Martifer perde licença europeia para desmantelar navios em Aveiro
Navalria foi excluída da lista europeia dos estaleiros de reciclagem de navios. Empresa detida pela Martifer culpa Estado pela transposição do regulamento e pela perda de encomendas internacionais.
A Comissão Europeia retirou a Navalria – Docas, Construções e Reparações Navais da lista de estaleiros autorizados a fazer a reciclagem de navios, por não ter o alvará para esta atividade que passou a ser exigido pelas autoridades portuguesas. Numa decisão de execução assinada pela própria presidente, Ursula Von der Leyen, consultada pelo ECO, o Executivo comunitário explicita que a licença caducou no final de 2021, tendo recebido “informações de Portugal de que o processo de renovação da autorização ainda está em curso [e], por conseguinte, o estaleiro não cumpre o requisito” para continuar a fazer operações de desmantelamento.
O regulamento da União Europeia (UE) relativo à reciclagem de navios exige, desde 31 de dezembro de 2018, que “todos os grandes navios de mar que arvorem pavilhão de um Estado-membro sejam desmantelados num estaleiro” aprovado e incluído nesta listagem, que conta agora com 35 instalações no espaço comunitário – e outras 11 em países terceiros, das quais oito na Turquia, duas no Reino Unido e uma nos EUA. Com a exclusão da empresa comprada em janeiro de 2008 pelo grupo Martifer, que ocupa uma área concessionada pelo Porto de Aveiro, deixa de haver estaleiros portugueses autorizados a operar nesta área.
Com a exclusão da empresa comprada em 2008 pela Martifer, que ocupa uma área concessionada pelo Porto de Aveiro, deixa de haver estaleiros portugueses autorizados a operar no abate de navios.
Foi em 2009 que a Navalria se associou a um consórcio espanhol para o projeto europeu “Life + Recyship”, tendo uns anos depois pedido o licenciamento como operador de gestão de resíduos que lhe permitiu exercer a atividade de reciclagem de navios. O estaleiro aveirense estava até agora habilitado a reciclar embarcações até um máximo de 104 metros de comprimento, 6,5 metros de largura e 6,5 metros de calado. A descontaminação e o desmantelamento podiam ser realizados no plano horizontal ou inclinado, dependendo das dimensões do navio (com uma capacidade nominal de 700 toneladas e de 900 toneladas, respetivamente).
No entanto, no processo de transposição da diretiva comunitária, em que cada país tem de adequar a legislação nacional às regras europeias em vigor a partir de 2019, “o Estado português fê-lo de uma forma em que não pensou [na especificidade de] um navio”, resume o administrador da West Sea, empresa do grupo Martifer que tem a subconcessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. “Pensou, simplesmente, que já tinha legislação criada para fazer o abate de veículos em fim de vida, nomeadamente automóveis e camiões, e achou que um navio se desmantela exatamente da mesma forma”, desabafa Vítor Figueiredo.
Estamos a perder não só porque saímos da lista europeia – esse é já um dado adquirido –, mas também porque teremos dois a três anos pela frente em que não poderemos fazer reciclagem de navios.
A tese do grupo sediado em Oliveira de Frades, que acabou por ser rejeitada, é a de que um estaleiro devia ser encarado simplesmente como um elemento de passagem, pois já há empresas de reciclagem que cumprem os requisitos legais para realizar essas operações. O gestor argumenta que o estaleiro é o local por onde o navio pode chegar e onde se inicia o processo de desmantelamento, mas “o encaminhamento de todos os resíduos faz-se depois através dessas empresas que estão no mercado”. “Esta foi a posição que defendemos, mas o que prevê a legislação nacional é que, a partir do momento em que o navio atraca nas nossas instalações, já temos de ter o alvará de organização de reciclagem”, completa.
“Estamos agora a começar o processo desde o início. Temos de fazer um estudo de impacto ambiental e cumprir uma série de novos requisitos para as autoridades portuguesas averiguarem se estamos capacitados para cumprir com o que eles acham. Daqui a dois anos poderemos estar novamente na lista europeia de desmantelamento naval. Estamos a perder não só porque saímos da lista europeia – esse é já um dado adquirido –, mas também porque teremos dois a três anos pela frente em que não poderemos fazer reciclagem de navios. É Portugal que perde e já está a perder”, reclama Vítor Figueiredo.
O porta-voz da empresa naval frisou, numa conferência organizada pela Transportes & Negócios, no Porto, que a inclusão nessa lista europeia de estaleiros aptos a desmantelar embarcações trouxe várias encomendas internacionais, a que agora deixa de poder aceder por não ter sido renovada a licença. Admite “muita frustração” por não deixar de ter a “oportunidade de estar na linha da frente” neste segmento de atividade, considerando que, “acima de tudo, quem fica a perder mais é o país”. Que usa “todos os chavões sobre a economia do mar” e, ao mesmo tempo, tem “as entidades [públicas] ainda amarradas a estas regulamentações e implacáveis na leitura que fazem” delas.
Estaleiro aveirense queria abater navios maiores
Fundada em 1978 e instalada junto à ria aveirense, a Navalria está centrada na reparação de embarcações de pequena e média dimensão, embora também tenha atividade na área da construção naval e de equipamentos offshore. Remodelada na altura da entrada do novo acionista (100%) – tal como a West Sea, integra a sub-holding Martifer Metallic Constructions, detida pelo grupo com origem na metalomecânica, fundado em 1990 pelos irmãos Carlos e Jorge Martins –, dispõe de doca seca, doca flutuante, carreira, elevador de navios e oficinas, entre outros equipamentos que lhe permitem construir e reparar vários navios em simultâneo.
O negócio da indústria naval, que assegura 380 empregos em Viana do Castelo e em Aveiro, gerou lucros de 9,1 milhões de euros em 2021 (72% do resultado consolidado da Martifer) e uma faturação de 91,7 milhões de euros em 2021 (40% do total do grupo). Bem abaixo dos 118,9 milhões registados no ano anterior, com a pandemia a travar a produção, em especial nos navios cruzeiros (turismo). Os rendimentos operacionais neste segmento industrial tiveram uma nova quebra homóloga de 38%, para 32,3 milhões de euros no final primeiro semestre deste ano, altura em que a carteira de encomendas totalizava 243 milhões.
No outono do ano passado, poucos meses antes de ser confirmada esta decisão das autoridades europeias relativa à exclusão da lista de estaleiros para desmantelar navios em fim de vida, e numa altura em que procurava renovar o alvará, a Navalria ainda aproveitou para pedir uma autorização para que a sua unidade de reciclagem pudesse receber navios de dimensões maiores, passando desta forma a envolver todo o estaleiro na atividade. E chegou mesmo a entregar a Proposta de Definição do Âmbito (PDA) do projeto à autoridade ambiental.
Por outro lado, a legislação que materializou a aplicação do regulamento europeu veio apertar o cerco aos armadores internacionais que pretendem desmantelar os seus navios no espaço comunitário, limitando-os a esta lista de estaleiros autorizados. O decreto-lei, publicado em setembro de 2020 em Diário da República, considera uma contraordenação ambiental “muito grave” o não envio dos navios abatidos para reciclagem ou a inexistência a bordo de um inventário de matérias perigosas, e prevê multas avultadas para os armadores, até a um máximo de 2,5 milhões de euros para pessoas coletivas. A inspeção cabe à Direção-Geral dos Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), às Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) e à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
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