Mário Soares: O político que não gostava de números
Mário Soares morreu. Tinha 92 anos. A vida do político que não gostava de números e que, apesar disso, participou nos momentos económicos e financeiros mais relevantes das últimas décadas.
Mário Soares: “O que muda o mundo não são os números, nem os défices, nem as crises, são as pessoas”
Mário Soares: “Eu assumo-me como político”
Mário Soares: “Eu sou político por ideal, não sou político por interesse de poder ou de carreira”
“Fui um privilegiado – mas com a consciência de o ser! Não me recordo de ter alguma vez pedido dinheiro aos meus pais, tinha um automóvel à minha disposição – naquele tempo era uma coisa fabulosa! Comprava os livros que queria, ia ao cinema quando me apetecia, almoçava ou jantava fora de casa… Havia indiscutivelmente uma retaguarda que olhava por mim – os meus pais – e que me facilitava a vida. Tinha muitas relações e amigos. Era frequentador assíduo das tertúlias que se reuniam nos cafés…”, dizia Mário Soares na longa entrevista que deu a Maria João Avillez.
A própria Maria Barroso [1925-2015], mulher de Soares, descreveu-o como “um menino a quem a vida satisfez todos os caprichos”. Estas circunstâncias moldaram o seu carácter e pautaram algumas das suas decisões e atitudes sobretudo numa certa sobranceria. No entanto, também havia em Mário Soares um desejo de mudança, uma coragem física e um certa resistência psicológica. Assumia-se como um político e conseguia apanhar com facilidade os sinais dos tempo. “Eu assumo-me como político. A política é uma grande e nobre maneira de transformar as coisas, de as mudar para melhor: lutar contra a ditadura, ser contra as guerras coloniais, fazer a paz, consolidar a nossa democracia, etc., etc.” dizia Mário Soares e reafirmava: “Eu sou político por ideal, não sou político por interesse de poder ou de carreira”.
Soares e o dinheiro
A relação de Mário Soares com o dinheiro pode ajudar a explicar, em parte, a forma como ser relacionou com as matérias económicas e financeiras, os financiamentos partidários e as relações com os empresários. Sentia isso como uma liberdade. “Uma das razões por que me senti livre é porque nunca tive uma dependência de dinheiro. O meu pai também tinha uma relação com o dinheiro semelhante à minha – desinteressada e distante do dinheiro”.
Esta relação desinteressada com o dinheiro tem a ver com o facto que nunca ter precisado de pedir dinheiro. Como disse várias vezes, “quando comecei a crescer e a precisar de dinheiro, eu não precisava de pedir dinheiro ao meu pai, porque ele dava-mo antes de eu lhe pedir. A minha mãe era um bocadinho mais forreta”. Mas se não tem gostos ascetas nem se preocupa com o dinheiro não quer dizer que fosse um gastador inveterado.
Confessou várias vezes que não sabia nem queria saber das suas contas pessoais: “em matérias de dinheiro fui sempre uma pessoa completamente desinteressada. Mesmo quando era advogado. Não sou eu que faço a gestão das minhas contas (…) A minha mulher é que se ocupa das nossas finanças pessoais. Somos casados com comunhão de bens, todos os bens que existem são dos dois” (O que falta saber, p. 107). Referia que quando era Presidente da República, o salário era depositado numa conta e sabia o seu saldo quando “alguém que me via o respectivo extracto”.
Ficou com a fama de não gostar de ler dossiês e de ler resumos com o máximo de uma página A4. Além disso, colou-se à pele a ideia de que confundia-se com os números, o que de facto aconteceu como o próprio reconheceu: “Algumas vezes, em discussões, terei confundido o dólar com o escudo ou trocado os milhões com os milhares, não o nego. Mas as pessoas não ignoravam que, quando me pronunciava sobre uma questão, sabia do que falava”.
“Deparei com uma certa incapacidade dele para ver o alcance dos argumentos utilizados. Parecia possuir alguma dificuldade em compreender os problemas económicos, com as suas múltiplas implicações”. No entanto, segundo Medina Carreira, “Mário Soares é um homem avesso a números. Ele, aliás, é altamente agressivo para os chamados economicistas. Não tinha assim uma grande noção, tal como os outros homens políticos daquele tempo e daquela formação. O problema era o equívoco em que estava: essa gente viveu numa Europa próspera, nos anos 1945 a 1975, uma época de ouro, em que os políticos faziam política mas não tinham de se preocupar com o dinheiro”.
Por outro lado, esta forma de olhar para os bens materiais deu-lhe um certo voluntarismo e um certo à vontade. Durante os anos seguintes à revolução, não se importou de ser visto como o pedinte que andava de capital em capital na Europa em busca de apoio económico e financeiro a Portugal. Dizia que “o que muda o mundo não são os números, nem os défices, nem as crises, nem essas coisas; o que muda mundo são as pessoas (…) Os economistas são aqueles que pesam as coisas com uma seriedade absoluta; os economicistas não têm cultura política nem outra, só sabem aquelas contas. E esses tendem a não afinar, embora façam bem as contas e tenham razão em dizer que ‘isto está mal’. Para suplantar os problemas é só precisa vontade política. Para isso podemos ter grandes apoios externos”.
Leonardo Ferraz de Carvalho [falecido em 1998] detetou em Mário Soares como presidente da República “um crescendo de interesse pelos temas económicos que, a certa altura, chegam mesmo a ocupar uma faixa significativa dos seus discursos” e é tanto pela economia como pelo papel do empresário. Relaciona-a com a “sua convivência com empresários com quem frequentemente conversa, ou com quem deliberadamente provoca mesmo encontros (lembrem-se os diversos jantares em Belém reunindo banqueiros e homens de negócios, no início deste mandato)”. Por sua vez, João Ferreira de Amaral, consultor de assuntos económicos durante o primeiro mandato presidencial, referia que podia não perceber os números, mas sabia e comprendia o que estava em jogo com as políticas económicas.
Soares e a elite empresarial republicana
As primeiras ligações de Mário Soares ao mundo dos negócios e das empresas vêm através do contacto com a elite empresarial republicana de que o pai, João Lopes Soares, dono do Colégio Moderno fazia parte.
Em 1946, foi presa a comissão central do MUD a que Mário Soares pertencia e foi-lhe fixada uma fiança de 100 contos, que era uma verba considerável para a época. Quem adiantou o dinheiro foi o amigo da família, Amadeu Gaudêncio, que viria a ser sogro do irmão Tertuliano Soares e era dono da Sociedade de Construções Amadeu Gaudêncio, fundada em 1935. Amadeu Gaudêncio era membro da Maçonaria e ficou sempre referenciado como “anti-situacionista”.
As relações entre o construtor civil e o clã Soares foram sempre muito fortes. A família Soares frequentava a casa de férias de Amadeu Gaudêncio na Nazaré de onde era natural, que, com a mulher, apadrinhou João Barroso Soares, que viria a ser presidente da Câmara de Lisboa.
Na época, as prisões de Mário Soares multiplicaram-se: chegou a estar preso ao mesmo tempo que o pai quando este foi preso por ter participado numa tentativa de golpe de Estado. A 10 de Abril de 1947, entre as sete e as oito da manhã, começaram a ser presos os primeiros quatro acusados pela participação no golpe fracassado. Nos dias seguintes foram presos os restantes 41, um dos quais João Lopes Soares, pai de Mário Soares. Entre estes alguns dos financiadores como Celestino Soares, Rafael Seruya, administrador da Vitória Filmes, e Pedro Monteiro de Barros. Dos conspiradores que o financiaram, só se eximiram ao cativeiro os empresários Amadeu Gaudêncio e Lúcio Tomé Feteira, que saíram de Portugal durante algum tempo.
Escaparam a punições com alguma sorte até porque a resposta do regime foi de invulgar dureza para com as elites republicanas. Tal como os gestores da Covina, Ernesto Carneiro Franco e Manuel Cunha Feteira, que fizeram chegar o dinheiro a João Lopes Soares.
A 18 de Junho de 1947, uma resolução do Conselho de Ministros desligava do serviço diversos funcionários públicos civis e militares independentemente das penas a aplicar pelos tribunais ou resultantes de processos disciplinares. Assim foram mandados reformados 11 oficiais militares e aposentados ou demitidos vários professores universitários. Hermínio Palma Inácio teve o seu baptismo revolucionário com a participação no dito golpe de 10 de Abril de 1947 e sabotou 20 aviões da base aérea de Sintra onde fizera o serviço militar. João Lopes Soares esteve preso até 1948 quando foi julgado em Tribunal Militar.
Lúcio Tomé Feteira era accionista da fábrica de limas, da Covina e do BPA, em que tinha como sócios Arthur Cupertino de Miranda e João Ildefonso Bordallo, e amigo próximo de João Lopes Soares. Este industrial bem como da Fábrica de Refrigerantes Americanos – empresa de Lúcio Feteira e João Ildefonso Bordallo que comercializava a Canada Dry – viriam a ser dos principais clientes do escritório de advocacia de Mário Soares, como este referiu em várias entrevistas.
Lúcio Tomé Feteira e o Arthur Cupertino de Miranda, que geria o BPA, financiaram as campanhas presidenciais do General Norton de Matos em 1949 e do General Humberto Delgado em 1958. Durante os anos 60 e 70, até à queda do regime continuaram a contribuir para o financiamento dos vários grupos da Oposição incluindo o Partido Comunista Português.
No entanto, foi um empresário próximo do regime Joaquim Matias, fundador da Companhia Portuguesa de Cimentos Brancos – Cibra e do Hotel Cibra em Cascais, que era pai de um colega e amigo de Mário Soares, que conseguiu que este tivesse autorização para ser professor liceal, no caso do Colégio Moderno. “Era amigo do ministro da Educação, Leite Pinto, que rasgou o meu primeiro requerimento, que tinha informação desfavorável da PIDE, pediu-me para fazer outro e, por cima, escreveu ‘concedido’”. Mário Soares tinha-se licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1951 com média de 13 valores.
Os banqueiros do reviralho
É no BPA que trabalham quatro figuras que estarão sempre ao lado de Mário Soares. Carlos Monjardino conheceu Mário Soares numa visita a Caxias, onde um dos tios era preso político, e o pai, Pedro Monjardino, participou em várias acções políticas contra o regime com Mário Soares. Foi este médico obstetra que em 1968 enviou clandestinamente um rádio transístor para São Tomé onde Mário Soares estava deportado e lhe permitia conhecer o que se passava no mundo. Carlos Monjardino cruzou-se com Mário Soares em Paris no banco de Manuel Boulhosa, foi próximo do Grupo Espírito Santo e foi nomeado para o governo de Macau em 1986 onde negociou o novo contrato de jogo com Stanley Ho, o que deu origem à Fundação Oriente. Este também na origem da Fundação Mário Soares.
Os dois gestores que tinham fortes ligações aos meios oposicionistas e que, inclusivamente, estiveram presos ou fugidos à PID eram Vasco Vieira de Almeida e Francisco Veloso. O primeiro a entrar para os quadros do BPA foi o jurista Vasco Vieira de Almeida. Este foi preso em 1963, pela segunda vez, era já director do Banco Português do Atlântico, por ter colaborado na fuga de Caxias de alguns dirigentes do Partido Comunista, tendo estado preso durante dois meses.
Além de ser acusado de ter abrigado alguns dos fugitivos em sua casa e de os ter distribuído pelos locais combinados, era acusado pela PIDE de quem dirigia e orientava as finanças do Partido Comunista. Mas quando saiu da prisão, Vasco Vieira Almeida dirigiu-se a Arthur Cupertino de Miranda para apresentar a demissão: “disse-lhe que não valia a pena dizer-me nada, que ia pedir a demissão naquele instante, porque era óbvio não poder retomar as funções que tinha depois de ter sido preso por ajudar comunistas a fugirem. Libertava-o assim da incomodidade de me despedir. (…). O velho Cupertino disse-me: “Oh homem, deixe-se de disparates, vá para a sua secretária que os depósitos até subiram !”.
Por sua vez, Francisco Veloso (1933-2005), advogado, esteve implicado no chamado no Golpe de Beja (assalto ao quartel militar). Perseguido pela PIDE refugiou-se com a mulher, Lígia Monteiro, na embaixada do Brasil, em Lisboa, onde esteve durante três anos. Absolvidos, Vasco Vieira de Almeida, director-geral do BPA, convidou Francisco Veloso para o banco em 1964.
Artur Santos Silva é filho de Eduardo Santos Silva, um dos proeminentes republicanos do Porto que esteve na base, entre outros episódios de oposição, da candidatura de Humberto Delgado onde se cruzou com Mário Soares. Artur Santos Silva viria a ser secretário de Estado do Tesouro de Francisco Salgado Zenha, ministro das Finanças no VI Governo Provisório e, mais tarde, administrador do Banco de Portugal. Em 1981 fundou a Sociedade Portuguesa de Investimentos que vir a estar na origem do BPI.
Raul Capela foi quadro superior do BPA e depois do 25 de abril de 1974 foi presidente do BPA nacionalizado que trocou em 1988 pelo Banif, recém-criado por Horácio Roque e Joe Berardo a partir da falida Caixa… Segundo Maria Barroso, Raul Capela e Francisco Veloso “disponibilizaram-lhe no BPA as quantias necessárias, sem limites radicais nem precauções demasiadas, dentro do menor prazo de espera possível. Até hoje reconhecida não esquece: “eles ajudaram-me”. Raul Capela foi ainda o mandatário financeiro da campanha de Mário Soares para a Presidência da República em 2006 e esteve na conferência de imprensa em 12 de Setembro de 1991 onde foi anunciada a constituição da Fundação Mário Soares ao lado de Artur Santos Silva e Jardim Gonçalves, que pertenciam ao Conselho Fiscal e Carlos Monjardino, Isabel Soares, Gomes Mota, António Dias da Cunha que eram os administradores.
Em 1949, iniciou o seu afastamento do Partido Comunista e em finais de 1950 num pequeno artigo publicado em O Avante, era acusado de “oportunista”, tal como outros intelectuais como Jorge Borges de Macedo, Fernando Piteira Santos, Francisco Ramos da Costa ou Augusto Sá da Costa. Durante a década de 1950 manteve a sua atividade contra o regime aliado a meios republicanos e socialistas mas não foi preso. Durante esse tempo estudou Direito na Faculdade de Direito de Lisboa tendo-se licenciado com 13 valores em 1957, e feito estágio com Leopoldo Vale e abrindo escritório da rua do Ouro, 87-2º em Lisboa, graças à amizade de Gustavo Soromenho e de Pimentel Saraiva, especialista em Direito Fiscal.
Mais tarde juntar-se-iam Vasco da Gama Fernandes e Manuel Castilho. Segundo Mário Soares começou a ter clientes, alguns herdados do escritório de Avelino Cunhal, pai de Álvaro Cunhal, e a ganhar algum dinheiro e recorria, além dos companheiros de escritório, a juristas experientes como Fernando Abranches Ferrão, Eduardo Figueiredo, Eurico Ferreira e Francisco Salgado Zenha.
“A minha fonte de rendimentos eram os outros casos, não eram os casos dos presos políticos (muitos deles de clientes que herdei de Avelino Cunhal): pequenas empresas, divórcios, cheques sem cobertura, partilhas de bens, casos de família, tribunal de menores, por exemplo uma avença da Canada Dry (conhecida marca de refrigerante à época), assuntos de Tomé Feteira (1901-2000), que era também da Covina…” Mas acima de tudo, o litígio de Maria Cristina de Mello contra os irmãos, já resolvido, constituíra para ele “um grande sucesso económico” como referiu na biografia de Joaquim Vieira.
Como advogado defensor de presos políticos, participou em numerosos julgamentos, realizados no Tribunal Plenário e no Tribunal Militar Especial. Representou, nomeadamente, Álvaro Cunhal quando acusado de crimes políticos, e a família de Humberto Delgado na investigação do seu alegado assassinato. Este caso deu-lhe alguma projecção internacional.
A Cristina Mello e o grupo CUF
Em 1966, quando Manuel de Mello faleceu, os quatro irmãos trataram da herança em que se incluía o Grupo CUF, como recordava Jorge de Mello, “em 14 minutos”.
A solução gizada tivera o dedo de Marcello Caetano. Foi então criada a Sogefi, que passou a ser holding de um grupo com mais de 150 empresas. No entanto, um ano depois, Cristina de Mello, que tinha sido casada com António Champalimaud e de quem se separara em 1958, vivia já então com Amaro Azevedo Gomes, um médico sobrinho do professor Mário Azevedo Gomes, companheiro nos caminhos da Oposição de Mário Soares. Segundo este, quando lhe perguntou porque o escolhera, Cristina de Mello teria respondido “porque o senhor tem coragem de enfrentar a PIDE, o que é muito pior que enfrentar os meus irmãos”. Terá aduzido ainda outras razões: “ alguém com as minhas características: habituado à barra do Tribunal, capaz de enfrentar a PIDE no Plenário; portanto, alguém, corajoso, que não fosse subserviente perante o poder. Temia que um advogado, mais ou menos do regime, não fosse capaz de resistir à pressão do grupo CUF que, nessa época, aparecia quase como um Estado dentro do Estado”.
Mário Soares aceitou o caso e, depois de o estudar, decidiu falar com o advogado de Jorge e José de Mello que tratara do caso, Marcello Caetano. “Pedi-lhe uma entrevista. Foi no seu escritório, na Avenida António Augusto de Aguiar, quase em frente do actual El Corte Inglés. Recebeu-me com muita cordialidade. Expliquei que a D. Cristina de Mello queria a sua parte na herança do pai. “Não é possível”, disse-me o Marcello. “Trata-se de um grande grupo económico e é muito importante que haja em Portugal grupos com aquela dimensão, que não sejam separados.”. Fiz-lhe ver que isso ia contra os interesses da senhora. Marcello respondeu-me, muito firme: ‘Não conseguirá isso nem pela caneta, nem a tiro’” contou Mário Soares a Joaquim Vieira na biografia… Marcello Caetano era uma das luminárias em Direito Administrativo, que lecionava na Faculdade de Direito de Lisboa, pelo que a única forma de enfrentar era recorrer a uma estrela da mesma dimensão e que era Ferrer Correia, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. “O catedrático de Coimbra recebeu o advogado de Lisboa, que lhe expôs o caso em termos genéricos, não referindo nem o nome da família Mello, nem o do advogado litigante.
“Claro que a senhora tem direito”, opinou de pronto Ferrer Correia, a quem Soares pediu um parecer escrito” refere-se em “Eu vi as botas de Salazar!” Terá pedido 50 contos para fazer o parecer. Apesar de ter achado excessivo, Cristina de Mello aceitou.
Quando Mário Soares o foi buscar pediu mais cinco contos que Mário Soares pagou do seu bolso. Com o parecer que sustentava a sua posição na mão, Mário Soares voltou a encontrar-se com Marcello Caetano. “Confirmei-lhe que ia mover uma acção contra os dois irmãos Mello. E mostrei-lhe o parecer do Ferrer Correia. O Marcello fechou a cara e limitou-se a comentar, desagradado: “faça como quiser…” recordou.
Tempo depois recebeu um telefonema de um amigo e antigo colega no curso de Direito, António Serra Lopes que era advogado no Grupo CUF. “Explicou-me que, como o prof. Marcello Caetano não gostava de ir a tribunal, tinha subestabelecido nele. E convidou-me para almoçar”. O almoço era, obviamente, de negócios. No final, estava encontrada a solução para o diferendo sobre a herança de Manuel de Mello, com dispensa do tribunal. E qual foi essa solução? ‘A senhora ficou com o dinheiro a que tinha direito’ – explica Mário Soares. Era uma fortuna imensa. Soares foi bem recompensado: ‘Foram os maiores honorários que ganhei como advogado’. Quanto, ainda hoje não diz. ‘Eu e a D. Cristina de Mello ficámos amigos até ela morrer’, em 2006.”
Em 1968, foi deportado para a ilha de São Tomé e o gestor da roça de Água-Izé, do Grupo CUF, propôs-lhe uma avença como advogado. Mário Soares solicitou permissão a Cristina Mello, que continuava a patrocinar, para poder aceitar o convite que envolvia os irmãos com quem ele litigara. Apesar da permissão, acabou por ver o convite ser-lhe retirado, segundo disse, por pressão política de Salazar junto de Jorge de Mello. Este refere que o convite pressupunha que todos os proprietários de roças o aceitassem como advogado, o que não aconteceu.
Bulhosa apoia em França
Manuel Boulhosa sempre gostou de se manter politicamente bem relacionado, e, portanto não poderia ter deixado de passar pela vida de Mário Soares. Em 1970, estava este exilado em Paris, lecionando em Vincennes quando António Ramos, que trabalhava na Bertrand, apresentou o líder da oposição socialista a Manuel Boulhosa. Este, segundo Mário Soares, disse-lhe “que não percebia nada de política, sabia que era da Oposição, mas, como possuía fama de bom advogado, propôs-me que trabalhasse com ele na Banque Franco-Portugaise, que lhe pertencia”. O homem dos petróleos que pareceu a Soares “um homem inteligente, arguto, seguro de si”, deu-lhe uma avença de 1.000 mil francos, “uma avença pequena (…) mas a verdade é que havia pouco trabalho”.
No entanto, Marcello Caetano enviou César Moreira Baptista, então secretário de estado da Informação, a Paris para interpelar Boulhosa por ter dado emprego a uma persona non grata ao regime. Segundo Soares, “Boulhosa respondeu-lhe que, se alguma vez as coisas dessem uma volta em Portugal, lhe faria, a ele, Moreira Baptista, o mesmo que estava a fazer ao Mário Soares”.
Em 1983, referia na Livraria Bertrand que tinha uma palavra de respeito para com Manuel de Bulhosa e “uma dívida de gratidão”. Em Outubro de 1984, Mário Soares, então primeiro-ministro português, participa numa reunião da Internacional Socialista no Rio de Janeiro cruza-se de novo com Manuel Boullosa que o convida, bem como a Rui Mateus, Coimbra Martins, então ministro da Cultura, Teresa Patrício Gouveia, Raul capela, Banco Totta, Alfonso Finnocciaro do BPA em Nova Iorque, para almoçar no iate. Como conta Rui Mateus, “durante a agradável conversa, com o Rio de Janeiro como pano de fundo, foi revivido um pouco o passado, tendo Manuel Boulhosa contado que depois de ‘ajudar’ Soares, tinha sido duramente recriminado pelo presidente do Conselho, Marcello Caetano a quem ele responderia que era um homem de negócios e não um político e, como tal, achava por bem dar-se com o governo e com a oposição. Caetano ter-lhe-á respondido que Soares não era oposição, mas um traidor exilado, ao que o empresário comentaria mais ou menos com as palavras de que ‘fazia desejos para que o senhor professor nunca viesse a ter que conhecer o exílio, mas se isso acontecesse que teria o maior gosto em poder ajudá-lo também’.
Manuel Boulhosa, no entanto, não morria exactamente de amores pelo líder socialista, a quem criticaria a atitude tomada durante as nacionalizações. Apesar dos protestos de ‘não diga isso senhor Manuel Boulhosa’ (…) Acontece que aquele diálogo, que parecia prometer em revelações, seria interrompido por uma repentina tempestade que ia provocando um naufrágio. (…) Ondas enormes abater-se-iam sobre todos nós e o vento fortíssimo começaria a cria fissuras no iate e, Manuel Boulhosa, visivelmente preocupado, lá conseguiria conduzir-nos a bom porto ao fim de uma boa meia hora”.
Estatista e defensor das nacionalizações ou da iniciativa privada
Na madrugada de 13 de março de 1975, uma assembleia extraordinária do MFA decretou a nacionalização da banca e dos seguros na sequência da tentativa de golpe de Estado de 11 de Março de 1975 atribuída ao general António de Spínola. O então presidente da República, general Costa Gomes, considerou estas nacionalizações como a “medida mais revolucionária de Portugal contemporâneo”.
Nesse mesmo dia, em reunião do secretariado do PS, era ideia dominante de que este acontecimento seria um acelerador revolucionário e seria uma viragem para uma fase “mais radical, perigosa e decisiva”. Nessa mesma tarde, o PCP convoca uma manifestação para celebrar a vitória do Povo/MFA.
Segundo Mário Soares, foi Salgado Zenha que defendeu a participação na manifestação unitária para não haver qualquer pretexto para se adiarem as eleições. Mário Soares e o PS aperceberam-se que o PCP e os militares próximos procuravam colar o Partido Socialista e o seu líder aos sectores golpistas, como lhe referiu Vasco Gonçalves, primeiro-ministro, adiantando que teria de depor num processo que os militares do MFA estavam a organizar.
Nessa altura, Mário Soares decidiu seguir a onda e considerar o dia das nacionalizações como “um dia histórico em que o capitalismo se afundou” e “foi ferido de morte”. Num comício, diz que “a nacionalização da banca, que por sua vez detém (…) a maior parte das ações das empresas portuguesas e, ao mesmo tempo, a fuga e a prisão dos chefes das nove grandes famílias que dominavam Portugal, indicam de uma maneira muito clara que se está a caminho de criar uma sociedade nova em Portugal”.
Seguiu-se, depois, as nacionalizações das empresas nos principais sectores económicos num total da ordem das 250 empresas. Uma delas, as Edições Arcádia, que publicou o seu livro Portugal Amordaçado e que foi um best seller mas com a nacionalização da editora Mário Soares só terá recebido um quinto dos direitos de autor que deveria.
Em 1977, na revista Paris Match de 25 de março, responde à questão sobre se o facto de ter colocado fim às nacionalizações e à colectivização das terras não o teriam transformado num gestor do capitalismo: “quem diz isso? Os jovens que só sabem falar em termos de ideologia, que passam o tempo a excitar-se entre si, os irresponsáveis. Eu travo um combate e sei porque luto. A essas pessoas, respondo-lhes com uma só palavra, merda!”. Nessa altura, Mário Soares era primeiro-ministro, o I Governo Constitucional de Portugal teve o seu início a 23 de julho de 1976, e já anunciara que tinha colocado “o socialismo na gaveta” à espera de melhor oportunidade.
Como disse, “qual era a alternativa, num país onde já quase ninguém trabalhava, onde a produção tinha sofrido uma baixa catastrófica, mas que continuava a viver acima dos seus meios, em plena sociedade de consumo, com motivações inteiramente capitalistas? Discutia-se a revolução nas ruas, nos escritórios, nas oficinas, e divertia-se delapidando o pé-de-meia legado por Salazar e Caetano”.
No livro-entrevista a Dominique Pouchin, publicado no início de 1976, foi menos desabrido e mais direto. Defende a desarticulação e a liquidação dos “grandes monopólios industriais e financeiros”. Considera que “Portugal continua a ser, evidentemente um país capitalista, onde a empresa privada tem todo o direito de existir. Acho mesmo que o sector público e nacionalizado é hoje em dia demasiado importante para poder funcionar imediatamente segundo critérios de rendibilidade aceitáveis (…) certas medidas abusivas tomadas em nome da Reforma Agrária desorganizaram e enfraqueceram a produção; bancos que, em 1974, davam lucros enormes estão agora, depois de nacionalizados, numa situação deficitária; fábricas de primeira importância, como a Lisnave, atravessam uma crise que pode ser fatal…”. Deu mesmo exemplo de que se à época “houvesse hoje um banco privado em Portugal, ele produziria ouro, porque os do Estado… gerem a falência”.
Revelava que preferia a prudência do Plano Melo Antunes à “rapidez”, “improviso”, “sem a mínima competência”, “inspirados pelos comunistas” que uma “assembleia selvagem” na noite de 11 para 12 de março levou a uma “avalanche de nacionalizações” o que “muito prejudicou a sua eficácia”.
Depois, Portugal ficou “à beira do caos, gastaram-se as última divisas. Felizmente, as reservas de ouro irão facilitar certas operações financeiras que manterão a Tesouraria em 1976 e permitirão ainda importar os bens essenciais de consumo corrente”, o que não se viria a revelar tão fácil.
Nessa entrevista, colocou em relevo a questão da gestão referindo que “não se improvisam bons gestores, e, quando se quer deixar de ter patrão de uma dia para o outro, apenas se corre o risco de destruir a máquina económica”. E foi mais longe sublinhando que “Champalimaud, os Mellos e os outros puderam, sem grande esforço, reconstituir no estrangeiro as suas fortunas, ou parte delas. Talvez não tenham muita pressa em voltar para o País. Mas é verdade que faltará, em certa medida, o seu espírito de iniciativa para relançar a economia portuguesa. O drama, sobretudo, é que com eles levaram milhares de técnicos, que não podem ser substituídos de uma assentada: uma vez recuperada a estabilidade, deveriam ser incitados a regressar”
A 9 de Setembro de 1976, numa comunicação ao país, diz: “700.000 trabalhadores das cinturas industrializadas e de certos serviços beneficiaram largamente com a revolução, a qual, contudo, pouco ou nada fez pela grande massa dos milhões de trabalhadores portugueses restantes”. Referia ainda, em 1978, que havia empresas geridas pelos trabalhadores que tinham sido “autênticas usurpações” enquanto outras tinham sido abandonadas pelos patrões e salvas pelos trabalhadores.
Das cerca de 220 empresas em autogestão seriam mantidas as não reclamadas, as outras, reclamadas pelos antigos donos seriam analisadas e defendia que o Sector Empresarial do Estado não podia ser ampliado a mais empresas pois “a economia ficava simplesmente paralisada”.
Foi no seu primeiro governo que surgiu uma lei de indemnizações para os bens nacionalizados com títulos de dívida com juro de 2% ao ano durante 25 anos, e se iniciou a devolução de empresas aos seus antigos proprietários como aconteceu por exemplo com a Têxtil Manuel Gonçalves.
Além disso, para atrair os antigos grupos económicos, permitia-se que aplicassem os títulos de dívida na compra de empresas vendidas pelo Estado e foi assim que Jorge de Mello viria a regressar com a compra da Alco e Oliveira & Ferreirinhas e José Manuel de Mello com a Uniteca e a Cifa.
Estas mudanças de Mário Soares eram proverbiais. Estava sempre atento aos sinais dos tempos e via tudo em todas as direcções. Como referia Victor Cunha Rego, “o treino da advocacia e a incomparável experiência das prisões por onde passou ajudaram-no a conhecer os homens. Muitos negam-lhe uma estratégia mas ninguém contesta a sua capacidade táctica”.
Os amigos europeus de Soares
Quando se estava a negociar a formação do VI Governo Provisório, Mário Soares teve de convencer Salgado Zenha para ministro das Finanças bem como os seus futuros secretários de Estado – Artur Santos Silva, Vítor Constâncio e Henrique Medina Carreira e, numa reunião no Hotel Altis, garantiu-lhes que iria ao estrangeiro tentar que dessem apoios financeiros a Portugal, mesmo não ocupando qualquer cargo ministerial. Pouco depois foi à Alemanha e à Suécia.
O VI Governo Provisório liderado pelo almirante Pinheiro de Azevedo tomou posse a 19 de setembro de 1975 e pouco depois Salgado Zenha, que era ministro das Finanças, convidou José da Silva Lopes para governador do Banco de Portugal que confirmou a falta de dinheiro. “Tive logo as dificuldades de não haver divisas. A única hipótese que tínhamos era vender ouro, ou, então, hipotecar ouro junto dos bancos privados, em condições bastante desfavoráveis. Felizmente Mário Soares e Salgado Zenha foram à Alemanha, falaram com o chanceler Schmidt e este persuadiu o Deutsche Bundesbank a emprestar-nos dinheiro, contra ouro. E foi isso que acabou por nos salvar”.
José Silva Lopes [1932-2015] recordava que a 25 de novembro de 1975 estava em Frankfurt, no Deutsche Bundesbank onde teve de expor a situação portuguesa, numa reunião com todo o conselho do Bundesbank que emprestaram 250 milhões de dólares. “Atrás deles vieram outros bancos europeus, como o BRI, que já nos fizera um empréstimo no tempo em que o professor Jacinto Nunes era governador do Banco de Portugal. Passámos a ter vários empréstimos contra ouro, e vivemos com eles durante um ano. Mas ao fim de um ano começaram a dizer-nos que não, que já não tínhamos mais possibilidades. Enfrentámos de novo dificuldades”.
No fim de 1975, Salgado Zenha, então ministro das Finanças, reuniu os ministros das pastas económicas e pediu a Mário Soares para estar presente. Confessou que saiu da reunião “com os cabelos em pé: eram precisos milhões de contos”. Acompanhado por Vítor Constâncio, demandou de Bona, onde esteve com Helmut Schmidt e já em Janeiro de 1976 esteve numa reunião da Internacional Socialista em Elsinore na Dinamarca, seguindo-se os Estados Unidos. Estes envolveram-se num programa de ajuda financeira a Portugal. Um memorando de 9 de fevereiro de 1976 para Gerald Ford, presidente dos Estados Unidos, faz uma análise da situação económica portuguesa e dá conta dos empréstimos feitos a Portugal e das necessidades de financiamento: “a economia portuguesa está numa situação grave depois da instabilidade política do ano passado. Os portugueses anunciam a tomada de uma série de medidas de austeridade, mas nenhuma delas poderá remediar os enormes problemas a curto prazo.
Os Estados Unidos concederam 25 milhões para Portugal no ano fiscal de 1975; a CEE-9 anunciou em outubro um modesto programa de assistência económica a Portugal, que inclui 175 milhões de dólares em empréstimos do Banco Europeu de Investimento (10 anos a 6,5% de juros anuais), um “inventário” dos programas de apoio bilateral dos países membros com o objectivo de identificar áreas em que cada país poderia suportar o pedido português ao FMI para assistência à balança de pagamentos. As nações europeias comprometeram-se com aproximadamente 326 milhões de dólares em vários tipos de ajuda ao longo dos próximos anos. A maioria dos observadores acredita que mais ajuda é necessária no curto prazo”.
O mito do ouro e o mito do escudo forte
No primeiro governo constitucional Mário Soares, que tomou posse a 23 de julho de 1976, entregou as Finanças a Medina Carreira e o Plano e a Coordenação Económica a António Sousa Gomes sobretudo através das secretárias de Estado das Finanças, Manuela Morgado e do Planeamento, Manuela Silva: “haver um ministro do Plano era uma coisa estúpida. Andei ali numa situação um bocado difícil, porque era preciso gerir a luta entre as duas Manuelas: uma queria o desenvolvimento e outra queria as finanças em ordem. As duas coisas eram necessárias, mas incompatíveis” (Joaquim Vieira).
José Silva Lopes considerou que “o ano de 76 foi quase um milagre”. O Governo conseguiu um limite aos aumentos salariais. “E a economia começou a progredir bastante. Mas com muitas dificuldades na balança de pagamentos. Continuávamos a exportar pouco. A taxa de câmbio estava sobre-avaliada porque a inflação subira cá muito mais do que nos outros países, os salários tinham disparado e portanto os nossos produtos perderam competitividade. Era preciso desvalorizar o escudo. Mas não conseguíamos porque havia grande oposição da parte do Governo. Alguns ministros tinham a mania de que sabiam de Economia… embora não soubessem. E havia o mito do escudo forte. Era o mito do ouro e o mito do escudo forte! Estes mitos eram defendidos mesmo por gente que se dizia da esquerda. Ignorantes!”.
O empréstimo Coca-Cola
Numa memorando para o Presidente dos Estados Unidos de 6 de Novembro de 1976, fazia-se uma avaliação da balança de pagamentos de Portugal em que se previa que as reservas cambiais de esgotariam em fins de Novembro e Henry Kissinger admite que a democracia portuguesa para ser bem sucedida precisa de garantias imediatas de apoio. Nessa altura, por sugestão de Frank Carlucci, surgiu o pacote de ajuda de 300 milhões de dólares, um empréstimo a seis meses com garantia de ouro e um segundo empréstimo a 3 anos, da ordem dos 550 milhões a 1,5 mil milhões de dólares com apoio dos EUA, países europeus e Japão a ser negociado num programa monitorizado pelo FMI.
Nesta reunião, pede-se urgência para as necessárias aprovações do Congresso e refere-se a necessidade de Portugal fazer reformas económicas para estimular a iniciativa privads e a atracção de investimento.
Como relembrou José Silva Lopes, “naquela altura era muito dinheiro. Esse empréstimo, ao contrário dos que obtivéramos até então, não possuía garantia de ouro. Era sem garantia, mas com uma condição: Portugal precisava de negociar um acordo com o FMI. Antes não tínhamos conseguido fazer isso porque em Portugal havia uma grande resistência. Mas em virtude deste empréstimo ficámos obrigados a isso. Foi também uma das nossas salvações”.
No entanto, houve um episódio curioso a propósito de um empréstimo de emergência. Em início de janeiro de 1977, cinquenta anos depois de ter sido proibida, o governo de Mário Soares abriu a porta à entrada a uma fábrica da Coca-Cola, promovida pelo empresário Sérgio Geraldes Barba. Dias antes, o The Wall Street Journal publicava um artigo intitulado de The Coca-Cola Diplomacy que relacionava a autorização de um empréstimo dos Estados Unidos ao Tesouro de Portugal e a concessão da licença industrial à Coca-Cola. “Durante semanas o Governo de Portugal aguardou nervosamente uma palavra de Washington sobre o pedido para um empréstimo de emergência de 300 milhões de dólares fosse aprovado e o dinheiro estava a caminho. No fim-de-semana o empréstimo foi finalmente autorizado. Mas o empréstimo era aguardado há muito tempo. Funcionários do Tesouro dos EUA referiram apenas “razões técnicas“. “Pode ter sido apenas coincidência, mas pouco antes de o empréstimo ter sido aprovado Portugal terminou a sua proibição de 50 anos contra a Coca-Cola. Se fossemos super-imaginativos, logo suspeitaríamos de que algum burocrata de Lisboa achou que o empréstimo de 300 milhões de dólares não saia devido à proibição de se fabricar Coca-Cola” escreveu o jornal.
“O Grande Empréstimo, além do dinheiro que envolvia, trouxe um grande aumento da confiança da banca internacional em Portugal. A partir desse momento os bancos internacionais privados, que não nos emprestavam um tostão, abriram-nos as portas. A começar pelos bancos alemães, que nos fizeram um empréstimo, garantido pelo governo alemão, logo no quadro do Grande Empréstimo. E logo ao mesmo tempo disseram-nos: agora oferecemos outro tanto sem garantia! Melhoraram muito as nossas condições. Entretanto, em Portugal, também já tínhamos feito algum ajustamento”, referiu José Silva Lopes.
Acordo com FMI chega em 1978
No Verão de 1977, a situação continuava a ser extremamente difícil. “Já se acabara o dinheiro dos empréstimos contra ouro, o Grande Empréstimo ainda não estava concluído… Chegámos a ter reservas que davam para pagar só um dia de défice! Em desespero, ainda consegui mais um empréstimo do BRI, de 100 milhões de dólares. Foi o que nos valeu”, recordou José Silva Lopes.
A economia portuguesa recebera, desde 1974, o impacto do primeiro choque petrolífero, as transformações económicas provocadas pela revolução com os aumentos salariais (93% em termos nominais e 25% em termos reais), estatização da economia e a independência das ex-colónias e a perda de mercados exportadores.
Como escreveu José da Silva Lopes, no período de 1974 a 1977, Portugal só acedeu aos mercados financeiros internacionais com empréstimos de curto prazo. As reservas cambiais de 1,6 mil milhões de dólares no fim de 1973 foram-se esgotando, e entre 197 e 1978 foram vendidas 111 toneladas de ouro das reservas de ouro do Banco de Portugal.
A primeira desvalorização do escudo tem o dedo de Michel Rocard, político e economista do Partido Socialista Francês que veio em 1976 a convite de Mário Soares. “Ele falou connosco no Banco de Portugal, expusemos-lhe a situação, ele convenceu o dr. Mário Soares, e o Governo autorizou-nos a desvalorizar o escudo em 15%. Até houve polémica, porque disseram que ultrapassei o limite. A questão é que há duas maneiras de definir desvalorização, e nós utilizámos a definição do FMI. Dessa maneira a desvalorização foi de 15%, mas da outra forma dava cerca de 16%. Os tais ministros que nos queriam controlar começaram logo a fazer barulho…”.
A desvalorização discreta de 15% em Fevereiro de 1977 e a introdução do crawlling peg em Agosto de 1977 permitiram reduzir o gap cambial para 18%, mas não eliminá-lo, o que combinado com a expansão do produto de 4,8% impediu a correcção do défice externo e o défice da Balança Fundamental era de 7,7% do PIB. As dificuldades sentidas em obter financiamento externo levaram as autoridades portuguesas a efectuar um acordo de estabilização económica com o FMI.
A introdução do crawling peg do escudo foi uma ideia de Rudiger Dornbusch, professor do MIT que estava numa missão no Banco de Portugal acompanhado por Paul Krugman, que era então um jovem estudante. Como explicou José Silva Lopes, o crawling peg consistia numa desvalorização de 1% ao mês “e garantíamos que se nos afastássemos disso reembolsávamos os investidores que tivessem contraído empréstimos a prazo com base nesta perspectiva. No fundo fazíamos uma espécie de seguro cambial” e subiram-se os juros que “foi também uma das grandes contribuições do Dornbusch e do Lance Taylor, dois grandes professores do MIT. Isso funcionou magnificamente e, em conjunto com o Grande Empréstimo, levou a que, a partir de meados de 1977, deixássemos de ter dificuldades na balança cambial”.
Continuavam as negociações com o FMI em que contavam com o apoio das equipas do MIT de tal modo que, como recordou José Silva Lopes, “uma vez, lá no FMI, quando era Governador do Banco de Portugal, disseram-me: ‘vocês são o Banco Central do mundo com melhor equipa de research, excepto talvez o Banco de Inglaterra”. O homem que me disse isto era inglês. Com o MIT cá, tínhamos o melhor que podia haver em matéria de aconselhamento económico”.
Em Junho de 1977, um consórcio de 14 países garante um empréstimo de 750 milhões de dólares a Portugal desde que negoceie com o FMI um stand-by arrangement. Entretanto, a 7 de dezembro de 1977, caíra o I Governo liderado por Mário Soares. Este, no entanto, consegue fazer um acordo de governo com o CDS, em que, não sendo uma coligação formal, o II Governo Constitucional, com Mário Soares ao leme vai ter três ministros apontados pelo CDS e o ministro das Finanças vai ser Victor Constâncio.
O acordo com o FMI é conseguido em maio de 1978 e impõe a subidas taxas de juro, restrições ao crédito sobretudo das empresas públicas, restrições aos aumentos salariais e menos apoios e controlo de preços entre outras medidas. Como referiu José da Silva Lopes, “o acordo era inteligente porque o FMI não nos obrigava a baixar a inflação de forma absurda. Para eles, e para nós também, baixar a inflação era um objectivo secundário. Os objectivos principais eram resolver o problema da balança de pagamentos e conseguir crescimento económico. E conseguimos crescimento económico! Agora seria impossível. Toda a gente tem a mania de que é preciso é baixar a inflação. E já nessa altura havia no Fundo quem pensasse assim. Felizmente, no nosso caso, nem eles nem nós pensávamos assim. E foi óptimo. Poucas vezes o FMI fez acordos com sucesso como aconteceu com Portugal”.
O II Governo Constitucional de Portugal, que tomara posse a 23 de janeiro de 1978 acabou por terminar em 29 de agosto de 1978 depois de conflito entre os dois partidos por causa do Serviço Nacional de Saúde lançado por António Arnaut e a gestão da reforma agrária por parte de Luís Saias, ministro da Agricultura.
Soares pede a adesão à CEE em 1977 e assina entrada em 1985. Em março de 1966, Mário Soares redige uma longa exposição a Américo Tomás, que não chegou a ser enviada porque a PIDE a apreendeu, onde escreve que Portugal precisa “do auxílio económico e político da Europa: 58% do comércio externo metropolitano é feito com a Europa Ocidental (25% com o Mercado Comum); mais uma razão para o nosso País se preparar rapidamente para viver a sua “hora europeia”, Vide Escritos Políticos.
Mais tarde, em 17 de abril de 1970, na declaração no debate no Conselho da Europa sobre Violações de Direitos Humanos em Portugal referiu que o país, para sobreviver, tem necessidade da Europa. “E é do reforço dos laços de cooperação, económicos como políticos entre Portugal e a Europa que poderá decorrer uma dinâmica nova, susceptível de obrigar a mudar a situação portuguesa”. Como disse a Joaquim Vieira: “a ideia central que me orientava, desde o meu regresso a Portugal, era a de que a integração europeia seria o contraponto absolutamente essencial para a descolonização, que se revelara inevitável e grandemente traumática”.
Em 28 de março de 1977, Mário Soares pediu a adesão de Portugal à CECA, CEE e CEEA, tendo sido aceite em 5 de abril de 1977 para se dar inicio às negociações e aos procedimentos previstos nos tratados. A 6 de julho de 1978, o conselho de Ministros da CEE deu por unanimidade uma reposta favorável ao pedido português e as negociações preparatórias da adesão de Portugal às Comunidades iniciaram-se em 17 de Outubro de 1978, Sinais dos tempos: a Comissão para a Integração Europeia reuniu-se pela primeira vez em 21 de dezembro de 1976, foi criada oficialmente sete meses depois em 3 de agosto de 1977, os membros nomeados a 27 de Setembro e 23 meses depois da primeira reunião ainda não tinha instalações.
As negociações foram longas e realizaram-se entre 17 de outubro de 1978 e 30 de março de 1985. Foram 27 reuniões ministeriais e 30 reuniões a nível de suplentes. João Salgueiro, então ministro das Finanças, fez uma declaração na reunião ministerial de 22 de Novembro de 1982 em que chamava a atenção para os atrasos injustificáveis das negociações e solicitava que se ultrapassassem as falsas questões técnicas e se dessem as negociações por concluídas.
Um ano depois, também Ernâni Lopes [1942-2010], em reunião a 29 de novembro de 1983, referiu que se estava a avançar devagar nas negociações entre Portugal e a CEE e que cinco anos de negociações era um período já bastante longo. Pouco antes da cimeira em Atenas com os chefes de governo de Portugal, Espanha, França, Itália e Grécia, a 11 e 12 de outubro de 1983 diz a Pierre Mauroy, primeiro-ministro socialista francês: “Giscard foi capaz de meter a Grécia na CEE quando lá estava o seu amigo Caramanlis, e que raio de amigos são vocês se não conseguem resolver o problema da Espanha e de Portugal”?.
Em 24 de outubro de 1984, uma declaração conjunta de Portugal e do conselho de ministros da CEE dava como objectivo o futuro alargamento da Comunidade a 1 de janeiro de 1986, assinada por Mário Soares e Lorenzo Natali.
Ernâni Lopes, o super-ministro das Finanças
Em 1983, a situação da economia portuguesa estava a deteriorar-se em consequência do desempenho da economia portuguesa em 1980-82 em que se registara uma forte desaceleração do crescimento do PIB, aumento da taxa de inflação, forte aumento do défice da conta corrente externa (até 13% do PIB em 1982) e dificuldades de financiamento externo, com consequente forte queda das reservas internacionais (até um mínimo equivalente a poucas semanas de importações).
Em 1983, durante a campanha eleitoral, Mário Soares escreveu uma carta aos empresários em que definia as prioridades do PS numa proposta de relacionamento activo e construtivo com todos os empresários portugueses, considerando a iniciativa privada como facto decisivo do desenvolvimento.
Como o PS não obteve a maioria absoluta acabou por se coligar com o PSD, ficando Mário Soares como primeiro-ministro e Carlos Mota Pinto, como vice-primeiro-ministro e o IX Governo Constitucional de Portugal tomou posse a 9 de junho de 1983. O ministro das Finanças foi escolhido por Mário Soares e era Ernâni Lopes que, na época, chefiava a Missão de Portugal junto das Comunidades Europeias. Como disse Mário Soares, “neste governo é conhecido que cobri completamente a política de Ernâni Lopes. Mais do que isso, os momentos mais difíceis não os deixei ao ministro das Finanças, fui eu que vim à televisão falar. Quando foi da redução do décimo terceiro mês, quando foi dos aumentos da gasolina…”. Acrescentando que “foi o meu governo, com o ministro das Finanças Ernâni Lopes que, através de medidas difíceis, fez a política de austeridade que nos permitiu entrar na Europa”.
Nos meados de 1983, o novo governo de coligação (PS-PSD), confrontado com a situação de grave crise no financiamento externo, anunciou um pacote de medidas de emergência e o início de negociações com o FMI para apoio financeiro. Em agosto, era assinada a carta de intenções e o memorando de entendimento com o FMI. O total do apoio financeiro fornecido pelo Fundo entre Outubro 1983 e o final de 1984 foi equivalente a cerca de 650 milhões de dólares, 3,5 % do PIB e quase o dobro do nível das reservas internacionais do país em 1983 (exclusive do ouro).
“O país tinha meio milhão de desempregados, havia 150 mil trabalhadores com salários em atraso, a inflação andava nos 30%, e a queda real dos salários rondava os 9%”, inventaria José Ernesto Cartaxo, consultando a documentação da época da CGTP.
Mesmo assim, e apesar de o governo ter terminado o mandato a 6 de novembro de 1983, depois de o PSD ter mudado de líder, com a ascensão de Anibal Cavaco Silva, e rompido o acordo. Este viria a vencer as eleições legislativas enquanto Mário Soares preparava a sua candidatura presidencial em que contou com o apoio directo de empresários próximos de Almeida Santos como António Dias da Cunha, então presidente do Grupo Entreposto, José Gomes Mota, militar ligado ao documento dos 9 e então dono da revista Negócios, e Joaquim Silva Pinto, ex-ministro dos Assuntos Sociais de Marcello Caetano e próximo da Associação Industrial Portuguesa
O projecto Emaudio, Murdoch, Maxwell e Ilídio Pinho
Em 1986, surgiu o projecto de criar um grupo de comunicação social que fosse próximo dos meios socialistas e sobretudo de Mário Soares, recém-eleito Presidente da República. Em entrevista a Joaquim Vieira, nega qualquer envolvimento no projecto: “[Nesse projecto] não negociei com ninguém – eu não sou homem de negócios, metam isso na cabeça”. Referiu ainda: “desconhece-se uma coisa essencial: é que eu tenho repulsa por esse tipo de coisas. Se me vier um gajo qualquer, por aquela porta ou por outra porta qualquer, falar-me de coisas de dinheiro, eu mando-o logo à merda. É a minha maneira de ser”. A sua repugnância por negócios e grande: “negociantes é uma coisa, políticos outra, e não se pode confundir as duas coisas”.
A Emaudio foi formalmente criada em 1987 e pouco depois começou o desfile de potenciais sócios, que foram recebidos pelo Presidente da República, como Sílvio Berlusconi, Rupert Murdoch e finalmente Robert Maxwell que se aliaria a Ilídio Pinho. Diria ainda que mal conhecia Ilídio Pinho. Nestes projetos também esteve prevista a participação da Interfina, empresa gerida por Carlos Ferro Ribeiro que se viria tornar sócio de Stanley Ho em vários negócios.
Nesta altura, Robert Maxwell estava mais interessado em conseguir ficar com a televisão de Macau, TDM, então estatizada, o que se viria a gorar. No entanto, no seu lastro deixou um rasto de decisões controversas e de malas de dinheiro para o financiamento de partidos, sobretudo quando O Independente publicou o primeiro artigo que veio a dar origem ao escândalo do fax de Macau.
Mário Soares estava a preparar a sua reeleição presidencial num clima de quase unanimidade quando a 16 de fevereiro de 1990 o semanário publicou um fax em que o intermediário de uma empresa alemã exigia a Carlos Melancia, governador de Macau, que era uma escolha directa do Presidente da República, a exigir a devolução de um donativo de 50 mil contos feito à Emaudio, empresa formada por socialistas próximos de Mário Soares para criar um grupo de comunicação social.
As autoridades alemãs conseguiram provar que o fax foi enviado da sede da Weidleplan, mas nunca se descobriu o seu autor. A 16 de Maio, a Polícia Judiciária entrou na sede da Emaudio, surpreendeu Rui Mateus com um mandado de busca e encontrou provas do pagamento feito pela Weidleplan. Estes acontecimentos atingem o coração do sistema de poder paralelo criado por Mário Soares que entrou em implosão com a demissão de Carlos Melancia, a dissidência de Rui Mateus, que num livro viria a expor as entranhas dos financiamento partidários ao Partido Socialista e a Mário Soares, Menano do Amaral, chegou a ser responsável pelas finanças do PS, entre outros.
Ilídio Pinho cruza-se com Mário Soares, então primeiro-ministro, com uma visita a Colep em 12 de abril de 1985 onde Veiga Simão, ministro da Indústria, e Soares apresentariam a nova política industrial e Soares inaugurou a fábrica de plásticos. Algum tempo depois, Ilídio Pinho ofereceu um jantar a Mário Soares e Maria Barroso, onde estavam oito dezenas de pessoas, sobretudo empresários, e onde houve vários apelos a que se candidatasse a Presidente da República.
Nessa época, Ilídio Pinho — que é filho de Arlindo Soares de Pinho, fundador da Arsopi onde estão três irmãos (Armando, Armindo e António Jorge) e irmão de Álvaro da Costa Leite, fundador da Vicaima — era um dos empresários mais destacados e lançar a Colep na diversificação para negócios na área financeira como o BPI, BCP, BNI, Global seguros, gás, transportes, cabos, etc. Era, então, uma espécie de placa giratória entre os empresários e gestores de Lisboa, com os empresários do Centro e Norte.
Quando Mário Soares apresentou a sua candidatura, Ilídio Pinho pediu para falar com Soares a quem ofereceu a sua ajuda. Foi da sua comissão de honra e foi convidado para a cerimónia de investidura e para integrar o Conselho de Ordens Honoríficas Portuguesas, e “durante os seus dois mandatos presidenciais, teve sempre a deferência de o convidar para recepções de gala a estadistas de países estrangeiros, na Ajuda, Queluz e Belém. Fazia ainda questão que integrasse as comitivas empresariais que o acompanharam nas viagens de Estado ao estrangeiro, assim como nas Presidências Abertas”, que realizou em várias regiões do país” escreve-se na biografia autorizada de Ilídio Pinho. Mais adiante refere-se que “veio a nascer, entre os dois e as suas famílias, uma profunda e duradoura amizade”.
Quando, em outubro de 1990, o filho Ilídio Pedro faleceu, Maria Barroso compareceu no funeral e, mais tarde, foi Mário Soares a descerrar a lápide. Na apresentação da sua biografia em 2015, Ilídio Pinho disse no seu discurso: “ao meu querido Dr. Mário Soares que, não podendo estar presente, está muito bem representado pela Dra. Isabel, sua filha, pela qual tenho grande admiração e amizade. Reconheço toda uma dívida total e pessoal, pois nunca esquecerei quando me apoiou ele e a sua família em momentos muito difíceis e trágicos da minha vida. A saudosa Maria de Jesus Barroso foi transportadora da chave da urna do Ilídio Pedro”.
A lua-de-mel com os empresários
O Conselho Geral da Fundação Mário Soares permite verificar a reverência dos meios empresariais ao ex-primeiro-ministro e ex-Presidente da República. Contam-se Abel Pinheiro e Fernanda Pires da Silva da Grão Pará que tiveram os seus bens nacionalizados, tal como Agostinho da Silva, empresário que esteve ligado à Torralta.
A nova vaga de empresários que surgiu na década de 1980 e que se constituía como a nova onda de grupos económicos portugueses como Álvaro da Costa Leite (já falecido) do Grupo Vicaima, Américo Amorim do Grupo Amorim, António Dias da Cunha, então accionista do Grupo Entreposto, Armindo Rodrigo Leite do Grupo Tertir, Belmiro de Azevedo do Grupo Sonae, Horácio Roque (já falecido) do Grupo Rentipar e do Banif, Ilídio Pinho, que criou o Grupo Colep, João Macedo Silva (já falecido) do Grupo RAR, João Pereira Coutinho do Grupo SGC/SAG e o irmão Vasco Pereira Coutinho do Grupo Temple, Salvador Caetano (falecido) do Grupo Salvador Caetano, Joaquim Silveira (falecido) do Grupo Sil.
Na área da construção, estava Pedro Teixeira Duarte e Manuel Fino, e ouros oriundos de antigos negócios de construção que já não existem como António Valadas Fernandes (falecido) da Engil (foi absorvida pela Mota), João Almeida Henriques da Amadeu Gaudêncio, e Laurindo Soares da Costa (falecido) da Soares da Costa.
Na hotelaria contam-se os falecidos Fernando Martins do grupo Altis ou João Bernardino Gomes dos hotéis Real. Estão ainda António Brás Monteiro, ligado à Lisgráfica, António Luís Magalhães Tavares à Cofaco, João Alexandre Alves da antiga FNAC, Fausto Leite de Almeida ou João Marques Pinto, o falecido Jorge de Brito, Emilio Herrera, antigo gestor da Nestlé, o falecido Joaquim Dias Cardoso, da antiga Maconde, ou Joaquim Jorge Perestrelo Neto Valente.
Até Belmiro de Azevedo, que sempre disse e manteve que Soares era “reconhecidamente mau gestor”, acabou também por apoiá-lo logo na sua primeira candidatura à presidência em 1986.
Soares, um ódio de estimação de Champalimaud
Em dezembro de 1976, o primeiro-ministro português, Mário Soares, foi em visita oficial ao Brasil. No salão vermelho do Hotel Nacional, em Brasília, anunciou que seriam bem-vindos de regresso a Portugal os empresários e quadros que assim o desejassem. Mas a determinada altura da conversa o então chefe do Executivo sentiu necessidade de explicar: “não vou negociar com os senhores Champalimaud e Espírito Santo que no passado exploraram o povo português.”
António Champalimaud não era homem de calar a sua indignação e respondeu num violento artigo publicado na primeira página do Jornal do Brasil de 30 de Dezembro de 1976. O título era “Quem é o Explorador do Povo?”. A resposta de Champalimaud era que os governantes portugueses eram os responsáveis pelo empobrecimento do país e pela difícil situação económica que nele se vivia. “(…) com a actual delapidação, abandalhamento e ignomínia mendicante, a que o Sr. Primeiro-ministro levou o país em tempo extraordinariamente curto, torna-se evidente como desde a Fundação de Portugal também não tinha havido maior explorador do povo do que o Sr. Mário Soares. Porque é explorador do povo aquele que, como S. Exa., lhe consome e destrói o património privado e público, e não aquele que, como eu, cria e acumula riqueza nas nações.”
Combativo, o empresário não dava tréguas. Mário Soares contou que, quando numa ocasião visitou Minas Gerais, António Champalimaud convocara figurantes a soldo para se manifestarem contra o primeiro-ministro português: “O Governador vai buscar-me ao hotel e diz que é melhor sairmos pela porta de trás, porque [na porta principal] há uma manifestação contra mim. ‘Então, saímos pela porta grande!’ No outro lado da rua estavam uns 200 gajos com uns grandes cartazes a dizer ‘Abaixo o vendedor de Angola, o ladrão que roubou Angola e a entregou aos soviéticos’, insultos desse género. Avancei para um dos que estava a gritar aquela coisa, brasileiro, ‘Sabe quem é esse que você diz que roubou Angola’, ‘Não, patrão, não sei’, ‘Sou eu. Pagaram-lhe, não pagaram?’, ‘Pagaram sim’, ‘Quem é que lhe pagou?’, ‘Foi o senhor Champalimaud’, ‘Já fez o seu serviço, enrole lá isso e disperse’.
O Governador estava espantado. Eu disse ‘É preciso não encarar estas coisas com dramas’.” Segundo Mário Soares, muitos anos depois, quando era Presidente da República, um filho de Champalimaud confirmar-lhe-ia que o pai pagara a manifestação e que fora esse filho quem a organizara. Na exposição Brasil/Portugal, em São Paulo, em Março de 1985, uma iniciativa conjunta da Associação Industrial Portuguesa (AIP) e da sua congénere brasileira, o stand de António Champalimaud promovia os seus empreendimentos agro-pecuários, exibia cartazes despeitosos dos políticos que então lideravam o país: Mário Soares e Ramalho Eanes. As frases eram reunidas num dossiê que distribuía aos visitantes em que se firmava que um dia chefiaria o Governo em Portugal. Referindo-se a Mário Soares, que responsabilizava pela descolonização e nacionalizações, escrevia: “quando eu constituir governo em Portugal ele não ficará sem emprego. Assumirá o Ministério da Parlapatice. Cada macaco no seu galho.”
Em 1983-1985, o governo do Bloco Central liderado por Mário Soares abriu o sector financeiro ao sector privado. Para António Champalimaud “a intenção do governo português é simplesmente de continuar iludindo os incautos. O Governo português dispõe, hoje, de uma maioria parlamentar que lhe permitiria alterar o dispositivo constitucional, que afirma ser irreversível, da estatização feita em 1975 dos meios de produção e da terra. Mas, a despeito disso, decidiu manter a Constituição tal e qual”.
Além disso, “o Governo português está impedido por motivos de ordem ideológica e de conveniência, de abrir mão da propriedade que confiscou. Ideologicamente porque o partido do Sr. Mário Soares não pode renegar perante o mundo o credo que diz professar. Por motivos de conveniência, ele também não quer perder o trunfo importantíssimo de que dispõe para manter a sua clientela, que a generosa distribuição de regalias e benesses de toda a ordem, com que contempla os seus correligionários, dando-lhes cargos invejáveis nas empresas que foram confiscadas.”
Mas em janeiro de 1995, depois de adquirido a Mundial Confiança, o Banco Pinto & Sotto Mayor e o Banco Totta & Açores, António Champalimaud foi recebido a seu pedido pelo presidente da República, Mário Soares.
A paixão dos banqueiros por Soares
Em 22 de março de 1985, Mário Soares, então primeiro-ministro inaugurou a instalações do Banco Português de Investimento (BPI), então como banco de investimento, em consequência da abertura do sector financeiro à iniciativa privada tomada pelo governo do Bloco Central (PS-PSD) liderado por Mário Soares.
O grande artífice deste projecto bancário era Artur Santos Silva, amigo e antigo colaborador de Mário Soares e filho do oposicionista Eduardo Santos Silva com quem Mário Soares privou e partilhou combates contra a Ditadura.
Meses depois, a 25 de junho de 1985, Mário Soares e Rui Machete, vice-primeiro-ministro, e Vítor Constâncio, governador do Banco de Portugal, estavam na primeira fila para assistir à assinatura da escritura do Banco Comercial Português (BCP), o primeiro banco comercial e que era presidido por Jorge Jardim Gonçalves.
Este gestor estava em Espanha como quadro do Banco Popular, para onde fora depois da nacionalização do Banco da Agricultura em 11 de março de 1975, quando em 1977 Ramalho Eanes, presidente da República, o desafiou a regressar. Pouco depois, o ministro das Finanças, Medina Carreira, convidava-o para administrador do estatizado Banco Português do Atlântico, a que vir a presidir entre 1979 e 1985.
Ricardo Espírito Santo Salgado nunca escondeu tanto a gratidão como a amizade por Mário Soares, que mesmo depois da queda do Grupo e Banco Espírito Santo e da profusão de processos judiciais que se seguiram manteve a reciprocidade.
Em 2005, Ricardo Salgado dizia: “nós devemos-lhe o facto de ter convidado o Grupo a regressar a Portugal nos anos 80. Acho que é um político espectacular e permitiu que Portugal entrasse na Comunidade Europeia”. Em 1984 traçam a estratégia de regresso.
No poder está Mário Soares como primeiro-ministro e Ernâni Lopes como Ministro das Finanças, que lançam campanhas de sedução junto de antigos quadros e empresários portugueses. Mário Soares reuniu como Manuel Ricardo Espírito Santo e pediu-lhe que o Grupo Espírito Santo regressasse. As primeiras movimentações dos Espírito Santo ocorrem em 1985 quando adquirem uma pequena sociedade de investimentos, a FINC-Sociedade Portuguesa Promotora de Investimentos, que se transformaria na ESSI, depois Banco Espírito Santo de Investimento (BESI) e, agora, Haitong Bank.
Surgem os primeiros investimentos imobiliários com a aquisição do parque dos Príncipes por 800 mil contos, a Quinta do Patiño em Sintra. Antes das privatizações dos bancos e seguradoras, Mário Soares, presidente da República, terá intercedido junto de François Mitterrand, presidente da República, para que o Crédit Agricole se associasse à família Espírito Santo na reconquista do BESCL e da seguradora Tranquilidade. Em 31 de dezembro de 1989, a Espírito Santo Financial Portugal, e a Predica do Crédit Agricole ficam a controlar a Tranquilidade e em fevereiro de 1992, depois de duas fases de reprivatização, os dois parceiros ficaram com o controlo do BESCL.
Bibliografia
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- Leonor Xavier, Maria Barroso – Um Olhar Sobre a Vida, Oficina do Livro, 2012
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Mário Soares, Um Político Assume-se Mário Soares, Temas e Debates, 2011 - Rui Mateus, Contos Proibidos- memórias de um PS desconhecido, Publicações D. Quixote, 1996
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Mário Soares: O político que não gostava de números
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