Reguladores não estão sozinhos. Críticas à reforma de supervisão multiplicam-se pelo setor financeiro
Bolsa, emitentes, fundos de investimento e até defesa dos consumidores... Várias vozes contra a proposta do Governo juntam-se aos reguladores. A dúvida é se serão chamados a dar opinião no Parlamento.
A reforma da supervisão, há muito prometida pelo Governo, era esperada e é aplaudida pelo setor. No entanto, as críticas não faltam. Começou pelos intervenientes diretos, os supervisores, nos seus pareceres — especialmente focados em possíveis limitações à independência e aumento dos custos –, mas espalhou-se aos emitentes, à bolsa de Lisboa, aos fundos de investimento e até aos representantes dos consumidores.
A base da proposta de lei é o reforço dos poderes do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (CNSF), que terá pessoal em permanência e exclusividade e cuja administração irá contar com dois elementos de cada supervisor e um administrador executivo. As três entidades — Banco de Portugal (BdP), Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) — vão ter de financiar as atividades, sendo que o projeto de lei prevê a possibilidade de serem cobradas taxas.
Esta é uma das maiores preocupações. “Qualquer novo modelo de supervisão que assente numa estrutura de financiamento mais dispendiosa e que se pretenda exclusivamente suportada pelas entidades supervisionadas constitui uma solução de efeitos fortemente negativos e consubstancia um modelo falhado“, afirmou Abel Sequeira Ferreira, diretor executivo da Associação de Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado (AEM), ao ECO.
Considera que esta opção deveria fazer exatamente o contrário: reduzir a carga operacional, o sobrepeso regulatório e burocrático e a complexidade e custos excessivos que sobrecarregam um número crescentemente menor de entidades supervisionadas.
“O novo acréscimo de custos que o modelo proposto permite antecipar, em nenhuma circunstância deverá ser suportado pelas entidades supervisionadas que já hoje, em Portugal, são obrigadas a suportar custos de supervisão significativamente superiores aos que incidem sobre as entidades europeias suas congéneres, e, muito especialmente, não deverá ter de ser suportado pelas empresas não financeiras”, sublinhou o representante das empresas cotadas.
A opinião é partilhada pela própria bolsa portuguesa. Isabel Ucha, presidente da Euronext Lisbon, lembrou, em entrevista ao Jornal Económico (acesso pago), que as taxas de supervisão diretas ascendem atualmente a quase 1,26 milhões de euros por ano, após um aumento de 40% em 2016. “Este modelo de supervisão prejudica o desenvolvimento do mercado de capitais”, defendeu Ucha.
Além das taxas, maior complexidade também traz custos
“Não são só os custos diretos do funcionamento das novas entidades de supervisão, é o custo da complexidade das decisões de supervisão e os custos adicionais para o sistema”, frisou a presidente da Euronext Lisbon, ao semanário. Os custos não provêm apenas das potenciais taxas, mas também da complexidade adicional associada à criação de novas entidades. Além dos novos poderes do CNSF, são criados a Autoridade de Resolução e Administração de Sistemas de Garantia (ARSG) e o Comité Nacional para a Estabilidade Financeira (CNEF).
"Qualquer novo modelo de supervisão que assente numa estrutura de financiamento mais dispendiosa e que se pretenda exclusivamente suportada pelas entidades supervisionadas constitui uma solução de efeitos fortemente negativos e consubstancia um modelo falhado.”
Da mesma forma, Abel Sequeira Ferreira também critica a complexidade do modelo proposto, que considera não ter em conta o “indispensável” objetivo de tornar a supervisão financeira mais simples, transparente e eficiente. Na perspetiva do representante dos emitentes, este requisito é imprescindível para sinalizar o caminho de um mercado (e de uma economia) mais atrativo para o investimento e para as empresas.
“A existência de níveis adicionais de complexidade não é justificável, nem face à dimensão do país nem, principalmente, perante um contexto estrutural de contração e deslocalização da atividade financeira consubstanciado num número cada vez menor de empresas emitentes cotadas, redução do número de intermediários financeiros e quebra de praticamente todos os seus indicadores de funcionamento e eficiência”, aponta.
Fonte: Parecer da CMVM (adaptado pelo ECO)
Reforma quer prevenir erros do passado. “Ambição falhou”
A queda de grandes bancos com custos para os contribuintes — como o BPN, em 2008, o BPP, em 2010, o BES, em 2014, ou o Banif, em 2015 — foi a grande razão que motivou esta reforma. Tanto o primeiro-ministro António Costa como o ministro das Finanças Mário Centeno afirmaram várias vezes querer prevenir que falhas de supervisão voltem a ser cometidas. No entanto, existem dúvidas tanto dentro como fora do mercado financeiro se a reforma agora apresentada terá esta capacidade.
José Veiga Sarmento, presidente da Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Patrimónios (APFIPP) assinalou, em entrevista ao Jornal de Negócios (acesso pago) e à Antena 1, que esta “era a oportunidade, numa situação nova, de encarar o tema da reforma da supervisão de uma forma mais aberta e mais construtiva”.
O atual Governo avança com uma proposta de reforma da supervisão financeira nacional. Oportunidade para reformular o sistema? Não, a ideia é manter tudo na mesma.
“Não creio que tenha sido isso que tenha acontecido. Pelo contrário. O que se decidiu foi construir sobre o velho e considerar acrescentar estruturas e custos a uma estrutura que necessitava de uma reformulação maior, que desse eficiência e maior poder de intervenção. Não há soluções mágicas, mas essa ambição falhou”, afirmou o representante dos fundos de investimento. “O sistema necessita de uma boa regulação e de um sistema eficiente. Faltou ambição por parte do governo”.
João Sousa, analista financeiro da Proteste Investe (gabinete financeiro da associação de defesa dos consumidores Deco), considera igualmente que a reforma “não resolve o verdadeiro problema” e é “claramente insuficiente”, apontando para os exemplos de quando o sistema financeiro não conseguiu impedir que milhares de consumidores fossem lesados e que os contribuintes acabassem por pagar o fardo da banca.
“Após estes fracassos, e depois de anos de estudo, o atual Governo avança com uma proposta de reforma da supervisão financeira nacional. Oportunidade para reformular o sistema? Não, a ideia é manter tudo na mesma“, afirma João Sousa. “Na prática, é manter o denominado funcionamento numa ótica de silos corporativos, embora reforçando os mecanismos de cooperação das três entidades. O problema é que este sistema não funcionou e apenas remendá-lo é claramente insuficiente“, acusa o representante dos consumidores.
Parlamento discute em maio. Com ou sem audições?
Envolto em críticas de todas as partes, o diploma está parado no Parlamento à espera de ser discutido em plenário, o que não acontecerá antes de maio já que os debates já estão marcados até ao final deste mês. Dada a complexidade da proposta de lei — de mais de 350 páginas — deverá baixar à Comissão de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa.
Até que a versão final seja votada, aprovada e homologada pelo Presidente da República ainda poderá demorar até porque o Governo pediu consultas ao BdP, à CMVM, à ASF e ao BCE, mas a autoridade europeia ainda não a entregou. O parecer do BCE não é vinculativo, mas deverá apontar preocupações (em linha com o que foi feito banco central nacional) que os deputados ainda terão de considerar.
A apenas seis meses das eleições legislativas, a demora poderá ser ainda maior se os deputados decidirem chamar à comissão intervenientes do mercado financeiro, sendo que uma das sugestões feitas tanto pelo BdP como pela CMVM é que deveria ter sido realizada uma consulta pública. Antes de a proposta ter sido entregue no Parlamento, a 19 de março, a última informação pública sobre o assunto foram as conclusões de um grupo de trabalho liderado por Carlos Tavares, em 2017, e que tem grandes diferentes face ao projeto atual.
Sequeira Ferreira, da Associação de Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado, considera “lamentável” que o tema não tenha sido apresentado às entidades supervisionadas até porque a proposta não é acompanhada de estudos sobre a necessidade da reforma, a adequação das opções ou a avaliação de impacto. Caso seja chamado a pronunciar-se, um dos pontos que pretende clarificar é o modelo de financiamento da Autoridade da Concorrência às “expensas” dos supervisionados, o que para as cotadas diz ser uma situação “flagrantemente injusta” e “inconstitucional”.
“Mas o Ministério das Finanças considerou dispensável o envolvimento das entidades supervisionadas, destinatárias principais das atividades da supervisão e dos impactos desta reforma, na prática tratando-as como meros súbditos que — imagina-se — apenas serão relevantes enquanto eventuais financiadores do novo modelo“, acrescentou.
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