
De facto, o rácio sinalizado de uma entrada por cada saída de funcionários públicos apenas congela um número historicamente alto de efetivos sem correspondência na qualidade dos serviços públicos, como sabemos. Precisamos de um rácio inferior a 1 em resultado de processos de desburocratização e de digitalização da Administração Pública, entre outras medidas de gestão para melhoria da eficiência e da composição da despesa pública, que é o objetivo final da reforma do Estado. A consequente libertação de efetivos em áreas excedentárias, após essas medidas, permitiria suprir carências em áreas deficitárias, mais a entrada complementar de trabalhadores onde fosse necessário, mas, em média, o rácio deveria ser inferior a 1. Só assim será possível baixar o peso da despesa corrente no PIB acomodando aumentos salariais (incluindo os já decididos) e progressões por mérito, cruciais para uma gestão eficiente.
Baixar a carga fiscal é fundamental para atrairmos mais investimento privado – recordo que Portugal tem o quarto sistema fiscal menos atrativo da OCDE, segundo a reputada Tax Foundation – e elevar a nossa produtividade, enquanto o aumento do investimento público visa inverter a tendência de queda do stock de capital público, que também penaliza a economia, além de agravar as desigualdades. É ainda crucial estimular um aumento da poupança interna e a sua canalização para investimento produtivo.
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