Economistas pedem gabinete para monitorizar produção e distribuição e garantir acesso a bens essenciais

  • ECO
  • 22 Março 2020

Economistas propõe ao Governo a criação de um gabinete para monitorizar a crise com o objetivo de recolher e usar dados (big data) em tempo real para evitar cortes no fornecimento de bens essenciais.

  • À medida que várias economias fecham, governos e bancos centrais anunciam medidas radicais para evitar o colapso económico. As primeiras projeções são alarmantes: o desemprego mundial poderá sofrer um aumento de dezenas de milhões e em vários países a quebra percentual do produto andará na casa dos dois dígitos.

    Infelizmente, evitar o colapso económico e conter a pandemia são objetivos conflituantes. A decisão em Itália de fechar todas as atividades económicas não essenciais é disso um exemplo dramático. Os outros governos terão de estar atentos à situação italiana, aprender e prevenir.

    Com uma fração significativa de trabalhadores doentes ou de quarentena, as políticas de fique-em-casa e de fecho das fronteiras, a possibilidade de haver disrupções das cadeias de produção e distribuição é real. Com ruturas na oferta e possíveis picos de procura devido a pânicos, preços flexíveis deixam de exercer a sua função de coordenação da atividade produtiva, dado que as empresas poderão não conseguir responder às variações de preços, por exemplo, por falta de bens intermédios ou de força de trabalho.

    Para garantir o acesso aos bens essenciais durante a crise pandémica e manter a economia a funcionar, propomos a criação de um gabinete para monitorizar a crise composto por quadros quer do sector privado quer público, bem como de representantes do governo. O objetivo do gabinete é o de recolher e usar dados (big data) em tempo real para prever e, idealmente, evitar cortes no fornecimento de bens essenciais. Logo que se preveja uma rutura na oferta, o governo pode emitir um comunicado avisando a população de quando estará o produto disponível novamente. Nestas situações, as empresas privadas deverão cooperar para, em conjunto com os governos, garantir a fluidez do fornecimento de bens essenciais quer dentro quer através das fronteiras europeias.

    Perante choques da magnitude da pandemia do covid-19, regimes democráticos com economias descentralizadas têm de conseguir salvaguardar quer o bem-estar material quer a própria democracia. Um Gabinete de Monitorização poderá transmitir confiança e uma sensação de controlo à população durante a crise, evitando pânicos e agitação social. O grande desafio que enfrentamos exige também monitorização a nível europeu em coordenação com os governos nacionais.

 

Nas economias modernas e descentralizadas, a generalidade dos bens e serviços são produzidos por empresas, muitas vezes localizadas em vários países, que reagem a preços. Os fornecedores de um bem avaliam o estado do mercado e decidem quanto produzir. Também escolhem a combinação de capital, trabalho e bens intermédios a usar na produção. A Figura 1 descreve o fluxo de bens e trabalho (Parte A) e de informação (Parte B) nas cadeias de produção e distribuição.

Um impacto imediato do surto viral é alguns trabalhadores faltarem por estarem de baixa. O efeito na força de trabalho é ampliado por causa da quarentena que geralmente é imposta aos colegas de trabalho. Adicionalmente, uma das reações mais comuns ao surto tem sido a exigência de que as pessoas fiquem em casa. Tudo isto impõe uma separação entre trabalhadores; entre capital e trabalho; e também entre fornecedores e clientes, sejam eles de bens intermédios ou finais.

A implicação é que se quebram os fluxos descritos na Figura 1, que ligam as empresas (nacionais ou estrangeiras) entre si e com as famílias. Informação do Sistema Nacional de Saúde (SNS), da Segurança Social e do Instituto de Emprego serão essenciais para avaliar a disponibilidade da força de trabalho. A informação sobre o emprego e absentismo e os seus motivos deverá ser recolhida em tempo real, logo que alguém seja declarado inapto para trabalhar, seja devido a hospitalização ou a quarentenas. Fluxos de trabalhadores entre diferentes estados (empregados ao serviço, doentes, quarentena, desempregados) será mais fluído que em tempos de normalidade.

Monitorização e coordenação

Seja devido à diminuição da procura, à falta de trabalhadores, ou, simplesmente, devido à enorme incerteza que enfrentam, muitas empresas podem parar a produção ou até mesmo fechar. Quando isso acontece, os seus fornecedores verão a procura pelos seus produtos a cair e também poderão parar, dando origem a um círculo vicioso. Enquanto isso, os seus clientes ficam sem fornecedores e também poderão fechar. No final, as famílias poderão ficar privadas de bens essenciais.

Esta cadeia de produção é particularmente importante no contexto do paradigma de gestão just-in-time, que reduz stocks ao mínimo. Havendo falta de um fornecedor, o seu cliente não terá stocks suficientes para continuar a produção. Por outras palavras, se uma empresa parar de produzir, pouco tempo depois também os seus clientes e os clientes dos clientes pararão.

A globalização das atividades produtivas acrescentam uma camada de complexidade ao problema, dado que estão ligadas empresas de vários países. A integração económica é ainda mais premente dentro da União Europeia, onde os fluxos comercias entre países é particularmente intensa. Se o fluxo de bens intermédios entre países for quebrado, a produção parará no país de destino. Sendo a crise global, este mecanismo será crítico no desenrolar da crise. O fecho, por motivos sanitários, das fronteiras dentro da UE dificulta a circulação de bens e, portanto, a fluidez das cadeias de produção na Europa. Por isso, garantir fronteiras abertas à circulação de bens é fundamental. O fecho das fronteiras nacionais e a mudança da produção de bens e serviços para empresas nacionais irá resultar em mais perdas e desigualdades na Europa, especialmente nos pequenos países (que são mais dependentes de outras economias).

A natureza da crise também transformou bruscamente a estrutura da procura. A procura por cuidados de saúde e certos bens associados à saúde aumentou drasticamente, tal como a procura por comunicações, serviços de entrega ao domicílio e comida com prazos de validade dilatados.

Por outro lado, a procura por certos bem duráveis (como carros), combustível e muitos serviços (viagens e turismo) quase desapareceu. No lado da oferta, sectores específicos fecharam ou a sua atividade está muito limitada. Os mecanismos de mercado levarão a um aumento dos preços dos produtos com procura elevada e a uma redução dos outros até que se encontre um equilíbrio. As variações dos preços levarão os empresários a deslocar recursos da produção de bens com pouca procura para bens com procura elevada.

Em alguns casos, é fácil adaptar a estrutura produtiva a novos produtos e os trabalhadores a novas tarefas. Noutros pode ser complicado. Um fator crítico é o horizonte temporal da decisão de reorganizar e/ou investir: as empresas podem decidir não alterar a sua produção se considerarem que o atual aumento da procura não é suficientemente duradouro para o investimento ser lucrativo. Uma semana depois do surto, algumas empresas portuguesas já estavam a converter as suas fábricas à produção de produtos com procura elevada. É o caso das fábricas têxteis que estão agora a produzir equipamento de segurança pessoal (como máscaras). Uma fábrica de cerveja está a usar álcool para produzir desinfetante de mãos. Um grupo de empreendedores juntou diversas empresas, universidades e agências públicas para produzir ventiladores. Estas são excelentes notícias.

Infelizmente, na atual crise, os mecanismos de mercado, ou os ‘sentimentos morais’ dos empreendedores, poderão não ser suficientes por si só.

Primeiro, corremos o risco de não nos podermos dar ao luxo de esperar que o mercado ajuste a oferta de bens às necessidades críticas da sociedade. Segundo, o livre funcionamento do mercado pode obrigar a desobedecer às instruções de recolhimento em casa, contribuindo para a disseminação do vírus. Terceiro, dada a excepcionalidade das atuais circunstâncias, os preços podem ser um mecanismo de coordenação ineficaz.

Por exemplo, devido a uma carência de bens intermédios ou falta de trabalhadores, as empresas podem não conseguir aumentar a produção como resposta a um aumento brusco nos preços. Numa situação destas, os preços deixam de ser um mecanismo de coordenação para passarem a ser um mecanismo de racionamento que garante que apenas os mais ricos têm acesso aos bens essenciais. Os preços de equilíbrio podem ser tão elevados que gerem revoltas em partes da sociedade podendo pôr em causa a coesão social. Num caso extremo, até a democracia poderia estar em risco.

Nestas circunstâncias excepcionais, poderá ser possível conseguir um resultado melhor monitorizando e coordenando as decisões de vários agentes. Neste ponto, mudanças repentinas e agressivas nos preços têm de ser monitorizadas de perto pelas autoridades económicas existentes. Algum racionamento preventivo pode ser considerado para evitar que haja uma escassez artificial provocada por açambarcamentos (isto é especialmente verdade relativamente a medicamentos, mas também se pode aplicar a outros bens essenciais ou de elevada procura durante a pandemia).

Com este cenário em mente, propomos que a monotorização e coordenação central seja feita por um gabinete de coordenação (Parte B da Figura 1). Este Gabinete de Monitorização focar-se-ia em detetar problemas (como estrangulamentos ou níveis de produção insuficientes) nas cadeias de produção e distribuição de bens essenciais em tempo real.

O Gabinete de Monitorização deve ser visto como um catalisador de iniciativas do sector privado, com e sem fins lucrativos, que assegurem a sustentabilidade das cadeias de produção e distribuição e dos fluxos de comércio internacional necessárias à disponibilização de bens essenciais.

Quando se detetam problemas de produção e distribuição, a informação deve passar para entidades como agências públicas (por exemplo, centros de emprego regionais), municípios, associações empresariais, sindicatos e bancos para que os obstáculos à produção sejam removidos de forma coordenada. Se o Gabinete de Monitorização conseguir identificar os problemas nas cadeias de produção e distribuição, poderá informar a população da disponibilidade de bens de forma credível e tranquilizadora. Numa democracia com uma economia descentralizada, a monitorização e coordenação pode ser uma forma efetiva de evitar que uma carência pontual de bens degenere em açambarcamento generalizado, ou mesmo em pânico, que apenas agravaria a situação.

Para os atingir seus objetivos, o Gabinete de Monitorização terá provavelmente de dar três passos.

  1. O primeiro passo é identificar os bens e serviços que devem ser priorizados na atual crise. Obviamente, medicamentos, equipamentos médicos, equipamentos de proteção e kits de teste, além de alimentos e outras necessidades básicas, comunicações e serviços de utilidade pública, devem ter prioridade. A rede logística necessária para a distribuição dos bens também é indispensável.
  2. O segundo passo é determinar as cadeias de produção e distribuição que produzem os bens e serviços desejados. Informações detalhadas em tempo real ao nível da empresa e do indivíduo serão essenciais para estimar a procura por região e por tipo de bem, e para monitorizar as cadeias de produção. Essas informações podem vir de institutos nacionais de estatística, sistema de saúde, autoridades tributárias, segurança social, bancos, serviços de utilidade pública, empresas retalhistas e de comunicações, e de gestores de empresas. Além disso, cada agregado familiar pode tornar-se uma fonte de informações sobre a disponibilidade de bens usando o telemóvel. Os institutos nacionais de estatística e os reguladores setoriais agregariam os diferentes conjuntos de dados e partilhariam a informação produzida com os outros países da UE (com total respeito pelo RGPD – regulamentos de privacidade de dados). Esta tarefa colossal pode exigir o esforço conjunto de especialistas de entidades públicas, universidades e empresas privadas. Dados em tempo real e data analytics podem dar um contributo essencial para a análise da informação recolhida e para a definição de medidas adequadas.
  3. O terceiro passo é identificar os recursos que podem ser afetados às indústrias situadas nas cadeias de produção e distribuição de bens essenciais, sejam recursos desempregados ou recursos afetados a atividades não essenciais. Esse esforço de monitorização / coordenação dependerá da resposta a perguntas como as seguintes. Os trabalhadores em atividades não essenciais podem ser treinados, em pouco tempo, para trabalhar em atividades essenciais? Os trabalhadores podem deslocar-se para a região onde a produção essencial ocorre? Podem trabalhar sob as condições sanitárias necessárias? Podem ser isolados para garantir que não são infectados? As pessoas imunes ou de baixo risco (por exemplo, menores de 50 anos sem problemas de saúde) podem ser requisitadas para trabalhar em atividades essenciais? As técnicas de big data / data science serão úteis para estimar a procura e otimizar a afetação dos recursos? É possível definir um pacote de bens essenciais para duas semanas (de acordo, em particular, com as recomendações dietéticas) e distribuído aos que estão isolados? A impressão 3D será útil nestas circunstâncias?

Algumas atividades de monitorização e coordenação podem decorrer ao nível municipal. As entidades municipais podem ter um conhecimento mais detalhado da estrutura da atividade económica na sua região e pode ser inviável fazer rapidamente esse tipo de análise ao nível nacional. As atividades de monitorização e coordenação precisarão do envolvimento de municípios, associações empresariais, sindicatos, bancos, retalhistas, entre outros.

No entanto, as indústrias locais empregam bens vindos de outras regiões e as empresas nacionais usam bens vindos de outros países. Portanto, é necessário que a análise municipal seja coordenada ao nível nacional e que os planos nacionais sejam coordenados entre os países, essencialmente no nível da UE.

O Gabinete de Monitorização deve incluir especialistas em logística, investigação operacional, engenharia, big data / data science e análise input-output, tanto do setor público como do privado, de universidades, das forças armadas e de segurança, de empresas grossistas, retalhistas e transporte, das empresas que produzem bens e serviços identificados como essenciais (ou essenciais para a produção de produtos e serviços essenciais), de instituições financeiras, de empresas de consultoria de gestão, além de funcionários públicos e municipais, entidades de proteção civil e juristas.

Os principais retalhistas estão presentes em todo o território. Essas redes de retalho têm informações completas e em tempo real sobre os fornecedores (nacionais e internacionais) e sobre o risco de escassez de bens. No contexto da crise do Covid-19, a cooperação entre os principais retalhistas é crucial para garantir a distribuição atempada de bens essenciais à população. Por exemplo, numa certa localidade, se nenhum retalhista tiver trabalhadores suficientes para manter a sua loja aberta, talvez seja possível manter uma loja aberta através da passagem de todos os trabalhadores para apenas um desses retalhistas.

O crédito e os pagamentos fluem principalmente através de redes construídas por instituições financeiras. Tal como os retalhistas, as instituições financeiras têm representantes em todo o território e as suas redes de pagamentos são usadas em todos os pontos de venda principais. Portanto, as instituições financeiras também têm informações detalhadas sobre a atividade económica, embora do ponto de vista dos fluxos monetários. Além disso, possuem informações sobre a situação financeira dos seus clientes (particulares e empresas), principalmente daqueles que receberam crédito. É vital monitorizar a saúde financeira dos agentes económicos para evitar problemas de liquidez e uma crise financeira.

O Gabinete de Monitorização deve prestar contas às instituições democráticas. Os gabinetes de monitorização em toda a UE terão de trabalhar em estreita cooperação entre si, em rede, para garantir que os fluxos de comércio internacional não serão interrompidos.

O sucesso desta abordagem dependerá crucialmente da existência de comércio livre. Excepcionalmente, a mobilidade laboral na UE foi severamente restringida. Do ponto de vista económico, tal poderá não ser muito problemático desde que os bens e serviços continuem a ser transaccionados entre países. No entanto, em tempos como este, os governos podem sofrer pressões para impedir as exportações de bens essenciais.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, alertou que camiões com medicamentos e outras mercadorias estão bloqueados nas fronteiras. Portanto, a gestão da crise também deve ser feita ao nível europeu – uma coordenação estreita entre os governos nacionais é crucial. Não podemos ser apanhados numa situação de bloqueio em que os países impedem o fornecimento mútuo de bens e serviços estratégicos. A falta de apoio à Itália não pode repetir-se. Os grandes perigos que enfrentamos exigem um gabinete de monitorização e coordenação da UE interagindo com os homólogos nacionais. Se isto não for feito rapidamente, não só a UE corre riscos a médio prazo, mas também, a curto prazo, todos perderão.

Ana Paula Faria (Universidade do Minho)

Anabela Carneiro (Universidade do Porto)

Aurora Teixeira (Universidade do Porto)

Cátia Batista (Nova SBE)

Carla Sá (Universidade do Minho)

Emma Szhao (Bank of Portugal)

Fernando Alexandre (Universidade do Minho)

Fernando Anjos (Nova SBE)

Francisco Veiga (Universidade do Minho)

Hélder Vasconcelos (Universidade do Porto)

Joana Pais (ISEG, Universidade de Lisboa)

João Cerejeira (Universidade do Minho)

João Correia da Silva (Universidade do Porto)

José Tavares (Nova SBE)

Luís Aguiar-Conraria (Universidade do Minho)

Miguel Faria-e-Castro (Federal Reserve Bank of St. Louis)

Miguel Portela (Universidade do Minho)

Odd Straume (Universidade do Minho)

Óscar Afonso (Universidade do Porto)

Pedro Bação (Universidade de Coimbra)

Pedro Brinca (Nova SBE)

Pedro Pita Barros (Nova SBE)

Rita Sousa (Universidade do Minho)

Rosa Branca Esteves (Universidade do Minho)

Sandra Maximiniano (ISEG, Universidade de Lisboa)

Sara Cruz (Universidade do Minho)

Susana Peralta (Nova SBE)

Tiago Sequeira (Universidade de Coimbra)

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