Qatargate: A credibilidade da UE pode ficar afetada? É necessário apertar o controlo das instituições europeias?

Especialistas contacados pelo ECO defendem que este caso afetou a imagem do Parlamento Europeu e que está na hora de apertar o controlo das instituições europeias.

Há poucos dias, o mundo acordou com mais um escândalo de corrupção, o já denominado de Qatargate. Desta vez envolveu um membro do Parlamento Europeu (PE), a ex-vice-presidente grega, Eva Kaili. Em causa estão suspeitas de um alegado lóbi ilegal do Qatar para influenciar decisões políticas em Estrasburgo.

Pelo que se sabe, até ao momento foram descobertos 900 mil euros suspeitos de relacionados com este caso, com as autoridades a decretarem a prisão preventiva a quatro pessoas — incluindo a Eva Kaili –, após serem indiciadas pelos crimes de participação em organização criminosa, branqueamento de capital e corrupção.

Mas tão importante quanto os contornos da questão criminal, é saber se as instituições europeias — todas elas e não só o Parlamento Europeu — podem ficar (ou não) com danos reputacionais irrecuperáveis.

Já em jeito de justificação, a presidente do PE, Roberta Metsola, assumiu que está na política para “lutar contra a corrupção” e para “defender os princípios da Europa”, admitindo que este é “um teste” aos valores e sistemas do PE. “Os responsáveis [pela corrupção] verão que este Parlamento está do lado da lei”, garantiu.

Avançou também que será lançado um processo de reforma, sublinhando que é necessária mais transparência nas reuniões de eurodeputados com agentes estrangeiros. “Vamos abanar este Parlamento. Vamos proteger aqueles que nos ajudam a expor crimes”, disse Metsola.

Há muitos anos que há problemas no sistema ético da administração da União Europeia. É tempo de passar à ação, para bem da própria integração europeia e da credibilidade das suas instituições e agentes.

Emily O’Reilly

Provedora de Justiça Europeia

Relembrar, ainda, o que defendeu a Provedora de Justiça (“Ombudsman”) europeia, a irlandesa Emily O’Reilly, ao jornal eletrónico Politico. Sendo a União Europeia “um grande pagador global, é natural que todos, desde as chamadas big-tech, as grandes tecnológicas, a Estados fora da União, tentem influenciá-la”. Dizendo ainda que é preciso “um grande escândalo para que as coisas mudem”, apesar de assinalar mudanças incrementais positivas nos últimos anos. Num contexto em que todos reconhecem, segundo O’Reilly, há muitos anos, “que há problemas no sistema ético da administração da União Europeia. É tempo de passar à ação, para bem da própria integração europeia e da credibilidade das suas instituições e agentes”.

Esta foi a mesma Provedora da Justiça Europeia que, em janeiro deste ano, criticou a Comissão Europeia por desconsiderar o pedido de acesso às mensagens de texto trocadas entre a sua presidente, Ursula von der Leyen, e o CEO da Pfizer, Albert Bourla, em 2021. O acesso às mensagens foi pedido por Alexander Fanta, jornalista no jornal alemão Netzpolitik, depois de von der Leyen admitir em abril de 2021 a negociação por mensagem de 1,8 mil milhões de vacinas com o CEO da Pfizer. Na altura, a notícia surgiu depois de um arranque demorado nas campanhas de vacinação europeias em 2020 e as falhas na entrega de doses da farmacêutica AstraZeneca, por problemas de produção.

Como fica ou pode vir a ficar a credibilidade das instituições europeias perante um caso destes?

“Claro que um episódio como este é sempre danoso para a reputação das instituições, em particular uma, como o PE, tão ativo na defesa da transparência, dos valores e princípios europeus e contra atos de corrupção e outros atos que prejudicam os cidadãos, os países e as instituições. Aliás, em 25 de novembro passado, o PE aprovou uma resolução sobre a realização do Mundial de Futebol no Qatar, muito crítico da situação dos direitos humanos neste país e da referida realização”, explicou Paulo Sande, especialista em assuntos europeus.

Porém, Paulo Sande defende que este caso pode vir a ser paradigmático e até positivo para a instituição, pela forma rápida de reação. “A forma rápida e resoluta como o processo se tem desenrolado, com uma vice-presidente da instituição presa preventivamente, tal como outros membros do presumível grupo criminoso, com buscas e apreensões em mais do que um país europeu, sinal do bom funcionamento da cooperação policial na União Europeia, também demonstra que, em democracia – e na Europa – ninguém está acima da lei. Eva Kaili, devido à forte suspeição existente (sacos de dinheiro, declarações quase disparatadas a louvar o país do Golfo, etc.), perdeu já o cargo de vice-presidente do PE e está suspensa de funções. Estes são aspetos que separam as democracias das autocracias (ou das democracias iliberais)”, disse.

O advogado deixa no ar uma questão que considera relevante: “Isto trata-se de um caso isolado, em que, no máximo, participam meia dúzia de deputados europeus (são 705, é bom não esquecer), alguns assistentes parlamentares e respetivos familiares, ou é algo de mais fundo e inquietante? Não tardaremos a saber”.

Isto trata-se de um caso isolado, em que, no máximo, participam meia dúzia de deputados europeus (são 705, é bom não esquecer), alguns assistentes parlamentares e respetivos familiares, ou é algo de mais fundo e inquietante? Não tardaremos a saber.

Paulo Sande

Especialista em assuntos europeus

É evidente que este caso afeta muito a imagem do Parlamento Europeu, e até, por arrastamento, do conjunto das instituições da UE”, sublinhou também Gonçalo Anastácio, sócio do departamento de Concorrência e União Europeia da SRS Legal.

“A notícia de favorecimento do Catar junto das instituições europeias já levou a que fossem colocados em crise outro tipo de acordos entre a UE e o Catar, como por exemplo, o acordo de transporte aéreo. No entanto, o Parlamento Europeu reagiu rapidamente através da condenação pública de práticas de corrupção e da esmagadora votação a favor da perda do cargo de vice-presidente, o que demonstra que é uma instituição sólida”, defende Rita Leandro Vasconcelos, advogada e sócia da CVA.

Também para João Vacas, consultor da Abreu Advogados, a credibilidade é afetada, pois as instituições europeias “não são imunes” a esta consequência. Ainda assim, sublinha que estes episódios não transformam os políticos, “genericamente considerados”, em corruptos, até prova em contrário.

“Devemos resistir à tendência perniciosa para confundir a árvore com a floresta que vem fazendo caminho nas nossas sociedades. O clima de suspeição generalizada faz tanto mal às instituições e erode tanto a coesão social quanto os casos concretos em que a ação de alguns dos seus membros é ilegal ou contrária à ética“, acrescentou o consultor.

Com vários programas, organismos, legislação e procedimentos relevantes na União Europeia para promover a transparência e combater a corrupção e a fraude, os especialistas acreditam que não é preciso mudar a lei. É preciso que seja aperfeiçoada e que “puna eficazmente” quem pratique esses crimes.

“A ideia voluntarista, muito portuguesa, de que basta mudar regras para que o mal seja erradicado colide com a natureza humana. Infelizmente, nem todas as pessoas são honestas e isso é verificável em todos os contextos e em todas as épocas. Será sempre possível procurar melhorar o enquadramento normativo – nomeadamente no tocante à transparência no exercício de funções públicas -, mas é ilusório esperar que a corrupção acabe por decreto“, sublinhou João Vacas.

Dantas Rodrigues defende que os atos de corrupção praticados por políticos dirigentes afeta sempre a credibilidade de qualquer instituição. “A dimensão intergovernamental, a ligação ao Catar e o facto de ser a instituição comunitária em que os cidadãos europeus mais confiam, deixa-nos preocupados, pela vulnerabilidade”, referiu.

Embora admita que o facto do “Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia disporem de um Registo de Transparência onde o registo é uma condição prévia para a realização de determinadas atividades de representação de interesses, indicando com quem se reúnem e quais os assuntos tratados na reunião, toda esta supervisão esbarra com a alta criminalidade financeira que alicia com quantidades muito significativas de dinheiro e presentes os políticos dos altos cargos para que adotem estratégias de conveniência“.

Há pouco controle das instituições europeias?

Paulo Sande admite que este caso revela “a necessidade sentida há muito de apertar o controlo das instituições europeias, sendo o PE, pela sua natureza, uma das mais visadas. Ursula van der Leyen, quando tomou posse, apresentou como um dos seus projetos a criação de um órgão de supervisão independente da conduta dos membros das várias instituições europeias, órgão que ainda não viu a luz do dia”.

No Parlamento, como junto da Comissão, agem representantes de muitos interesses distintos, todos credenciados e registados, os chamados “lobistas”. “Com esses interesses devidamente identificados, a sua atividade é aceite e até bem recebida, porque permite aos deputados europeus conhecer melhor as centenas de assuntos que discutem e, assim, decidir de forma mais informada“, notou Paulo Sande.

“Mas isso não significa que possam aceitar qualquer tipo de retribuição, favor ou presente (acima dos 150 euros). E as regras plasmadas no código de conduta dos deputados, no Regimento (artigo 10º), bem como as sanções neste previstas (no artigo 176º), são claras a esse respeito: os deputados ‘preservam a dignidade do Parlamento e não lesam a sua reputação’. Se isso acontecer, como claramente sucede neste caso, estão sujeitos a sanções que podem ir de uma mera repreensão à perda dos cargos para que foram eleitos”, explicou. E acrescentou: “é certo, contudo, que em particular no que respeita ao PE, as regras éticas e o controlo devem ser reforçadas, como há muito se reconhece”.

Dantas Rodrigues vai na mesma linha, ao dizer que “não me parece que a criação de um órgão de ética, seja suficiente. Falta um órgão de controle de denúncias (compliance), com poderes investigatórios e mecanismos muito concretos para as denuncias de atos ilícitos praticados pelos deputados e funcionários”. E acrescenta um ponto: “independentemente de vir a melhorar o controle na representação de interesses, falta ainda a questão da imunidade parlamentar, onde a detenção só é possível em caso de flagrante delito. Precisa-se de alterar o regime das imunidades criando a exceção para crimes financeiros praticados no exercício de atividades públicas. E tudo isto sim, é uma mudança dissuasora porque o resto tudo depende da independência profissional e pessoal daqueles que influenciam as decisões europeias”, concluiu.

“As regras sobre transparência devem ser exigentes. Será, provavelmente, impossível, eliminar por completo práticas como aquela a cujos desenvolvimentos temos vindo a assistir nos últimos dias. Porém, deve fazer-se um esforço por tornar mais fácil e rápida a sua deteção. Melhorar as regras de transparência das instituições é um passo fundamental no bom sentido. É natural que a ocorrência deste tipo de situações dê origem a reformas”, sublinha Rita Leandro Vasconcelos.

O que está em causa neste processo

Vamos por partes. Tudo começou no dia 9 de dezembro, quando os media noticiaram que Eva Kaili, até então vice-presidente do Parlamento Europeu e eurodeputada grega socialista, tinha sido detida em Bruxelas.

Mas não foi a única. Para além de Eva Kaili, foram ainda detidos outros cinco suspeitos. Entres eles, está o companheiro da ex-vice-presidente, o italiano Francesco Giorgi, e o seu pai, Alexandros Kailis. O que motivou estas detenções foi a terem sido encontrados 600 mil euros em dinheiro durante 16 buscas domiciliárias realizadas em Bruxelas, uma das quais ao apartamento da eurodeputada.

Eva KailiEPA/JALAL MORCHIDI

Francesco Giorgi é um dos nomes que “soa” neste processo junto ao da sua companheira. O italiano era atualmente assessor de um outro eurodeputado e dedicava-se às áreas de Política Externa e nos Direitos Humanos. Segundo avançaram alguns meios de comunicação, Giorgi seria o “cabecilha” da operação ai recolher subornos em troca de uma operação de limpeza da imagem qatari em Bruxelas

Já o pai de Eva Kaili, Alexandros Kailis, foi apanhado em flagrante pela polícia num hotel com um saco com 600 mil euros em dinheiro, alegadamente provenientes do esquema de corrupção. A polícia belga deteve-o quando se preparava para fugir para a Grécia.

Segundo os meios de comunicação gregos, outros 150.000 euros foram encontrados em malas numa busca realizada na casa de Kaili em Bruxelas. O mesmo valor foi encontrado num apartamento de um eurodeputado na capital belga.

“Há vários meses que investigadores da polícia suspeitam que um Estado do Golfo tenta influenciar as decisões económicas e políticas do Parlamento Europeu”, adiantou o Ministério Público Federal belga em comunicado.

Este Estado teria executado esta estratégia através do “pagamento de quantias substanciais de dinheiro, e oferecendo presentes importantes a terceiros, a pessoas com uma posição política ou estratégica importante dentro do Parlamento Europeu”, acrescentou.

Efeito dominó leva a prisão preventiva

Logo após a “explosão” do escândalo, em Atenas, o Partido Socialista Grego (Pasok-Kinal), do qual Kaili era membro, anunciou que esta foi “demitida”. Também o Partido Socialista Europeu anunciou a suspensão de Kaili com “efeitos imediatos”.

Já a presidente do Parlamento Europeu, a maltesa Roberta Metsola, decidiu suspender, com efeitos imediatos, todos os poderes, deveres e funções que foram delegados a Eva Kaili na qualidade de vice-presidente do Parlamento Europeu.

Roberta Metsola, presidente do Parlamento EuropeuEPA/JULIEN WARNAND

No sábado foi ainda efetuada uma busca na casa de um segundo deputado. Neste caso, “suspeita-se do pagamento de avultadas quantias em dinheiro ou da oferta de presentes significativos a terceiros com posição política e/ou estratégica que permita, no seio do Parlamento Europeu, influenciar as decisões” desta instituição.

Dois dias depois, a 11 de dezembro, quatro das seis pessoas detidas ficaram em prisão preventiva, entre elas Eva Kaili, após serem indiciadas por um juiz de instrução de Bruxelas pelo crime de participação em organização criminosa, branqueamento de capital e corrupção.

De recordar que Eva Kaili não pode beneficiar da sua imunidade parlamentar, porque o crime de que é acusada foi detetado em flagrante delito.

Na segunda-feira, dia 12 de dezembro, Eva Kaili, e os seus familiares mais próximos viram ser confiscados vários bens, como imóveis, contas bancárias e empresas, pela Autoridade de Combate ao Branqueamento de Capitais. A apreensão dos bens ocorreu na Grécia e foi justificada pela possibilidade de serem provenientes de atividades ilegais. A justiça grega apreendeu ainda bens de Mantalena Kaili, diretora-executiva da ELONtec.

Apesar de se ter considerado inocente e negado ter recebido dinheiro, Eva Kaili perdeu oficialmente no dia seguinte, 13 de dezembro, o cargo de vice-presidente do Parlamento Europeu. A decisão de remoção do estatuto foi aprovada por uma maioria de 625 eurodeputados, havendo um voto contra e duas abstenções.

As reações ao Qatargate

Este acontecimento internacional está a “mexer” com partidos, chefes de Estado e até a presidente da Comissão Europeia.

Logo após a detenção de Eva Kaili, o Partido Socialista Europeu (PES) ficou “completamente surpreendido” e chegou a referir que é um “balde de água fria” e um “choque” para o movimento sindical europeu. O PES considera este caso terá “custos” na imagem do Parlamento Europeu, mas considera que o tamanho dos danos irá depender da evolução da investigação.

Já a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, afirmou este sábado que a instituição europeia que lidera irá fazer “tudo o que puder” para ajudar a investigação. “O nosso Parlamento Europeu é firmemente contra a corrupção. Nesta fase, não podemos tecer comentários sobre qualquer investigação em curso, a não ser para confirmar que cooperámos e continuaremos a cooperar plenamente com todas as autoridades judiciais e policiais relevantes”, escreveu Metsola numa mensagem publicada na sua conta oficial na rede social Twitter.

Ursula von der LeyeEPA/CHRISTOPHE PETIT TESSON

Na segunda-feira, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, admitiu que as alegações de corrupção contra Eva Kaili são “muito graves” e defendeu a criação de um órgão independente de ética aplicável a todas as instituições europeias.

“As alegações contra a vice-presidente do Parlamento Europeu suscitam a maior preocupação, são muito graves. Está em causa a confiança das pessoas nas nossas instituições. E esta confiança nas nossas instituições exige elevados padrões de independência e integridade”, declarou Ursula Von der Leyen.

A presidente da Comissão Europeia recordou ainda que, em março passado, já propôs “a criação de um órgão de ética independente que abranja todas as instituições da União Europeia”, a ser estabelecido “com os mais elevados padrões”.

Cá em Portugal, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa pediu “consequências exemplares” neste caso de corrupção, defendendo que as suspeitas devem ser investigadas. “Em matéria de corrupção não há meios-termos”, apontou Marcelo Rebelo de Sousa, em declarações transmitidas pela RTP3, sublinhando que, “se há matéria para investigar”, esta deve ser investigada “exemplarmente”, independentemente de serem suspeitas “ao mais alto nível” ou não.

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