Com este plano nacional de racionamento da vacina, Portugal é um País forçosamente adiado para o Horizonte 2022.

O Plano Nacional de Vacinação é um documento comovente. A maravilha fatal contra a pandemia. No sermão aos peixes, o primeiro-ministro revela a lógica e os fundamentos para o racionamento do ouro líquido incolor, vulgo vacina. Aquilo que é e sempre foi no discurso político a solução final para a crise pandémica é apresentada aos portugueses como um elixir frágil, fugaz, fugidio, uma pequena luz na esperança de um led romântico nos confins de um túnel.

Os portugueses, talvez cansados da pandemia, imaginavam já que a vacina lhes daria asas para voarem livres sobre a terra por entre nuvens de gente, festas, viagens, como virgens recicladas portadoras de um passaporte para a libertação da libido. Mas não, o primeiro-ministro apresenta-se ao volante de um camião de frio que congela as expectativas dos cidadãos impacientes. A imaginação popular choca de frente com a ficção política e o barulho metálico enche o túnel com o eco do confinamento.

Talvez as coisas tenham de ser como são. O plano de racionamento divide os portugueses em três classes, exactamente como a escala dos confinamentos, o que me parece bonito, apropriado, coerente, democrático. No fundo a igualdade é um conceito relativo e na proximidade do recurso escasso em forma de vacina, a política tem de se resumir à insignificância da banalidade e da realidade. O que prejudica a mensagem do Governo é o anúncio leviano da existência de castelos contra a Covid, é a declaração triunfalista de que as moléculas gigantes no combate pelo novo mundo já entraram em acção. Mas tenham paciência, tudo tem o seu tempo, o destino marca a hora e de momento é o circuito interminável do túnel tenebroso de um comboio fantasma.

Este registo político enxuto e rente ao chão apela para a imaginação política, estimula uma análise predatória e provocadora da realidade, uma visão da política para além do bom senso, distante da resignação, algo que convoca a ironia ao saber e a crítica surrealista ao poder. Nada de técnica, bem-vindos ao reino da política pura.

Quando se observa a lista de prioridades no plano de racionamento da vacina, salta imediatamente à vista uma ordenação orientada por uma espécie de sentimentalismo exuberante, extravagante, barroco. A pirâmide social tem no topo os mais frágeis, os mais sensíveis, os mais desfavorecidos, talvez numa aplicação involuntária do “Princípio da Diferença” em que as desigualdades são justificadas e legitimadas apenas e somente quando beneficiam os esquecidos da sociedade. É tocante observar os eternos excluídos incluídos na nova ordem patológica de uma sociedade livre. Bons sentimentos, má consciência, critérios importados da Europa civilizada?

Na mesma lista é possível observar também a preponderância da linha da frente, todos aqueles que prestam cuidados médicos à sociedade, pois se os cuidadores caem no labirinto da covid, quem passará a cuidar dos cuidadores? É a sacralização do SNS, a nova religião das sociedades contemporâneas avançadas no limiar da política XXI. Os sacerdotes protegem a sociedade da ira dos Deuses. É a política dividida entre o paganismo pós-moderno e a superstição medieval.

As corporações que mantêm o funcionamento do Estado profundo sobem igualmente ao topo da pirâmide. O Estado tem de continuar a funcionar, a manter a ordem, a cobrar impostos, a distribuir vacinas, a garantir a permanência e a estabilidade de uma rotina administrativa previsível e fiável. O critério que prevalece é uma ordenação alicerçada num centralismo burocrático, operacional, mecânico, em que o valor humano é medido pela relevância ocupada no grande mecanismo da governação. É o admirável novo mundo em que as secretárias e os écrans Zoom se enchem de funcionários zelosos na administração do fim do mundo.

Na base da pirâmide social pandémica está a maioria da população. O homem comum, sem patologias, a mulher comum transformada por um qualquer extravagante face-lift, os gigantes guerreiros samurais que mantêm a economia viva, vibrante, produtiva, mas paralisada pela pandemia. Este contingente que bombardeia a Metropolis com bens, serviços, consumo, mais o sentido de uma sociedade moderna em programação orientada para o progresso e para a prosperidade são a tecla esquecida no teclado do grande plano de racionamento. Esta é a superfície produtiva da sociedade, esta é a população que garante a grande custódia da riqueza, os rostos anónimos inscritos no motor de uma economia moderna. Pela aplicação de um critério racional, utilitário, clássico, estes são os primeiros na hierarquia de uma viabilidade vibrante e económica, mas os últimos no plano de racionamento da vacina. Subitamente surge-me a imagem de Chaplin a comer uma bota.

Em política e na escrita política é preciso ter a coragem da desconstrução para se poder ser construtivo. Com este plano nacional de racionamento da vacina, Portugal é um País forçosamente adiado para o Horizonte 2022. Conduzidos pela ansiedade e pela culpa resta-nos uma sala de espera algures numa loja de animais de estimação, ou num centro de saúde, varrido em permanência por um pêndulo coberto de coroas vermelhas. O futuro tem as cores psicadélicas de uma paisagem no lado errado da montra.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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Vax Costa

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