Revisão Constitucional. PS esquece economia, PSD regressa ao limite para dívida pública
Especialistas consideram que proposta do PSD é mais abrangente em questões económicas como o limite ao endividamento público e um regime com regras mais apertadas para supervisores.
Os projetos de revisão constitucional apresentados, na passada sexta-feira, pelo PS e PSD convergem em muito poucas matérias. Facto que não é de pouca importância, já que as alterações à Constituição só podem ser aprovadas por maioria de dois terços dos deputados, o que, na atual composição parlamentar, implica o voto favorável de PS e PSD.
Na sexta-feira, terminou o prazo para apresentação de projetos de revisão constitucional, desencadeado após a apresentação de um texto pelo Chega, e todos os grupos parlamentares e dois deputados únicos entregaram iniciativas, num total de oito diplomas, que serão agora discutidos e votados numa comissão eventual a ser constituída nos próximos meses.
Em comum, ambos os projetos tentam responder – com formulações relativamente semelhantes – às duas questões que o Presidente da República apontou como essenciais no processo de revisão da lei fundamental do Estado: como permitir o acesso aos metadados para efeitos de investigação judicial, depois de o Tribunal Constitucional ter ‘chumbado’ a lei em vigor, e como decretar, com segurança jurídica, confinamentos em caso de uma pandemia, ainda que sem estado de emergência.
Mas e no que toca às áreas económica e financeira? O ECO comparou os projetos dos dois maiores partidos e concluiu que o PS é quase omisso nesta matéria, dedicando apenas dois parágrafos ao capítulo de “direitos económicos” em que a tónica passa pela igualdade e equidade em questões como fornecimento de água, saneamento, energia, transportes coletivos urbanos, entre outros, e sublinhando a importância da responsabilidade social dos agentes económicos. O projeto de revisão constitucional do PS mantém totalmente intacta a parte 2 da Constituição referente à “Organização Económica”.
Já o PSD alarga as suas intenções e vai repescar uma ideia do tempo de Pedro Passos Coelho — que chegou a apresentar um projeto de revisão constitucional. Ou seja: a regra na Constituição que imponha um limite ao endividamento público. Os sociais democratas querem ainda atribuir um regime com regras mais apertadas à nomeação dos líderes das entidades supervisoras — como a CMVM, Autoridade da Concorrência ou ERSE — que passam a ser escolhidos pelo Presidente da República, sob proposta do Governo mas sujeita a audição parlamentar. E propõem um reforço das competências do Presidente da República na nomeação do Procurador Geral da República, Presidente do Tribunal de Contas, Governador do Banco de Portugal, sujeito a audição parlamentar e com possibilidade de rejeição por voto expresso de 2/3 dos Deputados, eliminando-se a proposta do Governo. Lendo a proposta percebe-se que é intenção dos sociais democratas tornar mais transparentes as regras orçamentais, melhorando o processo de feitura e execução do Orçamento do Estado, tornar as regras mais apertadas para a escolha dos reguladores e uma fiscalidade com tónica no princípio da moderação, previsibilidade e estabilidade.
A regra relativa ao limite da dívida pública foi defendida, à data do Governo de coligação, por Pedro Passos Coelho e por Paulo Portas, mas acabou por nunca passar de uma intenção, com os socialistas a vetarem essa possibilidade. Em 2015, António Costa, na altura candidato a primeiro-ministro, defendeu que não seria a Constituição a impedir ou garantir a subida e a descida da dívida. “É a boa ou má gestão”, o que significa que o PSD dificilmente conseguirá levar esta proposta a bom porto.
O que diz a proposta do Partido Socialista?
- No que respeita aos direitos económicos em sentido estrito, destaca-se em primeiro lugar “a expressa previsão constitucional — atualmente prevista no artigo 60.º — ao acesso aos serviços de interesse económico geral em condições de universalidade, igualdade e equidade”;
- Determina-se que “são serviços de interesse económico geral os de fornecimento de água, de saneamento, de energia, de transportes coletivos urbanos, de telecomunicações, de correios e outros previstos na lei”;
- Admite-se ainda que “quando se trate de atividades abertas à atividade privada, a lei estabelece as necessárias obrigações de serviço público às empresas encarregadas da sua prestação”;
- Por outro lado, “e procurando explicitar de forma mais evidente a dimensão social que a iniciativa e a propriedade privada desempenham num modelo de economia como a nossa, propõe-se que o artigo 61.º explicite como elemento do exercício da iniciativa privada uma preocupação com a responsabilidade social dos agentes económicos, e que o artigo 62.º contemple expressamente a existência de uma função social da propriedade;
O que diz a proposta do PSD?
- Com base na moderação e sustentabilidade fiscal, os sociais democratas gostariam de ver no texto constitucional – o “reforço do equilíbrio, moderação e eficiência do sistema fiscal”
- E como? Com a “obrigação de o sistema fiscal assegurar o equilíbrio entre a moderação no esforço fiscal, a solidariedade, os benefícios proporcionados pelo Estado e a competitividade internacional do sistema;
- Com “princípios da estabilidade e previsibilidade fiscal, simplificação, eficiência e minimização das despesas de cobrança, e o combate à fraude e evasão fiscal”;
- O reforço da sustentabilidade, qualidade e transparência orçamental impondo uma necessidade de “a lei de enquadramento orçamental estabelecer um limite plurianual ao endividamento público inscrito na lei do Orçamento, e um regime de programação plurianual da despesa pública”;
- A obrigatoriedade do Orçamento ser acompanhado de relatório dos desvios ocorridos e estimados até final do ano;
- A sujeição da elaboração do Orçamento “aos princípios da estabilidade e sustentabilidade orçamental, e equidade intergeracional, solidariedade recíproca entre setores, da subsidiariedade e transparência orçamental”;
- A “obrigação de aprovação da Conta Geral do Estado até ao fim do terceiro trimestre do ano económico seguinte, antes da apresentação do Orçamento”;
- Previsão da “intervenção de entidade independente no processo orçamental, incluindo na preparação ou validação do cenário macroeconómico, e na avaliação da proposta de orçamento e do cumprimento das vinculações a que está sujeita, e seu direito de acesso à informação orçamental completa”;
- Reforço das competências do Presidente da República na nomeação do Procurador Geral da República, Presidente do Tribunal de Contas, Governador do Banco de Portugal, sujeito a audição parlamentar e com possibilidade de rejeição por voto expresso de 2/3 dos Deputados (eliminando-se a proposta do Governo);
- Nomeação dos presidentes das demais entidades reguladoras, sob proposta do Governo e sujeita a audição parlamentar;
O que dizem os especialistas?
“Acima de tudo, parecem ser propostas com vários pontos em comum e alguns onde diferem de forma absoluta”, segundo defendeu o advogado Simão Mendes de Sousa, da Pinto Ribeiro Advogados, em declarações ao ECO. “Por um lado, a preocupação com a responsabilidade social dos agentes económicos faz-se sentir, sobretudo, em matérias de habitação, segundo as quais por um lado se pretende chamar os privados a participar no esforço de melhoria da habitação e, por outro, no início da avaliação da socialização dos custos de habitação”, ainda que, diz o mesmo advogado, “a proposta do PSD acabe por ser mais voltada para o estímulo da entrada de privados na prestação de serviços públicos e a proposta do PS acaba por centrar mais a sua ação no Estado”.
Simão Mendes de Sousa considera que o texto do PS o texto “é interessante, nomeadamente com a inclusão de alguns direitos que do ponto de vista programático podem vir a ser muito úteis para futuro, do ponto de vista económico, não parece haver nesta proposta uma reforma efetiva, nem que os resultados daqui decorrentes tenham grande impacto no tecido económico“. Já o do PSD, o advogado considera que “ainda que não constem a maioria das alterações específicas que podem resultar deste projeto de revisão constitucional, parece ser mais amplo do que o anterior, uma vez que foca mais matérias e parece mais abrangente na proteção da iniciativa económica privada, mas também na compatibilização entre público e privado na prestação de serviços públicos. A inserção da iniciativa económica privada como direito, liberdade e garantia, parece ser de difícil execução do ponto de vista de sistemática constitucional.”.
Jane Kirkby, advogada consultora da Antas da Cunha ECIJA, defende que “ao contrário do projeto do PS, o PSD introduz diversas alterações, tanto nos direitos e deveres económicos, como na organização económica, em particular o trabalho”.
A advogada sublinha a parte da proposta em que é reforçada a incumbência do Estado “na especial proteção ao trabalho das mulheres durante a gravidez e após o parto e durante o tempo necessário à sua efetiva recuperação, e ainda a ambos os progenitores, em especial garantindo que não são prejudicados nos seus direitos em matéria de remuneração, descanso e efetivo gozo das suas licenças parentais, de aleitamento de assistência à família”. Concluindo, a advogada considera ainda importante a parte do documento que sublinha “a moderação fiscal e sustentabilidade orçamental, promovendo o reforço do equilíbrio, moderação e eficiência do sistema fiscal e da sustentabilidade, qualidade e transparência orçamental”.
Jaime Carvalho Esteves, da J+Legal, defende, de forma crítica, que “ainda que a Constituição mantenha ainda hoje vários elementos que denotam a sua origem revolucionária, com forte pendor ideológico, a verdade é que, após as sucessivas revisões constitucionais e a integração na ordem económica da União Europeia, não é a Constituição económica que nos impede de sermos um país economicamente competitivo na cena internacional. As nossas prioridades deveriam, por isso, ser bem mais pragmáticas: incentivar o empreendedorismo, a concentração empresarial, a concorrência, a desburocratização, o IDE e a poupança interna”, explica o advogado.
“Num momento em que a guerra e a inflação retornam à Europa e poderemos ter uma nova intervenção externa, deveríamos, por exemplo, apostar mais numa execução exemplar do PRR do que numa discussão constitucional que não dará resultados e que, se os tivesse, seguramente, não teriam efeitos práticos. Ou seja, o nosso problema, hoje, é infra-constitucional, no sentido de que está mais nas leis ordinárias e regulamentos, na praxis e nas mentalidades, do que no texto constitucional”.
Simão Mendes de Sousa concluiu ainda que “interessante será perceber em que medida é que as propostas de moderação fiscal do PSD serão compatíveis com as do PS de forma que ambos consigam encontrar compromissos que limitem o esforço fiscal das famílias e das empresas. A política fiscal penalizadora do carbono é uma proposta interessante cuja implementação e discussão pode ser muito interessante de acompanhar. Por último, ambos os partidos falam pouco de reforma do estado e da administração que seria um debate essencial em sede de revisão constitucional, mormente por causas relativas às barreiras existentes ao investimento e promoção e atração de investimento interno e externo”.
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