Painéis solares e rebanhos partilham o mesmo campo

A Finerge está a promover atividades como a pastorícia nos seus parques solares. Neste dia Mundial da Energia, fique a conhecer um projeto que pretende conciliar as renováveis com a biodiversidade.

No meio de campos verdejantes, que em fevereiro se encontram cravejados de uma imensidão de flores amarelas, descobre-se um parque solar. Plantados no meio da paisagem alentejana, nos arredores de Montemor-o-Novo, estes painéis imitam os girassóis, e inclinam-se de este para oeste à procura do sol. Mas o que mais os distingue não é para onde olham, mas sim o que se move a seus pés: 81 ovelhas, que aqui pastam e passam os seus dias.

Hugo Amaral/ECO

António Girão é o pastor deste rebanho, e há cerca de sete anos que os seus animais circulam por entre painéis, em vez do típico campo alentejano. Aqui, diz, têm tudo (e um pouco mais) do que nos outros campos. Têm espaço para percorrer, têm pontos de água, há energia para pôr máquinas a funcionar. E têm, sobretudo, segurança, dada pelas vedações altas e câmaras de vigilância. Noutros lugares, os animais estariam mais sujeitos a serem roubados ou atacados por predadores. É também mais um espaço além dos que já detinha, o que lhe permite expandir a sua atividade.

O parque solar é da Finerge, que o explora hoje em dia, mas faz questão de o partilhar com o pastor sem cobrar, já que esta ocupação traz também muitas vantagens à empresa. Os animais são uma forma de impedir o crescimento da vegetação. Se esta crescer muito, pode fazer sombra sobre os painéis e afetar a produção de energia.

Ao confiar no rebanho, a Finerge não tem de se ocupar com a manutenção, que podia até ser mais prejudicial para os painéis do que a pastagem, já que cortar a relva pode implicar que o pó ou que outros detritos voem e atinjam os painéis, danificando-os. Ao mesmo tempo, a pastorícia incentiva a que existam cuidados com o solo, que permitem manter o terreno mais saudável, para que possa ter outra vida para lá do tempo de exploração do parque solar.

A vantagem de ter animais supera os pequenos inconvenientes.

Daniel Barbosa

Responsável pela gestão de Operações na Finerge

António Girão está, de momento, a avaliar que tipo de cultura faz sentido semear de forma a enriquecer a dieta dos animais e também o solo. As suas ovelhas não tiveram problemas em adaptarem-se ao novo espaço, garante o pastor: “A pastagem é boa, o terreno é idêntico” aos que detém.

O parque não precisou de adaptações para receber as ovelhas, e não há memória de grandes incidentes. Recentemente, um animal encostou-se a um botão e interrompeu o fornecimento de água, o que só foi notado dias depois, mas ainda a tempo de repor a normalidade antes de as ovelhas ficarem sem qualquer água, pelo que não teve consequências.

Da parte da empresa, “a vantagem de ter animais supera os pequenos inconvenientes”, afirma Daniel Barbosa, responsável pela gestão de Operações na Finerge. Noutras explorações, diz que já houve animais de maior porte, como cavalos, a roçarem-se aos painéis, “mas nada de relevante”. É um risco que “está identificado” e a empresa assume, indica Patrícia Cardoso, gestora de Qualidade, Segurança, Ambiente e Sustentabilidade na mesma empresa, ressalvando que este tipo de danos é fácil de reparar.

"Ele [o técnico dos painéis solares] esteve sempre com o animal. Se não fosse isto, a cria podia não ter sobrevivido.”

António Girão

Pastor

Além destas vantagens, a parceria já se mostrou importante em situações mais inesperadas. António Girão conta que, num dia em que estava em Lisboa, recebeu uma chamada de um técnico responsável pela manutenção dos painéis. Este estava preocupado, porque encontrou uma cria isolada do rebanho. Às vezes, explica o pastor, os filhos podem ser abandonados pela mãe. Quando António chegou, já o técnico tinha ido comprar leite e um biberão para alimentar a cria. “Ele esteve sempre com o animal. Se não fosse isto, a cria podia não ter sobrevivido”, acredita o pastor.

Hugo Amaral/ECO

Agora pastores, em breve agricultores

A maior parte dos projetos da Finerge em Portugal foram comprados já na fase de exploração, isto é, já operacionais. Ao todo, a empresa detém 11 projetos fotovoltaicos, e em sete destes, é também praticada a pastorícia. Podem passar em breve a ser oito. Para já, espalham-se por Coruche, Loures, Montijo, Montemor-o-Novo e Loulé.

“Portugal é o melhor exemplo que temos”, diz Patrícia Cardoso, tendo em conta que, enquanto em Espanha todos os projetos acolhem ovinos, deste lado da fronteira há mais diversidade: há também projetos com vacas, cavalos, póneis e burros, o que acaba por permitir uma maior aprendizagem.

Apesar de metade dos projetos solares da Finerge na Península Ibérica já se conjugarem no terreno com atividades de pastorícia, nem sempre isto é possível. Por vezes, por exemplo, não há pastores na zona. Por isso, a Finerge tem um segundo conceito na manga, que está neste momento a ser estudado: o chamado “agrivoltaico”, ou seja, a realização de práticas agrícolas nos parques de produção de energia solar.

Um dos objetivos é que nas centrais em que não consigamos associar nem pastorícia nem agricultura, coloquemos alguma sementeira.

Patrícia Cardoso

Gestora de Ambiente e Sustentabilidade na Finerge

Para dinamizar esta alternativa, a Finerge está a criar protocolos com escolas de agronomia, que “têm uma componente prática muito ativa”. O plano é ceder os terrenos da Finerge para que os alunos possam praticar neles, e iniciarem-se numa prática que a empresa acredita ter futuro, a rentabilização dos solos nos espaços solares.

Mas as alternativas não se esgotam aqui. Se não existirem pastores nas proximidades e se o solo dos parques não tiver qualidade suficiente para que se pratique agricultura, há uma terceira hipótese. “Um dos nossos objetivos é que nas centrais em que não conseguimos associar nem a pastorícia nem a agricultura, coloquemos alguma sementeira”, indica Patrícia Cardoso.

O objetivo? Garantir que os solos são regenerados e que, no fim da vida útil da instalação, podem ser utilizados para outros fins – algo que a Finerge afirma que, apesar de não ser obrigatório legalmente, a empresa tem como propósito.

O problema em manter a qualidade do solo não são os painéis solares – eles não o degradam, diz Patrícia Cardoso. Mas um solo sem plantação ou qualquer tipo de vegetação acaba por perder as suas qualidades e ficar mais erodido. “Até há instalações que, neste momento, temos em fase de projeto e nas quais sabemos que não vai ser fácil plantar algo, porque o solo não tem as características necessárias para algo se aguentar. O que tentamos é, em conjunto com empresas que têm experiência em flora e vegetação, encontrar algo que se consiga ali fixar. Assim vamos dando um bocado mais de vida”, explica.

E há conhecimento cruzado: a cultura que o pastor António deverá plantar em Montemor, para alimentar o seu rebanho e melhorar esse solo, pode servir de inspiração para ser utilizada noutros parques mais áridos. Em paralelo, existe agora “um grande número de projetos em desenvolvimento” na Finerge, e um dos requisitos internos é que qualquer novo projeto tem que ter um plano de integração paisagístico e de recuperação do solo.

Na fase em que o projeto está a ser montado já é feita, inclusivamente, uma análise por uma empresa especializada em flora e vegetação. É avaliada não só a qualidade do solo como também o meio envolvente, de forma a definir a melhor solução para cada caso. Assim que o projeto iniciar a construção, estes planos já serão implementados.

“Em março já vamos começar um projeto aqui próximo, já com um plano de integração paisagístico finalizado. Vai ser o nosso projeto-piloto”, indica Patrícia Cardoso.

Mais proximidade

O parque solar de Montemor tem uma potência de 2,2 megawatts-pico, servindo 810 consumidores com os 3.985 megawatts por hora de energia que produz anualmente. Ao mesmo tempo, evita 2.213 toneladas de emissões de carbono. “Os projetos da Finerge não são projetos megalómanos, porque temos noção do impacto que isto causa na comunidade local”, aponta Patrícia Cardoso.

Hugo Amaral/ECO

Com estes cuidados, a par das iniciativas para disponibilizar as suas áreas para outros fins, a Finerge acaba por “criar relações” com as comunidades envolventes, assinala a mesma gestora. E a relação de António Girão com este espaço já é realmente antiga: o terreno onde hoje está o parque solar que acolhe as ovelhas de António era do seu avô. Foi vendido a um indivíduo, que por sua vez o vendeu a uma empresa, aquela que acabou por construir o parque solar.

Este parque passou para as mãos da Finerge já depois de ter entrado em operação. Aliás, António Girão já tinha a mesma parceria de fazer pastorícia neste terreno com o promotor anterior e, quando o parque trocou de dono, António (e o seu rebanho) mantiveram-se como aliados.

"Os projetos da Finerge não são projectos megalómanos, porque temos noção do impacto que isto causa na comunidade local.”

Patrícia Cardoso

Gestora de Ambiente e Sustentabilidade na Finerge

Nem sempre António Girão se dedicou à pastorícia, embora cedo tenha herdado esse gosto da parte do pai e do avô. “Eu desde pequenino vinha cá aos fim de semana, vinha às vezes passar férias e sempre gostei do campo”, conta. Foi em 2020 que abandonou o trabalho que tinha na banca, em Viseu, para dar continuidade a tempo inteiro a esta atividade.

Agora, visita o parque solar cerca de duas vezes por semana. De todas as vezes, conta as ovelhas, uma a uma, e reconta-as se o número não bater certo. O grupo vai-se alterando, conforme a vegetação; o pastor vai movendo alguns elementos do rebanho entre este e os seus outros campos, consoante exista mais ou menos alimento em cada espaço. Verifica também a saúde dos animais, acompanha-os se estão prestes a ter crias, prepara o terreno para a próxima estação e trata também de muita burocracia, conta.

Tem dois filhos, e um deles partilha com o pai o gosto pelo campo, embora esteja focado em concluir o curso de medicina. Apesar de afirmar que não forçará os filhos a seguirem os seus passos, António Girão acredita que estes poderão continuar esta atividade, mesmo que não seja de forma intensiva. “Na exploração familiar, como não tenho as câmaras de vigilância, tenho que ir lá com mais rigor, dispor de tempo para ir lá. Aqui não. Estou mais despreocupado. Portanto, hoje em dia já se pode ver isto [de trabalhar na pastorícia] de outra maneira”, acredita.

Hugo Amaral/ECO

(Esta reportagem será publicada no Yearbook do Capital Verde, que será lançado no próximo dia 6 de junho)

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