Castro Almeida critica uso sistemático de fundos europeus para pagar despesa corrente do Estado
"Por similitude com o Portugal 2020, que foi aprovado em Bruxelas em junho de 2014, o PT2030 deveria ter ficado aprovado em junho de 2021". Provavelmente só no verão, vaticina Castro Almeida.
Os fundos europeus são sistematicamente utilizados para pagar despesas correntes do Estado e por isso a verba reservada para apoiar as empresas “é demasiado curta”. A prática de desorçamentação é a crítica transversal que o antigo secretário de Estado do Desenvolvimento Regional faz aos vários pacotes de fundos europeus que Portugal tem ao seu dispor: o Portugal 2020, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e o Portugal 2030.
“Há uma tendência eterna dos fundos estruturais servirem, sobretudo, para aliviar as contas públicas, para substituir despesa pública. É um erro”, lamenta Manuel Castro Almeida. “Diz-se que, apesar dos fundos europeus, Portugal não avança porque muitas vezes não são bem aplicados. Não quer dizer que o dinheiro seja desperdiçado, mas quando vem substituir dinheiro público não vem acrescentar”, acrescenta em declarações ao ECO.
O antigo secretário de Estado de Pedro Passos Coelho exemplifica casos concretos em que, na sua opinião, os fundos são chamados a pagar despesas indevidas. “Por exemplo, um curso profissional é mais caro pelos gastos de material. O que faz sentido é que os fundos europeus paguem este acréscimo. Em vez disso, o que tem vindo a acontecer é que os fundos europeus pagam a totalidade do curso. Isto é substituir o Orçamento do Estado por fundos europeus”, explica. “Outro exemplo é os fundos europeus pagarem as bolsas de estudo do ensino superior, uma despesa corrente que já existia antes de existirem fundos europeus”, acrescenta.
Há uma tendência eterna dos fundos estruturais servirem, sobretudo para aliviar as contas públicas, para substituir despesa pública. É um erro.
“Desorçamentação é mau”, continua, mas isso “não quer dizer que a Administração Pública não pudesse aproveitar os fundos europeus”.
O responsável reconhece que a prática de desorçamentação não é nova, nem exclusiva do atual Governo. “Na programação do Portugal 2020 aconteceu muito isto”, reconhece Castro Almeida. Mas justifica com o facto de o “Governo estar em grande necessidade”. “Era tal a carência de recursos públicos, a restrição de Bruxelas ao endividamento e ao défice que o Governo tinha de lançar mão a todo o dinheiro que havia incluído fundos europeus”, explicou. “Mas já não estamos nessa situação de sufoco financeiro, não temos cá a troika como tivemos em 2013 e 2014. Era preciso ir, ainda que lentamente, desagravando os fundos europeus de pagar despesas que são despesas correntes do Estado”, defende.
O antigo secretário de Estado do Desenvolvimento Regional considera que “o PRR sofre do mesmo problema do PT2030: está mais talhado para compor as contas públicas do que para relançar a economia”.
“As empresas terão muito pouco dinheiro no PRR, a maior parte é para a máquina do Estado, embora para a qualificar”, sublinha.
Mas Castro Almeida faz questão de deixar um elogio às agendas mobilizadoras. “Na pequena parcela que é dada às empresas valorizo muito o dinheiro afeto às agendas mobilizadoras, uma área onde o PRR inova na boa direção, porque vai finalmente ajudar a resolver um problema grave da nossa economia que é a falta de ligação entre as universidades, os laboratórios de Estado, as instituições de ensino superior mais diversas, o sistema de investigação do país e as empresas”, explica o antigo responsável. “Temos excelente investigação em Portugal, mas é preciso que esta se traduza em faturas. E é isso que as agendas mobilizadoras vão ajudar a resolver porque obrigam a que se juntem universidades, grandes empresas e pequenas para passar da investigação feita nos centros de investigação para as fábricas”, acrescenta, lamentando, contudo, que seja “tão pouca a dotação disponível”.
No pré-concurso feito as intenções de investimento (9,7 mil milhões de euros) passam largamente a dotação inicialmente prevista para este programa e, por isso, Castro Almeida entende que os 930 milhões de euros previstos deveriam ser reforçados. O Executivo admite a possibilidade de acionar uma verba adicional de 2,3 mil milhões de euros em empréstimos que ficou pré-reservada em Bruxelas caso os projetos empresariais assim o justificassem ou se fosse necessário para a capitalização das empresas. Mas o Executivo chutou uma decisão a esse nível para o segundo semestre de 2022.
Castro Almeida diz ser “muito crítico” por o Governo ter optado por não usar a totalidade da dotação que estava disponível no PRR a título de empréstimo, “mesmo sabendo o elevado nível de endividamento do país”. “Se esses empréstimos fossem contraídos para capitalizar empresas, que o Estado pudesse ter obrigações participantes ou outra forma qualquer de participar na capitalização das empresas, não era dinheiro deitado à rua. O Estado iria contrair um passivo, mas também ficava com um ativo que se iria neutralizar a dívida”, afirma o antigo presidente da Câmara de São João da Madeira. “Foi uma oportunidade perdida não usar uma parte maior da dotação disponível de empréstimos para ajudar as empresas na sua capitalização”, conclui.
Na pequena parcela que é dada às empresas valorizo muito o dinheiro afeto às agendas mobilizadoras, uma área onde o PRR inova na boa direção, porque vai finalmente ajudar a resolver um problema grave da nossa economia.
E se o tecido empresarial nacional se tem mostrado avesso ao longo dos anos em aderir a instrumentos de capitalização, Castro Almeida defende que é uma questão de “as empresas ganharem confiança no Estado, para saberem que este mete lá dinheiro e têm a garantia de que depois sairá quando estiver cumprida a sua missão e a empresa tiver melhores resultados”. O antigo governante recorda que o Estado participa no capital da empresa, mas não na sua gestão corrente.
“As empresas não estão habituadas a isto”, reconhece, mas revela que dos contactos que tem tido com muitos empresários “há predisposição para aceitar entradas de capital do Estado”. “Tendo em conta que não há esta prática vamos todos ter de aprender”, admite. “É preciso que corra bem”, frisa, porque a falta de capitais próprios das empresas é “um problema sério” e que vai exigir “profissionalismo” de todos.
Há diversas soluções sobre a mesa e cada empresa terá de ver qual a solução que melhor se lhe aplica. O Banco de Fomento desenhou programas para apenas mil milhões de euros, ou seja, falta definir a utilização de 300 milhões num total de dotação de 1,3 mil milhões.
O objetivo é avançar com um programa de recapitalização estratégica que visa repor os capitais próprios de empresas de interesse estratégico nacional, com foco em médias empresas, small mid caps e mid caps, para níveis pré-pandemia.
Está previsto também um programa de capitalização mediante coinvestimento com investidores privados, com uma dotação de 300 milhões de euros a um. Ou um programa de recapitalização para apoio à redução de endividamento em linhas de crédito com garantia pública, através de empréstimos participativos ou outros instrumentos de quase-capital, que tem 200 milhões. Finalmente, está previsto um outro programa de capitalização de 200 milhões de euros que será feito através de parcerias estabelecidas com o Fundo Europeu de Investimento.
Sobre o Banco de Fomento, responsável pela operacionalização destes instrumentos de capitalização, Castro Almeida deseja que “tenha sucesso” porque é útil para apoiar projetos de mais longo prazo e que a banca tradicional não estaria tão vocacionada para apoiar “por terem uma evidência de sucesso menor”. Mas admite que “há o risco de o Estado gerir um banco com critérios políticos”. “É um péssimo princípio”, alerta. “Espero que a autonomia da administração do Banco Português de Fomento fique garantida. Qualquer Governo tem de a garantir, até para responsabilizar as pessoas que lá estão”, remata.
Três ingredientes para fazer crescer a economia
Para fazer crescer a economia Castro Almeida tem uma receita de três ingredientes: apoio ao investimento produtivo, apoio às fusões e aquisições e aos instrumentos de capitalização. “Aquilo que se pode resolver com dinheiro são estas três principais áreas”. Mas muita coisa não tem tradução financeira como “resolver as demoras nos tribunais administrativos e fiscais que são vergonhosos” ou “ser mais criterioso na despesa pública”. “O empenho de um Governo numa política não deve ser medido pelos milhões que lá mete”, recomenda.
Usando o exemplo da Saúde e os 700 milhões de euros que o Executivo prometeu injetar no Orçamento do Estado, Castro Almeida sublinha que mais do que o montante é fundamental saber quais os “objetivos e metas que se pretende atingir” com essas verbas.
O ex-número dois de Rui Rio surpreende-se com o facto de, nestas eleições, os partidos estarem tão focados no crescimento económico. “É curioso ver numas eleições legislativas tanto debate sobre a necessidade de pôr a economia a crescer e como fazê-lo. A forma mais óbvia é descer os impostos sobre as empresas – e quase todos os partidos parecem estar de acordo sobre isso –, porque se a empresa não pagar impostos é suposto que esse dinheiro permita fazer novos investimentos, para criar mais emprego e melhores salários”, explica.
“Isto não quer dizer que se esteja a proteger os empresários, porque no momento em que transformam o lucro em dividendos têm de pagar IRS. Mas não há melhor forma de defender o interesse público do que a empresa reinvestir o seu lucro”, defende.
Mas se os programas eleitorais do PS e PSD são muito distintos em termos económicos, nomeadamente a nível fiscal, em termos de fundos europeus as diferenças esbatem-se. “O PSD enfatiza mais a necessidade apoiar as empresas com fundos europeus, nomeadamente programas de fusão e concentração de empresas e linhas de capitalização. Já o PS, apesar de ter um capítulo dedicado ao tema, de onde não se retira muito, tem uma ideia interessante e útil: criar uma espécie de certidão permanente das empresas nas candidaturas aos fundos”.
Ou seja, uma empresa que se candidata mais do que uma vez a apoios europeus não tem de estar sempre a apresentar-se e enviar documentos justificativos. “Uma outra ideia fundamental é reforçar as estruturas que trabalham com os fundos europeus, porque não se fazem omeletes sem ovos”, lembra, frisando a premência de reforçar as equipas do IAPMEI.
“Seria uma imprudência pedir uma revisão do PRR”
Apesar de todas as críticas que possam ser dirigidas ao Plano de Recuperação e Resiliência, Castro Almeida entende que, “seria uma imprudência pedir uma reabertura e revisão do PRR”. O PRR tem de ser totalmente comprometido até 31 de dezembro de 2023, menos de dois anos, por isso, “tendo em conta a tradição em Portugal de levar as execuções até ao limite, é preciso executar o aprovado”. Neste caso o prazo limite é 2026.
“Não aconselharia uma revisão no PRR, mas se houver atrasos em algumas áreas, como por exemplo na construção da habitação, que consome uma fatia importante do PRR, todo esse dinheiro deveria ser encaminhado para as agendas mobilizadoras”, sugere o antigo responsável.
O exemplo da habitação não é dado ao acaso tendo em conta a falta de mão-de-obra no setor, a falta de materiais e o aumento dos preços das matérias-primas. “Ou há um acompanhamento, a par e passo, dos responsáveis do ministério sobre estes investimentos ou a tendência será para a derrapagem dos custos e dos prazos”, vaticina.
No capítulo dos atrasos, o secretário de Estado que esteve envolvido na negociação do Portugal 2020 com Bruxelas denuncia que o quadro comunitário que se segue não começa bem. “Ainda não deram entrada em Bruxelas as propostas nacionais do PT2030″ e o processo de dissolução do Parlamento fez com que o Governo decidisse que deverá ser o próximo Governo a apresentar a proposta. Mas em vez de considerar esta opção um gesto democrático, Castro Almeida diz que “o Governo não tinha alternativa, porque não a tem pronta”.
“Por similitude com o Portugal 2020, que foi aprovado em Bruxelas em junho de 2014, o PT2030 deveria ter ficado aprovado em junho de 2021. Provavelmente só será aprovado no verão, o que quer dizer que vai ser aprovado um ano depois face ao PT2020. Não é um bom princípio para o PT2030”, lamenta.
Por similitude com o Portugal 2020, que foi aprovado em Bruxelas em junho de 2014, o PT2030 deveria ter ficado aprovado em junho de 2021. Não é um bom princípio para o PT2030.
Já quanto ao Portugal 2020, Castro Almeida insiste que está “efetivamente atrasado”, apesar de o Executivo se gabar de ter terminado 2021 com uma taxa de execução de 71%, dois pontos percentuais acima daquela que foi a fasquia estabelecida pelo próprio Governo. “Se tem obrigação de estar num determinado local às 8h00, mas mete na cabeça que pode chegar às 8h30, se chegar às 8h15, não chegou um quarto de hora mais cedo. Chegou 15 minutos mais tarde. É isso que o Governo está a fazer ao querer gabar-se que superou em dois pontos aquela que era a sua perspetiva. Mas essa era chegar muito atrasado!”
“Estive a fazer contas e concordo totalmente com a avaliação feita pelo Tribunal de Contas. Se o programa continuar com o mesmo ritmo de execução dos últimos três anos, não vai ser cumprido. Para o ser tem de aumentar em 50% a rapidez de execução face aos últimos cinco anos. Têm de ser tomadas medidas vigorosas para poder ser cumprido”, aconselha.
Mas, dito isto, o antigo secretário de Estado admite que “nenhum Governo vai deixar que o programa não seja cumprido, caso contrário no final do ano teríamos de devolver verbas a Bruxelas”. “O problema é que quando se deixa tudo muito para o fim, nos últimos meses vamos gastar de qualquer maneira”, lamenta.
“O Governo está muito descansado quando tem um problema sério às costas que precisa de resolver com muito sentido de responsabilidade e com vontade de corrigir erros, porque se persistir na mesma metodologia não vamos ter o programa cumprido”, conclui.
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