Há empresas a dar já apoios ao teletrabalho. Mas como se calculam?

A lei laboral diz que, em teletrabalho, o empregador deve cobrir o acréscimo dos custos dos trabalhadores, mas não diz como. Empresas dividem-se entre subsídios fixos e apoios com base na faturação.

Em plena pandemia, a Liberty decidiu propor aos seus trabalhadores passarem a exercer as suas funções, de forma definitiva, “a partir de qualquer lugar”. Mais de 99% deles disseram “sim” e a seguradora já lhes prometeu um subsídio anual para cobrir as despesas implicadas nesta nova realidade. Como a Liberty, há vários outros empregadores em Portugal que estão pagar apoios aos teletrabalhadores, mesmo nos casos em que o trabalho à distância resulta não de opção dos próprios, mas da crise sanitária. A lei dita que devem fazê-lo, mas não sinaliza como devem calcular esse valor. Os advogados ouvidos pelo ECO dividem-se em várias soluções, do apuramento baseado nas despesas do empregador ao cálculo a partir do consumo médio dos portugueses e dos preços de mercado.

No mês em que foram identificados os primeiros casos de Covid-19 em Portugal, a adoção do teletrabalho tornou-se obrigatória. Corria, então, março de 2020 e para muitos esta foi a primeira experiência de trabalho à distância. No primeiro trimestre vivido inteiramente nessa nova realidade (de abril e junho de 2020), mais de um milhão de trabalhadores portugueses exerceram as suas funções em casa, indica o Instituto Nacional de Estatística. Destes, 91,2% disseram que a razão principal para terem trabalhado em casa foi a pandemia de coronavírus.

Nos meses que se seguiram, o universo de portugueses nessa situação diminuiu, à boleia do desconfinamento, mantendo-se, ainda assim, acima do que se verificava antes da crise sanitária.

Ao ECO, a ex-ministra do Trabalho e atual diretora do Centro das Atividades para os Trabalhadores da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Helena André, dizia que a pandemia estava, então, a proporcionar a “maior experiência da história da humanidade” de teletrabalho. E a par dessa explosão do trabalho remoto, surgiram várias dúvidas e motivos de debate, como o acréscimo das despesas implicado nesta modalidade.

Em fevereiro de 2021, o Governo quebrou o silêncio e explicou que entende, com base no Código do Trabalho, que cabe ao empregador cobrir as despesas relacionadas com a internet e com o telefone. Não disse, no entanto, como deve ser calculado o acréscimo em causa e a lei laboral também não o esclarece. Mais recentemente, a ministra do Trabalho atirou essa questão para a negociação coletiva, mais uma vez não resolvendo a dúvida que se coloca, há mais de um ano, às empresas que se têm visto forçadas a adotar o teletrabalho por causa da Covid-19.

É o caso da Liberty, que em plena pandemia, e à semelhança de vários outros empregadores no plano internacional, foi mais longe e propôs aos seus trabalhadores a adoção definitiva do trabalho “a partir de qualquer lugar”, com o objetivo de se tornar a primeira companhia de seguros 100% digital. Este mês, a empresa anunciou que mais de 99% dos empregadores disseram “sim” a essa proposta, estando-lhes agora prometido um subsídio anual fixo de 660 euros para cobrir as despesas implicadas na nova realidade.

“Este subsídio mensal pretende atenuar as despesas relacionadas com o trabalho digital que os nossos colaboradores possam ter. O montante teve em consideração o potencial aumento das despesas mensais dos colaboradores por estarem a trabalhar de casa”, explica ao ECO Beatriz Ortega, responsável pela área de Employee Experience na empresa em causa.

Sem orientações da parte do Executivo ou da legislação laboral, a Liberty decidiu fixar esse subsídio a partir das “principais contas domésticas, consumo e preços”, considerando também para esse fim a “poupança por parte do trabalhador neste modelo”, com viagens diárias e alimentação, por exemplo.

Aliás, quando há um ano os trabalhadores foram mandados, obrigatoriamente, para casa, esta empresa garantiu-lhes portáteis e outros dispositivos tecnológicos, além de 460 euros “para adaptarem a sua casa e espaço de trabalho para, à distância, poderem continuar a exercer as mesmas funções”, aos quais se somam 200 euros para “eventuais situações que [os trabalhadores] tivessem de resolver durante os meses de teletrabalho“.

Como a Liberty, também a Outsystems decidiu garantir aos seus trabalhadores um apoio adicional, desde o primeiro momento em que o teletrabalho se tornou obrigatório. Em conversa com o ECO, Alexandra Líbano Monteiro, diretora de recursos humanos da empresa em questão, explica que, num primeiro momento, foram assegurados dois grandes cheques: 500 euros para preparar as casas para a nova realidade — “achámos que tínhamos condições de investir na qualidade de vida das nossas pessoas”, diz — e um apoio variável para cobrir as despesas da internet.

Ao contrário da Liberty, a Outsystems está a preferir calcular esse subsídio com base na faturação, fixando como valor máximo de 50 euros por mês (600 euros por ano). A plataforma digital que os trabalhadores usam para apresentar as faturas para esse fim já não era novidade quando a pandemia bateu à porta, pelo que era este o caminho (o cálculo com base na faturação) que “casava melhor com os procedimentos internos da empresa”.

Segundo conta ao ECO Alexandra Líbano Monteiro, o teletrabalho veio para ficar na Outsystems, ainda que, no futuro, a empresa queira também fixar vindas ocasionais dos trabalhadores aos escritórios. E nesse futuro poderá estar também uma comparticipação de outras despesas, como energia e água, admite a responsável, dizendo que as políticas estão a ser reavaliadas e que há certos benefícios (como o subsídio de transporte) que poderão ser repensados.

Apoio fixo ou variável?

Tal como a Liberty e a Outsystems, há vários outros empregadores em Portugal que têm apoiado os seus teletrabalhadores, mesmo nos casos em que a adoção do trabalho remoto não seja opção da própria empresa, mas uma obrigação decorrente da crise sanitária. Continua, contudo, a faltar uma regra sobre como calcular essas comparticipações e ajudas.

“O Código do Trabalho não nos dá nenhuma pista concreta ou pragmática nesse sentido“, garante Pedro da Quitéria Faria, advogado da Antas da Cunha Ecija & Associados. “O Código do Trabalho não dá resposta a esta questão, pelo que caberá a cada empresa definir o valor do subsídio ou a forma de cálculo do mesmo“, confirma Gonçalo Delicado, advogado da Abreu Advogados.

Segundo conta ao ECO Pedro da Quitéria Faria, a maioria das empresas que acompanha decidiu-se pelo “pagamento de um subsídio fixo e transitório”, o que “reduz o ímpeto litigante por parte do trabalhador”. Não dando a legislação nenhuma pista sobre esse subsídio, explica que a fixação deverá ter em conta o apuramento médio dos acréscimos das despesas dos trabalhadores — que poderá partir da faturação do trabalhador –, mas também fatores como a zona geográfica e os preços aí praticados, os pacotes de internet e comunicação anteriores ao teletrabalho ou até os preços médios de mercado.

Já Gonçalo Delicado sublinha que, caso o empregador opte por um subsídio fixo, deve ter em conta “uma métrica que seja aplicável a todos os trabalhadores”. “Calcular este subsídio com base nos custos do escritório pode ser uma solução, mas é preciso levar em consideração que a realidade de um escritório pode não ser igual à realidade da casa do trabalhador”, diz, defendendo que “o bom senso deverá sempre presidir na tomada de decisões“.

O advogado da Abreu indica que, dos casos que lhe chegaram às mãos, parece-lhe que “as empresas estão a optar por um subsídio mensal, igual para todos os trabalhadores, para suportar o acréscimo de despesas para o trabalhador decorrentes da prestação da atividade em teletrabalho”.

Também Joana de Sá e Luís Gonçalves Lira, da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados, revelam que, das empresas que têm acompanhado, a opção predominante tem sido pela atribuição de um subsídio “em concreto e uniforme”, dependendo essa matéria da dimensão da empresa e do acordo que foi estabelecido com cada trabalhador.

Parece, portanto, que apesar da apresentação de faturas ser a solução talvez mais sensível à situação de cada trabalhador, as empresas têm optado pela fixação de um valor fixo. “Conhecendo a realidade das empresas, não é uma expectativa realista que consigam fazer a análise e o cálculo das faturas todos os meses“, explica Filipa Sá Silva, jurista da RSN Advogados, que salienta, contudo, que há várias empresas que nem sequer estão a fazer esses pagamentos.

Também para Rui Valente, da Garrigues, obrigar as empresas a pagar apoios com base na faturação seria um “trabalho de Hércules”, cujo resultado nunca seria “claro”, “dado que toda essa faturação reflete o acréscimo global de despesas eventualmente apurado pela presença em casa de todo o agregado familiar do trabalhador”. Isto além de levantar questões ao nível do tratamento dos dados pessoais. O advogado sublinha, por isso, que esta matéria merece regulamentação específica.

Do mesmo modo, para José Pedro Anacoreta, da PLMJ, o apuramento do acréscimo dos gastos por via das faturas é “muito difícil de quantificar e provar“. O advogado sugere, em alternativa, que se fixe um valor mensal máximo isento de imposto, à semelhança do que já hoje acontece com o subsídio de refeição. “A empresa pagaria aquilo que pudesse”, diz, em conversa com o ECO.

Enquanto não há esse mecanismo, José Pedro Anacoreta adianta que um subsídio para cobrir as despesas implicadas no teletrabalho deve ter por base os valores de mercado, como o consumo médio de energia por pessoa e o custo de uma ligação à internet. “Acho que conseguimos chegar a um valor razoável”.

Por outro lado, Sílvia S. Cristóvão e Maria Carolina Guerreiro, da Pares Advogados, defendem que o empregador deve partir, em alternativa, dos custos apresentados pela generalidade dos trabalhadores, além dos preços de mercado. Ainda assim, avisam: “Do nosso conhecimento as empresas têm optado por fornecer os meios de comunicação e pago diretamente as despesas às operadoras, sendo que existe um elevado leque de empresas que não se encontra a custear as despesas dos trabalhadores“.

PCP quer subsídio fixo de 11 euros por dia para teletrabalhadores

Enquanto o Governo atira a discussão para a negociação coletiva, no Parlamento, Bloco de Esquerda e PCP já apresentaram propostas sobre as despesas implicadas no teletrabalho.

No caso dos bloquistas, a proposta entregue na Assembleia da República esclarece que os empregadores devem mesmo pagar as despesas inerentes ao trabalho à distância (há quem entende que a lei laboral não é clara quanto a isso), nomeadamente telecomunicações, água, energia e “outros custos conexos com o exercício das funções”. O BE não define, contudo, como deve ser feito ou calculado esse pagamento.

Aos jornalistas, o deputado José Soeiro sublinhou que essa abertura quanto ao cálculo serve para permitir a sua adaptação às diversas situações e setores. O bloquista sugeriu que esse apuramento poderá partir das faturas do trabalhador ou poderá ser fixado um subsídio para o efeito, sendo ambas soluções “válidas”.

O PCP é mais assertivo e quer que o Código do Trabalho passe a ditar que, em teletrabalho, os trabalhadores têm direito a um subsídio equivalente a 2,5% do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), ou seja, cerca de 11 euros por dia. Isto para cobrir os “gastos acrescidos” com comunicações, eletricidade e água, entre outros, implicados no trabalho à distância.

Também o PS, PSD e PAN deverão apresentar propostas para regular o teletrabalho, mas ainda não é certo quando avançarão. No Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, o Governo entende que há necessidade de melhorar essa regulação, mas também ainda não foi indicado quando tal será feito.

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