
Vox Ventura
Em vésperas de presidenciais, o Chega apresenta um governo-sombra. É difícil resistir à clássica inversão dos termos políticos e observar a coisa como uma sombra de governo.
A democracia portuguesa está tomada por um homem só. Um homem só que afirma representar a verdadeira nação. Na tradição dos homens providenciais, Ventura faz o discurso contra tudo e contra todos os que representam a ordem democrática instalada. A democracia portuguesa está refém do discurso de um homem que fundou um partido como quem refunda a essência da “portugalidade”. Perante o caos de um discurso político errático, os inimigos estão identificados e são sistematicamente denunciados, ameaçados, insultados. Ventura fala a várias velocidades para chegar a todos, todos, todos. Colocando-se na posição moral do último português genuíno, Ventura equaciona a democracia com o sistema, com a corrupção, com a imigração. O sistema é uma conspiração contra os portugueses, a corrupção é o domínio da elite sobre o regime, a imigração deve ser erradicada para restabelecimento das desigualdades naturais em prol da supremacia dos portugueses. Neste sentido o Chega é um projecto político com a noção que arrasta um projecto social e cultural que pretende defender Portugal dos estrangeiros, defender a Nação da esquerda, defender o Povo do Governo.
O Chega é um partido que tem em mente a ideia de uma “longa marcha”, mas que tudo fará para que o movimento político acelere a história até dominar o regime. E dominar o regime é acabar com o domínio do PSD e do PS ponto final. Intelectualmente pouco sofisticado, o Chega apela a todos os ressentimentos, a todas as ansiedades, a todos os excluídos, a todos os desiludidos, a todos os saudosistas, utilizando um discurso político vulgar, violento, brutal, provocatório. Os princípios políticos pertencem a uma elite que Ventura dispensa e despreza. O único princípio político válido no Chega é o princípio da acção – Agir para agitar. Agitar as eleições, perturbar as instituições, provocar as convenções, tudo em nome do restabelecimento de uma supremacia política que represente a identidade nacional traída pelos valores de um socialismo cosmopolita e democrático. Ventura pretende destruir o compasso da “grande sociedade”, pretende explodir com o relógio do progresso, sonha com a anulação dos últimos cinquenta anos para retomar o calendário do Portugal que pertence aos portugueses.
Por isso, Ventura fala para os portugueses com a certeza de que os portugueses o entendem e o compreendem. O projecto político do Chega despreza as elites educadas e bem-pensantes porque estas são as responsáveis pelo socialismo e pelo domínio de uma minoria que usa a democracia para extrair rendas perpétuas e proveitos próprios. A retórica de Ventura apela aos sentimentos primários dos portugueses excluídos pela democracia para poder oferecer ao país a verdadeira liberdade e o verdadeiro governo nacional. Para construir este Portugal novo, Ventura promete destruir o Portugal dos vícios, dos interesses, das mentiras, tudo codificado na sofisticada designação da “bandalheira”. Ventura é um libertário e um autoritário no alto da sua indignação que afinal é a indignação da Nação. No seu delírio de grandeza, que confunde com o destino, Ventura é Portugal e Portugal é Ventura.
O Chega é um permanente auto-de-fé. Ventura é um talk show em digressão. O Chega não tem políticas, mas faz política generalista. Os portugueses estão cansados de promessas que nunca foram cumpridas. Os portugueses estão desiludidos com os detalhes das políticas que ninguém entende ou domina. Logo o Chega representa o horizonte geral da política sem os detalhes técnicos das políticas. A ideia da política sem políticas faz de Ventura o génio que a nação aguarda e deseja – Perceber em cada instante a vontade dos portugueses e projectar a vontade dos portugueses em cada momento político. É neste sentido que Ventura se considera um soberanista, na afirmação do futuro ideal nacional contra a ingerência de um qualquer super-estado europeu.
Na realidade, o Chega não é um partido porque o Chega é um culto. Em vésperas de presidenciais, o Chega apresenta um governo-sombra. É difícil resistir à clássica inversão dos termos políticos e observar a coisa como uma sombra de governo. O Chega recorre a uma prática que não é comum nos partidos da direita radical nem habitual na tradição política nacional. A operação mediática tem como propósito político provar aos portugueses que o Chega está pronto para governar e que Ventura é o seu profeta. Ninguém é profeta na sua terra, mas Ventura é a excepção com que Portugal foi abençoado – Vox populi, Vox dei.
A candidatura de Ventura às presidenciais vem agitar ainda mais a incerteza de um regime em crise de identidade. A candidatura de Ventura reduz as presidenciais à discussão da segunda volta. Mais um milagre de Ventura – As verdadeiras presidenciais só acontecem na segunda volta. E se os portugueses não votassem na primeira volta?
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