A Importância Estratégica das Métricas das Contas Públicas na política orçamental
O economista e ex-ministro Eduardo Catroga escreve um ensaio sobre as métricas das Contas Públicas e a forma como impactam na definição das políticas orçamentais dos governos. Com exemplos.
As métricas contabilísticas têm uma importância bem maior do que se pensa, sobretudo pelas suas falhas e pelas consequências negativas a que conduzem, quer na economia privada, quer nos sectores de economia pública.
As métricas contabilísticas empresariais e do sector público (contas nacionais) são diferentes, mas muitas das suas falhas são comuns e reportam-se, em especial, a dois temas:
- O perímetro de consolidação das contas.
- O cálculo do justo valor das variações patrimoniais, das responsabilidades contingenciais e dos riscos incorridos em certas operações registadas em contas fora do balanço, ou com impactos distintos no balanço e na demonstração de resultados.
No domínio empresarial, a União Europeia adoptou, em 2003, as IAS (International Accounting Standards), actualizadas em 2008, e a sua adopção tornou-se obrigatória para todas as empresas europeias com contas consolidadas. Os bancos, por seu turno, estão sujeitos, para além das IAS, a métricas específicas sobre instrumentos financeiros, com destaque para a IFRS 7 (International Financial Reporting Standards), complementada pela regulação de Basileia III e dos bancos centrais.
A nível mundial, o Sistema de Contas Nacionais é gerido e coordenado por cinco entidades – a ONU, o Banco Mundial, o FMI, a OCDE e o Eurostat.
As falhas das métricas em muitas partes do mundo facilitaram aproveitamentos fraudulentos de enorme dimensão, com repercussão no mercado de capitais, na credibilidade das instituições e nas economias. No domínio empresarial, o caso da empresa ENRON, de 2002, na altura uma das maiores empresas dos EUA, foi um exemplo paradigmático.
Com a conivência da auditoria externa, durante anos os executivos esconderam movimentos financeiros em empresas de fachada, por si controladas, destruindo provas; quando a empresa faliu, descobriu-se que o prejuízo oculto era de USD 1,5 biliões e as dívidas não registadas atingiam USD 13 biliões.
Para eliminar o risco de falhas, as métricas contabilísticas internacionais das empresas privadas, incluindo as que respeitam estritamente aos bancos, têm vindo a ser aperfeiçoadas, mas em geral demasiado tarde.
A insuficiência da informação contabilística leva a que os accionistas e as entidades reguladoras não actuem preventivamente ou que só intervenham tardiamente e, bastas vezes, nem sempre da forma mais inteligente, com bases técnicas adequadas.
Foi o aproveitamento de uma falha da métrica contabilística bancária que contribuiu para o ambiente que conduziu à bolha da crise do subprime nos EUA, que, por sua vez, espoletou a crise financeira global de 2008. Esta, por seu turno, abalou a estabilidade do sistema monetário e financeiro mundial e potenciou a crise de 2009-2012 das dívidas soberana e do Euro, que já era latente. As falhas das métricas contabilísticas não têm tido menos importância na esfera das entidades públicas, antes pelo contrário.
No seio da União Europeia vigorou o SEC 95 até 2014, sendo apenas nesse ano substituído pelo SEC 2010. Esta alteração decorreu porventura já tardiamente, dado o desfasamento entre a evolução económica, social, política e tecnológica dos últimos 20 anos.
Ocorreram falhas clamorosas que permitiram expedientes governamentais de “contabilidade criativa”
Entretanto, ocorreram falhas clamorosas que permitiram expedientes governamentais de “contabilidade criativa” (isto é, de desorçamentação e de ocultação de despesa e da verdadeira dimensão da dívida pública) em vários Estados-membros, entre os quais Portugal.
Não se julgue que fomos exemplo único na União Europeia. Até na Alemanha a “contabilidade criativa” foi utilizada, por exemplo, na companhia dos caminhos-de-ferro e na miríade de bancos regionais apoiados pelos respectivos Estados.
Entre nós, a principal falha nas contas do sector público residiu na insuficiência do perímetro de consolidação e no atraso do processo de implementação da contabilidade digráfica (“óptica de compromissos”) como complemento da tradicional “óptica de caixa” da Contabilidade Pública.
Quando exercemos o cargo de ministro das Finanças entre 1993 e 1995, detectámos esta falha e iniciámos o projecto de elaboração de um Plano Oficial de Contabilidade Pública (POCP) na óptica de compromissos (contabilidade digráfica). Tal projecto veio já a ser aprovado pelo Governo de António Guterres, em 1997.
Passados vinte anos, o seu grau de implementação ainda hoje não cobre todo o universo das contas do sector público. Entretanto, já em 2015, o POCP foi adaptado às normas internacionais de contabilidade, e ao sistema contabilístico privado, com a aprovação do SNC-AP.
O SEC 95 circunscreveu o perímetro das contas públicas apenas ao SPA (Sector Público Administrativo), formado pela Administração Central, pela Administração Regional e Local e pela Segurança Social. Deixou de fora, durante muitos anos, grande parte do Sector Empresarial do Estado (SEE), a nível da Administração Central, Regional e Local, e permitiu a explosão da despesa e da dívida em certos veículos especiais, como as PPP (Parcerias Público-Privadas).
Então, já era evidente que o controlo da despesa pública e o controlo do défice e da dívida pública não deviam confinar-se ao SPA. Devia estender-se ao SEE (que já era, na altura, o principal veículo da desorçamentação, sobretudo através das empresas de transportes), integrando-o no perímetro da consolidação e sujeitando-o à mesma disciplina financeira.
A partir de 1995, esta via “aberta” de desorçamentação e despesismo cresceu exponencialmente, sendo um dos factores que levaram a um volume crescente nos anos seguintes de “dívida oculta”, ampliada com as PPP. Tudo conduziu a um excesso de endividamento público que, a par de outros factores ligados à fraca qualidade de alocação de recursos na economia e à queda da produtividade e da competitividade, levou à situação de pré-bancarrota em meados de 2011, evitada in extremis pelo apoio financeiro da Troika.
Exigiu, depois, um forte programa de ajustamento, ainda hoje em fase de consolidação. O desconhecimento da magnitude da dívida oculta, gerada cumulativamente por esta desorçamentação, deu origem a uma grave falha no cálculo do montante do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) da Troika, em Maio de 2011.
Como a informação era incompleta, a “estimativa” das necessidades brutas de financiamento público, entre 2011 e 2014, foi subavaliada. O total foi inicialmente fixado em € 152,4 biliões, e o empréstimo da Troika em € 78 biliões (dos quais € 12 biliões para a recapitalização da Banca), com o pressuposto de que o restante seria financiado através da poupança interna e dos mercados externos. Pressupostos imperfeitos.
Finalmente, a partir da 3.ª avaliação do PAEF, a Troika passou a considerar nas contas públicas um perímetro de consolidação alargado, acrescentando ao SPA as EPR (Empresas Públicas Reclassificadas), de tal sorte que, na 11.ª avaliação, em 28-02-2014, a própria Troika apresentou como estimativa revista do montante das referidas necessidades brutas de financiamento, entre 2011 e 2014, o valor de € 227,1 biliões (ou seja, € 75 biliões acima da estimativa inicial).
Empréstimo da Troika deveria ter atingido, teoricamente, o montante de € 116 biliões
Isso quer dizer, assumindo o mesmo pressuposto de repartição por fontes de financiamento, que o empréstimo da Troika deveria ter atingido, teoricamente, o montante de € 116 biliões, ou seja, mais 36 biliões do que os € 78 biliões acordados no Memorando.
Apesar de a Troika ter sido avisada, por nossa influência, desta falha analítica na concepção do PAEF, logo no início dos seus trabalhos, ainda com o Governo de José Sócrates, ela não foi atempadamente corrigida. Tal acarretou uma deficiente percepção da dimensão do ajustamento financeiro necessário e um enviesamento na escolha das medidas de política orçamental e financeira, o que afectou negativamente os resultados alcançados na consolidação orçamental, levando, entre meados de 2011 e meados de 2014, a sucessivas revisões das metas.
Por outro lado, uma parte significativa da brusca subida contabilística de 19 pontos percentuais do rácio da Dívida Pública, de 2011 para 2014, em relação ao PIB, ficou justamente a dever-se ao alargamento do perímetro de consolidação que a Troika acabou por impor e que foi continuado com a implementação, a partir de Setembro de 2014, do SEC 2010, a nova métrica que veio substituir o SEC 95 em toda a União Europeia.
Com efeito, de entre as mudanças que o SEC 2010 veio introduzir entre nós, destaca-se, em primeiro lugar, o alargamento do perímetro da consolidação. Nas contas nacionais, esse perímetro passou a ser definido pelo somatório das entidades que consolidam em contabilidade pública com as demais entidades públicas que não cumpram o teste da receita mercantil. Ora, foi a alteração deste teste, do SEC 95 para o SEC 2010, que determinou o alargamento das EPR.
No SEC 95, não eram integradas no perímetro de consolidação em contabilidade nacional as entidades públicas cujas receitas mercantis fossem superiores a 50% dos custos operacionais. No SEC 2010, este critério passou a reportar-se à totalidade dos custos, os quais passaram a incluir os custos financeiros suportados (juros e comissões).
Como grande parte das entidades públicas que não consolidavam no SEC 95 estava financeiramente muito endividada, esta alteração do critério definidor do atributo de mercantilidade ampliou muito significativamente o conjunto das EPR; de tal modo que, em Setembro de 2014, para efeitos do PDE (Procedimento de Défices Excessivos), foram reclassificadas e integradas como EPR 268 entidades públicas (com destaque para a CP, Carris, Parpública, EDIA e Hospitais EPE). A maioria delas eram entidades do sector público com uma componente histórica de forte desorçamentação.
Portanto, dado que muitas destas novas EPR vinham acumulando resultados estruturalmente negativos, a sua integração aumentou em muito as necessidades de financiamento da totalidade das Administrações Públicas (conjunto das AP integradas na métrica S.13).
A substituição do SEC 95 pelo SEC 2010 determinou, também, outras alterações importantes nesta métrica, no domínio do registo e da valoração contabilística, com destaque para as seguintes, como salienta o autor do livro:
- O reconhecimento da despesa pública em I&D como formação de capital constitutiva de activos de propriedade industrial, o que implicou uma subida significativa na série do PIB (entre nós revista pelo INE), entre 1995 e 2013.
- O registo da aquisição de equipamentos militares (expurgado do valor da sua utilização para fins civis) como despesa pública de capital.
- O registo de SGPS (Sociedades Gestoras de Participações Sociais) públicas como sociedades financeiras (no SEC 95, eram maioritariamente não financeiras); esse registo não impediu, porém, a integração nas AP das entidades que não tinham autonomia de gestão, como a Parpública, bem como das suas subsidiárias não mercantis.
- A transferência de fundos de pensões privados (da PT e de bancos) para as AP passou a ser considerada uma operação financeira. Foram, pois, anuladas a receita orçamental inicial decorrente da transferência das respectivas disponibilidades, bem como as despesas orçamentais subsequentes, para pagamento das pensões em curso, nos anos seguintes.
- Os contratos de derivados financeiros passaram a ser contabilizados como activos financeiros, e os pagamentos dos correspondentes juros como operações financeiras, pelo que deixaram de ser considerados no âmbito do PDE. O correspondente impacto diminuiu, porém, consideravelmente, com a rescisão de muitos destes contratos em 2013 (com ressalva das responsabilidades contingenciais entretanto criadas nas situações que ainda estão a ser objecto de litigância jurídica).
Para além destas alterações, há situações que também tiveram um tratamento contabilístico melhorado no SEC 2010 e outras que ainda não o tiveram. No primeiro caso, encontram-se as PPP (Parcerias Público-Privadas); no segundo, as responsabilidades contingenciais e as dívidas comerciais a fornecedores não pagas nos prazos contratuais (“arrears”).
A contabilização do investimento realizado por intermédio de uma PPP no défice e na dívida pública depende da alocação de riscos; o risco de construção e o risco de disponibilidade ou de procura deveriam ser sempre alocados ao sector privado. Isso permitia que uma dada PPP ficasse fora do perímetro de consolidação das AP (seria contabilizada como operação “off balance sheet”, tal como a operação semelhante, a concessão concursal de uma determinada infra-estrutura ou serviço, públicos).
Entre nós, a maioria das PPP, que são sobretudo rodoviárias, não cumpria o mencionado critério de alocação de riscos e, portanto, essas PPP devem integrar o perímetro de consolidação das Administrações Públicas (AP). Neste caso, deve registar-se o investimento como despesa de capital (em geral, usa-se como “proxy” o pagamento da concessionária à construtora), e os fluxos dos futuros pagamentos do Estado à concessionária devem ser divididos em duas parcelas – uma de amortização de dívida, que não conta para o défice, e outra de pagamento de juros, que concorre para o défice.
O caso das SCUT (Norte Litoral, Costa da Prata e Algarve) levou o Eurostat a introduzir, em 2011, uma excepção. Apesar de estas PPP cumprirem o critério de alocação do risco de construção e de disponibilidade ao sector privado, o Eurostat determinou que elas fossem contabilizadas como “on balance sheet”, dado que o Estado decidiu introduzir portagens (em seu benefício e pagas, naturalmente, pelo utilizador) que representavam mais de 50% dos pagamentos do Estado ao parceiro privado.
Por analogia com o conceito de receita mercantil, o Eurostat decidiu que, com a introdução de portagens, o Estado passou a deter a propriedade económica do bem – a Estradas de Portugal passou a ser o novo concedente e a receber as portagens, com o privado a receber por disponibilidade.
A má utilização de modelos de PPP, deficientemente contabilizados no défice e na dívida pública, foi um expediente utilizado por governos despesistas.
Por toda a parte, e particularmente em Portugal, a má utilização de modelos de PPP, deficientemente contabilizados no défice e na dívida pública, foi um expediente utilizado por governos despesistas, com práticas reiteradas de ocultação da correspondente desorçamentação.
Não é seguro que, no futuro, os novos critérios impostos pelo Eurostat ponham termo a tais práticas. Há sempre imaginação para inventar novas modalidades ou novas cláusulas contratuais para tornear aqueles critérios e para ocultar de novo tais práticas.
Os casos de responsabilidades contingenciais (sobretudo avales do Estado concedidos a grandes empresas privadas ou públicas) e de “arrears” têm sido igualmente grandes fontes de práticas de despesismo e de ocultação de desorçamentação. E a sua contabilização no défice e na dívida pública, mesmo nas atuais métricas impostas pelo Eurostat, continua ser muito deficiente ou virtualmente inexistente.
Por exemplo, no caso dos avales do Estado a uma entidade EPR, a consolidação impede a percepção do risco de execução da garantia; este tipo de casos, com garantias do Estado a bancos privados financiadores de EPR, ocorreu, por exemplo, com EPR regionais, em situação de falência técnica (da Região Autónoma da Madeira, a qual, por seu turno, esteve sujeita a um PAEF, entre 2011 e 2015, em que o Estado Português fez o papel da Troika). Não sendo contabilisticamente exigíveis provisões para estes riscos contingenciais, a concessão destes avales acabou por alimentar um despesismo que urgia cortar radicalmente.
O caso dos “arrears” teve, entre nós, uma importância crucial sobretudo no caso das Finanças Locais, determinando que um grande número de municípios tivesse de recorrer a programas de empréstimo do Estado (em especial, o PAEL de 2012) para reestruturar dívida.
Com essa reestruturação puderam pagar faseadamente estes “arrears”, incrementando em correspondência o seu endividamento de longo prazo e sujeitando-se à disciplina financeira de programas de saneamento financeiro, cuja execução se encontra legalmente fixada e é acompanhada e controlada, indirectamente, pelo Ministério das Finanças.
O livro de Joaquim Miranda Sarmento
Esta breve digressão em torno das questões essenciais que se levantam às insuficiências das métricas contabilísticas na esfera pública, para prevenir ou impedir práticas governamentais de despesismo e desorçamentação, demonstra a oportunidade e a indispensabilidade deste livro que o Professor Doutor Joaquim Miranda Sarmento, em boa hora, escreveu, intitulado Contas Nacionais no Sector Público e Administrativo – como se calcula o défice a dívida pública. Trata-se de uma obra pedagógica e rigorosa que permite ao leitor compreender a racionalidade das métricas fixadas no Manual do Eurostat, de forma simples e focada, mas com o detalhe e o aprofundamento necessários para abordar as questões acima enunciadas resumidamente.
Muitos comentários e análises que têm surgido sobre as políticas públicas financeiras executadas por governos de Portugal na última vintena de anos pecam justamente por não estarem alicerçadas em bases técnicas rigorosas, que este livro apresenta, fundamenta e exemplifica.
Este livro é, pois, de leitura obrigatória para quem queira compreender adequadamente a evolução das contas públicas e reflectir sobre as políticas financeiras que os governos de Portugal devem executar, com consistência, e sobre o que deve ser feito, para se evitarem novos episódios de despesismo e desorçamentação como os que ocorreram no passado.
O objectivo da criação de condições de sustentabilidade das finanças públicas deve ser interiorizado por todos como uma componente crítica de uma política económica coerente que inclua igualmente medidas estruturais viradas para o aumento da taxa de crescimento económico a médio e longo prazo, essencial para a melhoria duradoura dos níveis de bem-estar social.
O artigo que agora se publica baseia-se no prefácio ao livro “Manual de Finanças Públicas e de Contas Nacionais no Setor das Administrações Públicas: O processo Europeu e o cálculo do défice e da dívida pública” de autoria de Joaquim Miranda Sarmento (colunista do ECO).
O prefácio foi escrito segundo as regras do antigo acordo ortográfico.
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