Depois de um dia de trabalho a conduzir ambulâncias, Bruno faz ainda umas horas num bar para conseguir fazer face às suas despesas mensais. Número de jovens com dois empregos está a aumentar.
Sobrava-lhe cada vez mais mês ao fim do seu salário. A expressão é brasileira, mas ilustra bem a situação para a qual foi atirado Bruno com o aumento do custo de vida. “Houve alturas em que não tinha dinheiro para comer a meio do mês”, conta. E foi assim que este jovem decidiu ter mais do que um trabalho: além de conduzir ambulâncias numa unidade hospitalar de referência em Lisboa, passou a trabalhar também num bar para conseguir dar respostas a todas as suas despesas.
Bruno, 27 anos, não é, contudo, caso único. Num ano apenas, o número de profissionais da chamada geração millennial (nascidos entre 1982 e 1994) com dois empregos passou de cerca de dois em cada dez para em torno de três em cada dez. E entre os profissionais da geração Z (nascidos entre 1995 e 2004), esse aumento foi ainda mais pronunciado, mostra um estudo recente da consultora Deloitte.
Os baixos salários e o disparo dos preços da habitação são identificados pelos economistas ouvidos pelo ECO como duas das possíveis causas dessa evolução do universo de jovens que, para honrar os seus compromissos financeiros, acumulam ocupações profissionais.
Mas voltemos a Bruno. Com o 12.º ano feito num curso profissional de Técnico de Arquitetura, nunca conseguiu trabalhar na sua área. Ainda assim, o emprego que encontrou permitiu-lhe começar a morar sozinho “sem qualquer apoio”. Até que a “subida brutal da inflação” fez o caso mudar de figura. “Ia ao supermercado e tinha de abdicar de alimentos para poder conseguir pagar as outras contas e dívidas”, relata. Passou a fazer, por vezes, mais horas no centro hospitalar onde trabalha, mas nem isso foi suficiente. E teve mesmo de arranjar mais um emprego.
“É bastante difícil conciliar [os empregos]”, confessa. “Chegamos ao ponto de abdicar da nossa vida e de fazer o que gostamos”, assinala este jovem.
Por exemplo, há oito anos que era bombeiro voluntário no ativo, mas teve de passar à reserva, uma vez que, com a “sobrecarga dos empregos”, já não tinha tempo para essa atividade. “Tenho vontade de ter apenas uma ocupação, mas para isso é preciso que valorizem o meu trabalho, repondo a minha carreira de auxiliar de ação médica, aumentando o meu salário sem que isso aumente também as minhas horas de trabalho, e que ajustem o custo de vida, porque está insuportável”, apela Bruno.
E assegura que conhece “bastante jovens” na mesma situação em que se encontra, havendo mesmo, diz, quem, depois do horário laboral, faça ainda serviço de estafeta nas plataformas de entregas, como a Glovo, para “ganhar uns trocos por dia”.
Inflação fez emagrecer salários
Por efeito, também, do conflito em curso no leste europeu, a inflação atingiu em 2022 o nível mais elevado desde 1992: 7,8%. E apesar de terem aumentado em termos absolutos, os salários não conseguiram acompanhar essa evolução: em termos reais, caíram, pois, 4%, emagrecendo o poder de compra dos portugueses. Isto num país que, mesmo antes desta crise, já estava a braços com baixos vencimentos.
Não espanta, assim, que o número de jovens que acumulam empregos para honrar os seus compromissos financeiros, à semelhança de Bruno, tenha crescido significativamente. No estudo “Gen Z and Millennial Survey 2023”, da consultora Deloitte, é indicado que o número de profissionais em Portugal que têm, pelo menos, dois empregos aumentou de 23% para 31%, no caso dos millennials, e de 32% para 44%, entre a geração Z, apenas num ano. E quase metade dos inquiridos apontam como razão para essa acumulação de ocupações a necessidade de ter uma fonte de rendimento adicional para garantir o cumprimento dos seus compromissos financeiros. Para este estudo, a Deloitte ouviu 22.856 jovens. Destes, 400 residem em Portugal.
“A subida do custo de vida obrigou a procurar rendimentos extras. E a inflação é sentida, em termos médios, de forma diferente pelos jovens do que pelos demais indivíduos, por causa da habitação”, sublinha João Cerejeira, economista e professor da Universidade do Minho.
Também Pedro Braz Teixeira, diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade, vê o disparo do custo de vida, com grande destaque para a habitação, como uma das explicações para a tendência em questão. “Os jovens que têm ambição de ter casa própria são obrigados a trabalhar bastante mais”, assinala.
Precisamos de baixar drasticamente o preço da habitação para toda a gente. Neste momento, é uma loucura.
Para ambos os economistas, as medidas preparadas pelo Governo no pacote Mais Habitação em nada contribuem para a resolução desta crise do mercado habitacional. “Até podem ter o efeito inverso”, alerta João Cerejeira. “Precisamos de baixar drasticamente o preço da habitação para toda a gente. Neste momento, é uma loucura. O pacote Mais Habitação não vai resolver problema nenhum. Sabemos que todos os anos o problema vai agravar-se, porque não há construção”, salienta Pedro Braz Teixeira.
Além da habitação e da subida dos preços, este último especialista identifica os baixos salários como razão para o crescimento do número de jovens com vários trabalhos.
Mas realça que podem estar em causa também, nalguns casos, outros motivos. O inquérito da Deloitte mostra que, “apesar de a principal razão ser económica, muitos jovens fazem-no [acumulam empregos], porque desejam prosseguir uma paixão ou passatempo além do seu trabalho principal”. “Esta juventude, em vez de ficar num emprego chato, prefere ter um emprego que é para ganhar dinheiro e outro para alimentar uma paixão, na vida profissional”, sugere Braz Teixeira.
Já João Cerejeira atira que o mercado de trabalho tem hoje à disposição mais oportunidades de trabalho, depois do período complicado da pandemia, o que pode também justificar o aumento da procura de trabalho.
Motivos à parte, o diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade reconhece que pode até haver um “lado relativamente positivo” nesta evolução, na medida em que mais horas trabalhadas significam mais rendimentos e, por conseguinte, mais contribuições para a Segurança Social e mais Produto Interno Bruto (PIB).
“Mas acho, no conjunto, negativo, se aquilo que motiva estes jovens é o facto de não conseguirem ter uma vida digna com apenas um salário”, garante, avisando que há risco de diminuição da natalidade, de agravamento dos problemas de saúde mental (como esgotamentos) e até de imigração.
Soluções, precisam-se
Neste cenário, como pode, afinal, Portugal criar condições para que os jovens escapem à “obrigação” de ter dois empregos em prol da sua sobrevivência? As sugestões são diversas.
Bruno, por exemplo, defende que é preciso que o Governo tenha “noção de que os lucros exorbitantes das grandes empresas” são devidos ao “trabalho e esforço redobrado” dos trabalhadores. “Por isso é que o Governo tem de tomar medidas, para fazer uma justa distribuição da riqueza, que é produzida por nós, trabalhadores”, entende.
O que fazer para aumentar os salários? Melhorar a produtividade das empresas. Depois, há também um conjunto de políticas de apoio, como isenções fiscais e políticas de redistribuição.
Já João Cerejeira declara que é preciso melhorar a produtividade das empresas para aumentar os salários, bem como aplicar políticas de apoio, como isenções fiscais e outras políticas de redistribuição de riqueza. O abono de família, por exemplo, deixa de ser aplicado a famílias “com níveis de rendimento relativamente baixos” e isso poderia ser revisto, indica o professor.
Pedro Braz Teixeira frisa que é preciso, por um lado, aumentar o potencial da economia e, por outro, “atuar de forma decisiva na habitação, aumentando muitíssimo a construção, acima dos 60 mil fogos por ano”.
Enquanto essas propostas não saem da gaveta, Bruno, como tantos outros jovens, vai gastando as suas horas sobretudo no trabalho, para fazer com que, quiçá, sobre salário ao fim do mês. Hoje começou a trabalhar às 8h00. Só terminará quando o relógio bater as 20h00.
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Bruno tem dois empregos e não é caso único. São cada vez mais os jovens que acumulam trabalhos
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