Uma ‘bomba relógio’ na Associação Mutualista?

A “novela” em torno do Montepio, da Associação Mutualista e da Santa Casa teve alguns desenvolvimentos interessantes na última semana.

Convém primeiro reforçar um ponto que muitas vezes gera confusão. Há o Montepio, que é um banco, e há a Associação Mutualista, que é a acionista do banco. O que se têm falado é dos problemas da Associação. Há um erro de perceção em muito do debate que se está a fazer sobre esta questão. Se o problema não está no Montepio, então lamento, mas bater no Banco de Portugal não faz sentido. O Banco de Portugal supervisiona o Montepio, não a Associação.

Ora, ao Banco de Portugal compete apenas garantir que os futuros acionistas do Montepio são idóneos e terão capacidade para futuras necessidade de capital, se tal for necessário. Isso é claro no caso da Santa Casa. Não compete ao Banco de Portugal avaliar as contas da Associação. E muito menos compete-lhe avaliar se o negócio de entrada da Santa Casa no capital do Montepio é bom ou mau para a Santa Casa.

Essas funções, de supervisionar a Associação Mutualista e de garantir que a Santa Casa faz um bom negócio na entrada no Montepio compete ao governo, e em particular, ao ministro Vieira da Silva.

A primeira notícia que surgiu na semana passada é que a Santa Casa vai entrar no capital do Montepio, com uma participação de 2%, pela qual vai pagar 50 M€. Repete-se aqui os erros que já tinha falado no final de dezembro:

  • Qual o interesse estratégico para a Santa Casa de ter uma participação praticamente irrelevante num banco?
  • Como pode o montepio valer 2 mil M€, acima do valor de mercado do BPI e mais de metade do valor de mercado do BCP (quando tem uma quota de mercado que é um quinto do BCP)?
  • Que justificação para colocar 25% das disponibilidades financeiras da Santa Casa num único investimento? Sendo que sempre é melhor que por 200 M€ (que são as disponibilidades financeiras todas da Santa Casa), que politicas de gestão e diversificação de portfolio há na instituição?
  • Que retorno terá esse investimento de 50 M€, e se é superior ao retorno que a Santa Casa têm tido nas aplicação financeiras que vai ter de vender para comprar os 2% do banco?
  • O que vai acontecer no futuro, se o Montepio precisar de novos aumentos de capital?

Por outro lado, ficámos a saber que a Associação Mutualista teve um “crédito fiscal” superior a 800 M€, e que isso permitiu passar de uma situação líquida negativa de mais de 200 M€ para uma situação líquida acima dos 500 M€.

Torna-se claro, se mais provas fossem precisas, que o problema financeiro não estará tanto no Montepio, mas sim na Associação Mutualista. Conforme escrevi aqui no ECO há 3 meses atrás: “A Associação Mutualista continua a ser um segredo que ninguém sabe muito bem o que se passa. Mas temos a noção que tem 600 mil aforradores e que vive numa situação financeira muito difícil.”

Basta ver que entre 2014 e 2017 a Associação passou de uma situação líquida de 200 M€ para um valor negativo próximo dos 300 M€ (antes da referida operação fiscal).

Mas analisemos um pouco este “estranho” pedido, de uma entidade que não têm de pagar IRC e que renuncia a essa isenção.

Até agora, a Associação tinha uma isenção de IRC ao abrigo do artº 10, nº2. Essa isenção não depende de qualquer autorização das Finanças, mas apenas de a entidade cumprir os requisitos necessários à isenção (exercício de atividades de natureza social; que seja afeto a essas atividades pelo menos 50% do lucro que seria tributável em IRC; que os órgãos sociais não tenham interesse direto ou indireto nos resultados da exploração das atividades económicas destas entidades).

Temos assim que a Associação tinha esta isenção e renunciou a ela. Refira-se que ao contrário de outras isenções fiscais, esta isenção de IRC não prevê nenhum prazo mínimo para a renúncia. Ou seja, mais tarde a Associação pode voltar a ter a isenção, bastando voltar a alterar os estatutos. Isto sem que tenha de fazer qualquer pedido à AT. A função da AT aqui é apenas controlar se a isenção é devida, não havendo uma decisão prévia de atribuir isenção ou não.

Até porque a forma como a Associação deixou de ter isenção foi quase “infantil”. Bastou alterar os estatutos, por os gestores a receber prémios de desempenho, e lá se deixou de cumprir um dos requisitos.

Assim, a Associação registou “Ativos por impostos diferidos” (DTA), ou seja, ativos por um crédito fiscal a ser usado no futuro. Esses ativos, ao serem registados, aumentaram o lado do balanço (ativos), tendo do outro lado do balanço, o correspondente aumento da situação líquida. Percebe-se por estas artimanhas, como veremos a seguir, que é uma fuga para a frente. Isto, meu caro leitor, é apenas e só o desespero de manter a Associação à tona. Muito mal devem andar aquelas contas para que se façam estes esquemas.

De onde veem estes DTA? Parte provém de prejuízos de anos anteriores e outra parte de diferenças de tratamento fiscal e contabilístico dos produtos de poupança que a associação comercializa.

As entidades que são sujeitas a IRC podem reportar os prejuízos fiscais (previsto no artº 52 do Código de IRC). Ou seja, nos anos em que apuram prejuízos, o valor da coleta de IRC é zero. Nos anos que apuram lucros, podem usar esses prejuízos para reduzir os lucros, e com isso pagarem menos impostos. Desta forma, o “benefício fiscal” não ocorre quando se tem prejuízos, mas apenas nos anos seguintes, se houver lucros. Mas este reporte têm regras e limites, como vamos ver.

Aqui é que se pode ver como isto é uma fuga para frente, que melhora as contas da Associação em 2017, mas que terá custos futuros que irão agravar o problema. É que das duas uma:

  • A Associação começa a ter lucros, e usa os prejuízos. Nesse caso, terá de pagar IRC, dado que só pode usar os prejuízos até 70% do lucro do ano. Vejamos um exemplo: admita-se que em 2019 a Associação tem 100 M€ de lucro (não me perguntem como, aceitem a hipótese). Se tivesse mantido a isenção, pagaria zero de IRC (mas teria as contas de 2017 contabilisticamente muito pior). Tendo renunciado à isenção, pagará 30 M€ de IRC (dado que só pode usar prejuízos até 70% dos 100 M€).

Ou

  • A Associação continua a ter prejuízos, e com o passar do tempo, os prejuízos deixam de puder ser usados. Nesse caso, a Associação tem de reverter os DTA, o que implica uma redução do ativo, e consequentemente uma redução da situação líquida. No limite volta ao ponto de partida, tendo “apenas” ganho margem contabilística por alguns anos. Mas será uma redução da situação líquida num contexto de prejuízos. O que naturalmente agravará o problema.

No entanto a operação levanta dúvidas. Não dou por garantido que a Associação venha a puder usar o reporte de prejuízos, dado que este foi apurado quando a associação era isenta de IRC. Talvez volte a este assunto mais tarde.

Em cima disto tudo, a Associação Mutualista valoriza nos seus ativos o Montepio em 2 mil M€! Sucede que o valor de mercado do banco é bastante inferior.

Sem o efeito dos DTA e se o Montepio estivesse no balanço da Associação por um valor mais próximo da realidade, o que sucederia? A situação líquida da Mutualista seria negativa, porventura em 500-700 M€.

Só que o problema não é apenas contabilístico. É sobretudo de “cash”. A Associação tem 1.100 M€ mais a participação no Montepio para fazer face a responsabilidades para com os seus associados de 3 mil M€. A situação negativa do ponto de vista financeiro significa que os aforradores da Associação Mutualista têm neste momento uma perda potencial que pode facilmente chegar aos 15%-20% do valor das suas aplicações.

Esse é o verdadeiro problema. Estamos a falar de 600 mil pessoas (muitas que votam no PS ?) que podem perder parte das suas poupanças.

Em síntese, esta solução engenhosa empurra o problema com a barriga. Mas no futuro, ou custará dinheiro à Associação, via IRC que terá de pagar, ou agravará ainda mais as contas. Ouvem o “tic-tac” da “bomba relógio”?

Depois se isto estoirar, não venham dizer que não sabiam de nada, que não viram nada e que a culpa é de terceiros.

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