Um salário mínimo de 750 euros? Primeiro estranha-se, depois entranha-se
Há duas maneiras de olhar para a discussão do aumento do salário mínimo nacional: à Belmiro de Azevedo ou à Soares dos Santos. Duas visões distintas, desassombradas e genuínas.
Um mês depois da revolução de Abril foi criado o salário mínimo nacional (SMN) em Portugal, na altura 3.300 escudos. Foi uma poderosa ferramenta contra a pobreza (abrangia 56% dos trabalhadores) e contra a desigualdade (no setor têxtil, por exemplo, as mulheres ganhavam, em média, mil escudos).
E qual foi na altura a reação dos patrões? “Houve uma primeira reação de susto. Muitos patrões pensaram que o caminho deles era a falência”, explicava nesta entrevista Avelino Pacheco Gonçalves, o ministro do Trabalho do I Governo provisório. Ao invés de falência, o consumo disparou e puxou pela economia, ajudando-a a amenizar os efeitos da crise do petróleo de 73/75.
Muitos portugueses começaram a comprar as primeiras mobílias, houve uma corrida aos fogões e eletrodomésticos e estava escancarada a porta para uma sociedade de consumo que, simbolicamente, chegaria três anos depois do 25 de Abril com a vinda da Coca-Cola para Portugal. O poeta Fernando Pessoa já tinha inventado o slogan para a marca norte-americana: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.
Foi o que aconteceu com os empresários que, depois do “susto”, perceberam que, mais do que um custo, estavam a criar mercado. Uma economia de mercado que levou ao surgimento de grandes grupos industriais e de distribuição como a Sonae que ajudou a democratizar o consumo em massa com a marca Continente.
“O salário mínimo nacional não dá para nada”
Aliás, é interessante olhar para a atual discussão sobre o aumento do salário mínimo com os óculos dos grandes patrões da distribuição em Portugal, ambos sem papas na línguas e ambos, infelizmente, já falecidos: Belmiro de Azevedo e Alexandre Soares dos Santos.
Soares dos Santos dizia, em 2014, que “o salário mínimo nacional não dá para nada. Não há ninguém que vá trabalhar com gosto, ganhando pouco”. E tinha razão. Mesmo hoje, com os 600 euros que se recebe e os 11% que se tem de entregar à Segurança Social, um trabalhador leva para casa apenas 534 euros. “Não dá para nada.” Basta olhar para os dados do Eurostat que ordena os países da Europa em função do salário mínimo, em paridade do poder de compra: somos os oitavos a contar do fim.
Salário mínimo na Europa, em paridade de poder de compra
O aumento do SMN, como já vimos, cria mercado interno, ajuda as empresas saudáveis a ter menos concorrência de empresas zombies, e até ajuda a encher os cofres do Estado.
Nem todos pensam assim. É o caso de Belmiro de Azevedo que fugia do discurso socialmente simpático do “não dá para nada”, e olhava para o salário mínimo associado ao emprego e à produtividade.
Sobre a produtividade, e no seu estilo desassombrado, Belmiro dizia que “os salários só podem aumentar quando um trabalhador português fizer uma coisa igual, parecida, com um trabalhador alemão ou inglês, seja o que for”. Olhando para esta tabela (em baixo), facilmente se conclui que o trabalhador português não faz (ou não produz, para ser politicamente mais correto) o mesmo que um alemão ou um inglês.
Produtividade real do trabalho por hora
O então chairman do grupo Sonae defendia que a competitividade em Portugal só podia ser estimulada através da “educação das pessoas”. Tinha razão. Não podemos almejar ter o mesmo nível salarial de países que têm o dobro ou o triplo do nosso nível de educação. Os números da Pordata mostram que 42,2% dos trabalhadores portugueses não têm o Ensino Secundário ou o Superior, o pior registo da União Europeia. A média comunitária é de 16,5%.
“Se não for a mão-de-obra barata, não há emprego”
O empresário nortenho dizia mais. Quando confrontado, em 2013, com o aumento do salário mínimo, disse esta frase que deixou meio país boquiaberto: “Diz-se que não se devem ter economias baseadas em mão-de-obra barata. Não sei por que não. Porque se não for a mão-de-obra barata, não há emprego para ninguém”.
A tese de que aumentar salários provoca um aumento do desemprego foi dominante durante décadas na teoria económica. Basta recordar o que dizia a troika quando esteve em Portugal. Ao contrário do que pensavam muitos liberais da Escola de Chicago, houve um economista que empiricamente conseguiu demonstrar que a relação entre o salário mínimo/desemprego não era tão linear.
Alan Krueger é mais conhecido por ter sido conselheiro económico de Obama e Clinton. Em 1994, assinou um paper que mexeu com os alicerces da teoria económica. Krueger analisou o comportamento do desemprego nas mesmas cadeias de fast food em Nova Jérsia (onde tinha havido um aumento do salário mínimo) e na vizinha Pensilvânia (que não aumentou o salário mínimo). Os resultados surpreenderam a comunidade científica: o emprego aumentou em Nova Jérsia e baixou nos restaurantes das mesmas cadeias na Pensilvânia.
Portugal não é a Nova Jérsia nem a Pensilvânia, mas também é a prova de que o aumento do salário mínimo não traz necessariamente mais desemprego. Até porque o nosso verdadeiro problema não é o salário mínimo, é o salário médio.
Portugal na cauda da Europa no índice de Kaitz
O índice de Kaitz mede a relação entre o salário mínimo e o salário mediano de uma economia. Segundo os números do INE, o salário mínimo em Portugal (600 euros) representa mais de 60% do salário médio (954 euros).
Olhando para o ranking europeu, Portugal aparece como o país onde o salário mínimo é o mais próximo do salário médio (ver gráfico em baixo), ou seja, estamos a assistir a um nivelamento por baixo porque a remuneração mínima tem crescido a uma velocidade muito superior aos restantes salários da economia. Na última década, de 2009 a 2019, o salário mínimo aumentou 33,3% em termos nominais e 18,3% em termos reais. Já a remuneração regular média mensal cresceu apenas 9,9% em termos nominais e caiu 2,4% em termos reais.
Peso do salário mínimo no salário médio
O problema não é o salário mínimo ser baixo, é o salário médio ser baixíssimo. O primeiro sobe por decreto (literalmente, por decreto-lei) e o segundo são as empresas que o determinam, individualmente ou em contratação coletiva.
O Estado também pode e deve ajudar a “puxar” pelo salário médio com as ferramentas de que dispõe, sejam portarias de extensão, seja a aposta na formação, seja criando um regime fiscal competitivo. Como lembrava há dias António Saraiva da CIP, se Emmanuel Macron cumprir a promessa de baixar impostos em França, Portugal ficará no primeiro lugar do ranking dos países que têm as taxas marginais de IRC mais elevadas.
António Costa, segundo o Expresso, também está a tentar, e bem, replicar o Acordo de Concertação Estratégica na Concertação Social de 1996. Este acordo, do tempo de António Guterres, teve como objetivo definir um referencial para a negociação coletiva que servisse de orientação para a atualização das grelhas salariais. Não sendo mandatório, funcionou como instrumento de pressão e, em 1996, foi seguido em todas as renovações das convenções coletivas.
Para já, a única coisa certa é o aumento do salário mínimo para 750 euros até 2023, o que vai encurtar ainda mais a diferença face ao salário médio de 954 euros. Esta aproximação é um estímulo negativo para que os trabalhadores possam apostar na sua formação e valorização individual. Isto não é estranho num país com tão baixas qualificações? Estranha-se e não se entranha.
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