Variações Vírus
O covid-19 representa o colapso da liquefacção da liberdade e da identidade, remetendo tudo para a natureza efémera dos desejos e para a condição mortal dos indivíduos.
A crise do covid-19 tem uma dimensão global. A fase de contenção passou entre o silêncio dos políticos e a fábula dos relatórios da OMS. Para além do vírus que circula silencioso pelo Mundo globalizado, circula também a complacência das autoridades e o medo das populações. O leitor que percorre estas linhas no écran luminoso do computador sente-se seguro? Houve demasiada passividade, demasiada confiança na ciência, demasiada dependência da China, demasiada despreocupação. Enquanto o vírus seguia a sua biologia, as autoridades globais assobiavam para o ar espesso e estranho, tal como uma criança que fechada num quarto escuro assobia para o vazio para afastar o medo. Agora que o vírus circula em classe turística pela Europa, o pânico espreita nas ruas vazias do norte de Itália.
É possível fazer a viagem de automóvel entre as vilas de quarentena no norte de Itália até qualquer parte da Europa sem que haja um controle, uma paragem, uma avaliação do estado do viajante. Este pormenor parece uma divagação, mas aponta para uma dimensão que a crise covid-19 transporta para a realidade quotidiana – a tensão entre a liberdade de circulação e a segurança comum.
Neste momento, a União Europeia opta pelo valor da liberdade de circulação, um sucedâneo indispensável à liberdade económica e ao comércio dos bens. A decisão de manter as fronteiras abertas e não suspender o Acordo de Schengen pretende manter a ilusão da normalidade, deixa espaço para o pensamento mágico e permite que as declarações políticas se confundam com a resignação de uma vibração maternal.
A lógica do isolamento e da quarentena é uma opção pela segurança comum, uma medida em que uma parcela da população em zona de contaminação é objectivamente sacrificada em prol de um bem maior que é a saúde pública da comunidade. A decisão do cordão sanitário é uma medida medieval, mas a sua não aplicação pelas democracias da Europa representa que o valor do indivíduo se sobrepõe ao valor da comunidade, ignorando que a viabilidade do indivíduo é matéria constitutiva da resiliência da comunidade. Não são máscaras cirúrgicas, nem fatos lunares, nem luvas coloridas, nem sprays à base de álcool que vão proteger a Europa.
A doença misteriosa, o vírus exótico, a morte no seio das comunidades homogéneas tem obviamente uma incontornável repercussão política, um reflexo ideológico muito próximo daquele que se projecta sobre a ameaça terrorista ou sobre os fluxos migratórios. A doença é politicamente percepcionada como uma ameaça externa à comunidade, o que pode justificar a adopção de um perfil étnico como modo expedito de combater e de destruir o inimigo invisível.
Esta atitude está patente na desconfiança relativamente à presença de uma comunidade com origem na China, mas em função da internacionalização do portador do vírus, este isolamento social poderá ser extensível a qualquer indivíduo que chegue de qualquer zona afectada pelo covid-19.
Entre a pureza e o perigo, as sociedades humanas reforçam as respectivas identidades em torno de uma ideia de higiene em contraposição a uma ideia de contaminação. A contaminação vem sempre de um elemento presente no interior da comunidade mas que vem do exterior, alguém que está fora do seu lugar – imigrantes, minorias religiosas ou étnicas, grupos sociais marginalizados. A biologia do vírus não escapa à sociologia das comunidades políticas. As regras do convívio social irão certamente mudar face à pressão da disseminação e ao medo exponencial da população.
O vírus tornou-se uma variação mutante que percorre o Mundo à velocidade da globalização. São tantas as críticas económicas e políticas ao fenómeno da globalização e foi preciso a dimensão micro de um vírus originário da China para expor a natureza frágil do Mundo global, para revelar a constituição volátil de um fenómeno poderoso que enriquece o Mundo e melhora o índice de bem-estar da população.
Afinal, a futilidade das construções políticas humanas não resistem aos imperativos deterministas e darwinistas de um simples e complexo vírus. Um outro efeito colateral do vírus é a febril percepção de que a China é no tempo contemporâneo a grande fábrica do Mundo capitalista, de tal modo que a regressão estática da China representa a paralisação dinâmica do Ocidente em particular e do Mundo global na sua planetária extensão.
O covid-19 vem realçar a fluidez do Mundo actual, vem sublinhar uma espécie de “crónica da sociedade líquida”. Apesar de todas as ilusões, não existe uma comunidade global, mas sim um aglomerado de indivíduos em permanente competição face a uma permanente ameaça. As certezas são mínimas, os pontos de estabilidade e de referência dissolvem-se no éter da globalização. A identidade dos indivíduos desliza ao sabor efémero das escolhas particulares no Mundo global da produção e do consumo.
Tal como um vírus, as escolhas individuais estão sujeitas às oscilações do mercado, estão dependentes da estabilidade de um comércio global que não é senão a perpétua procura de uma identidade fluida alimentada pela desordem dos desejos. O covid-19 representa o colapso da liquefacção da liberdade e da identidade, remetendo tudo para a natureza efémera dos desejos e para a condição mortal dos indivíduos. Pela ganância, pela gula, pelo consumo, o vírus circula pela fragilidade do factor humano.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico
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