A gestão da floresta em Portugal tem três problemas sistémicos

  • Marta Santos Silva
  • 16 Outubro 2017

O primeiro relatório da comissão técnica sobre Pedrógão Grande critica três grandes problemas estruturais na forma como Portugal se organiza e prepara para o combate aos incêndios.

Mais uma vez no mesmo ano, o país foi fustigado por incêndios, desta vez de norte a sul, que resultaram em dezenas de mortos. Após os incêndios de Pedrógão Grande e de Góis, que devastaram o centro do país, uma comissão técnica independente desenvolveu um primeiro relatório, entregue na Assembleia da República, no qual assinalou as falências concretas que aconteceram no caso de Pedrógão Grande e que permitiram que se tornasse num incêndio tão difícil de controlar, assim como as causas que provocaram a morte de 64 pessoas nesses dias.

No entanto, o relatório também analisa as causas mais profundas que têm afetado a gestão florestal e a proteção contra incêndios, que deveriam ser temas sempre discutidos mas foram remetidos “para uma situação reconhecidamente insuportável e que exige soluções profundas, estruturantes e consensuais” pelos incêndios de 2016 e de 2017 — num relatório escrito ainda antes do “pior dia do ano”, este domingo.

O relatório começa por referir que a gestão florestal tem sido esquecida, “embora de importância central na vida das nossas comunidades”, até este período de incêndios mais devastadores. Deixa então três problemas sistémicos no centro das falhas na gestão florestal.

Os problemas no caminho de uma boa gestão

Há três principais razões que “têm retirado coerência aos domínios da gestão florestal e da defesa da floresta contra incêndios”, assume o relatório, e logo a seguir enumera-as:

  • Conhecimento — Produzido, mas ignorado

A comissão técnica acredita que embora se desenvolva muito novo conhecimento nas áreas científicas da meteorologia, silvicultura e gestão do fogo em Portugal, assim como através da recuperação de “modelos e práticas ancestrais da gestão da floresta”, este é ignorado pelos decisores.

O conhecimento “não pode continuar a ser entendido apenas como um tema que anima a reflexão académica, que reforça os indicadores de produção científica ou que prestigia os centros de investigação científica”, lê-se no relatório, “sem que se assuma uma insistência significativa na transferência e na aplicabilidade do conhecimento aos problemas concretos do país.”

De tal maneira este conhecimento não é transferido para a prática que Portugal viu, nos últimos anos, “intervenções que fizeram tábua rasa do conhecimento acumulado e que levaram a introduzir alterações, reajustamentos ou reformas que quebraram o ciclo normal de valorização e proteção deste recurso nacional”.

  • Qualificação — Um problema em vários setores

O relatório também destaca uma falta de qualificação “abrange transversalmente diversos setores comprometidos com a defesa da floresta contra incêndios”. Desde logo, existirem tantos intervenientes diferentes no combate e prevenção de incêndios não facilita a coordenação nem a qualificação, “pois confrontam-se profissionais com diferentes capacidades e competências, enquadrados por variadas instituições, independentes umas das outras (públicas e privadas), e assumindo funções centradas em atribuições que, nalguns casos, incidem em desafios laterais aos que justificaram as respetivas mobilizações.”

“A evolução deste complexo e do respetivo enquadramento social conduziu a uma redução da disponibilidade de muitos dos intervenientes, à ausência de formação e capacitação profissionais adequadas para muitos outros e, ainda, ao não integral aproveitamento de outros que, embora preparados, não têm sido chamados para intervir nos momentos para os quais poderiam ter uma atuação positiva“, acrescenta ainda o relatório. Assim, existem fossos, esclarece a comissão técnica, entre aquilo que os intervenientes estão treinados para fazer e o que de facto fazem no campo, o que constitui, “um dos graves problemas que impede a solução de muitos dos problemas existentes em torno dos incêndios florestais”.

O relatório critica ainda que haja pouca ligação entre os meios de intervenção direta no campo e as entidades e agentes que assumem a componente tecnológica, sejam eles Universidades, o Instituto Nacional de Conservação da Floresta, ou empresas privadas, e os próprios acontecimentos — os profissionais da parte técnica não costumam ser chamados a intervir na altura dos incidentes. Em comparação, no país vizinho, “qualquer incêndio de amplitude significativa tem um Diretor, que é um técnico florestal experimentado na gestão da floresta e do fogo.” Em Portugal, esse não é um perfil profissional muito solicitado, “conduzindo a que as operações de combate a incêndios tenham um caráter estritamente quantitativo, em redor da mobilização de homens, viaturas, aviões ou helicópteros, apimentados com os relatos artificialmente empolados da responsabilidade de alguns órgãos da comunicação social”.

  • Governança — Confusão institucional

“Recorde-se, desde logo, que a autoridade florestal nacional mudou seis vezes de figurino institucional nos últimos vinte anos“, começa por destacar a comissão técnica independente. “Nada de bom haveria a esperar desta evolução tortuosa”.

É importante que a prevenção e o combate dos incêndios sejam feitos por operacionais que participam em ambas as fases do processo, algo que acontece noutros países mas não em Portugal. Quando isto não acontece, há enorme potencial para “gerar situações de desaproveitamento de oportunidades criadas pela prevenção para aumentar o êxito do combate”.

O atual modelo de governança, que subdivide e separa órgãos que deveriam trabalhar em conjunto, tem muitas deficiências que acabam por resultar não só em mais incêndios florestais, mais difíceis de controlar, mas também num ordenamento e gestão do espaço rural que é insuficiente.

E num momento de emergência, a situação torna-se ainda mais difícil. Tentar conjugar as diferentes entidades num momento crítico, quando não existe um comando especializado que possa ter autoridade para juntar e coordenar as atividades, é praticamente impossível. “Entidades privadas, associativas, profissionais, a que se deverão associar os diversos agentes de proteção civil (segurança, saúde, transportes, logística, Forças Armadas), transformam estas atuações em complexas operações, obrigatoriamente multifacetadas, que exigem grande capacidade de liderança e comando”, lê-se no relatório.

O que fazer para resolver este terceiro grande problema da ordenação florestal em Portugal? “Importa refazer os mecanismos que possam permitir uma ação eficaz, designadamente a partir de um novo pacto social a estabelecer entre proprietários, utentes e instituições, com impacto nacional e municipal”, escreve a comissão técnica.

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