Ameaças de greves na Austrália impulsionam preços do gás natural na Europa. Mas reação pode ter sido “exagerada”
Negociações entre sindicatos e patrões de três plataformas de gás natural liquefeito na Austrália fizeram disparar preços na Europa. Em causa está cerca de 10% do abastecimento mundial de GNL.
As cotações de gás na Europa estão novamente a causar preocupações, ainda que as reservas do 27 Estados-membros já tenham atingido o limite necessário para o inverno. Desta vez, os receios são provenientes do outro lado do globo, da Austrália, mais especificamente das negociações entre trabalhadores e patrões das três principais plataformas de gás natural liquefeito (GNL) do país. Pela Europa, as incertezas já se refletem nos preços, e enquanto os alguns analistas antecipam que sejam de “curta duração” outros vão mais longe e dizem que os mercados europeus reagiram de forma “exagerada“.
De Canberra chegaram, esta segunda-feira, notícias de que as negociações entre os sindicatos e os patrões das plataformas de gás da North West Shelf (detida pela Woodside) e de Gorgon e Wheatstone (detidas pela Chevron) estariam em risco de cair por terra. Em cima da mesa estão reivindicações sobre salários e segurança que se não forem respondidas, resultarão em greves que terão impactos no mercado mundial de GNL.
As negociações decorrem desde o início do mês e tal como sublinham os analistas da consultora de commodities ICIS, não têm passado despercebidas entre os investidores. Entre 8 e 9 de agosto, o contrato de gás natural TTF (Title Transfer Facility), que serve de referência para a Europa, subiu 8 euros por MWh para 38,80 euros por MWh, tendo desvalorizado até aos 34 euros por MWh no dia 14, mas retomado o teto de 39 euros por MWh no dia seguinte, ensombrados pelos receios de uma greve entre os sindicatos.
Esta segunda-feira, 21 de agosto, a cotação disparou 9% para um máximo de 42 euros por megawatt-hora depois das notícias de que a Offshore Alliance, um sindicato que representa os trabalhadores da Woodside, ter confirmado estar agendada uma última reunião com os patrões na próxima quarta-feira, 23 de agosto. Quanto aos trabalhadores da Gorgon e Wheatstone, a decisão deverá ficar conhecida na quinta-feira, 24 de agosto. Em todos os casos, de acordo com a lei laboral australiana, deve ser presente um pré-aviso de greve sete dias antes da ação.
Apesar de estarem longe da Europa, estas três infraestruturas de GNL australianas produzem, coletivamente, cerca de 10% do abastecimento mundial de GNL. Até agora, em 2023, estas três centrais cobriram pelo menos 25% do GNL de quatro dos maiores compradores da Ásia: Japão, Taiwan, Tailândia e Singapura.
“O facto de o índice de GNL da Ásia Oriental, o EAX, ter aumentado 4,8 euros por MWh para 38,65 euros por MWh, ou apenas metade do aumento do TTF, sugere que os compradores asiáticos não estavam tão preocupados como os seus pares europeus com as greves”, escreve Paula Di Mattia Peraire, analista da ICIS. Acrescenta, porém, que no dia 16 de agosto, a cotação atingiu os 45,67 euros por MWh, “o que parece indicar uma preocupação crescente por parte dos compradores asiáticos”.
O resultado das negociações é particularmente relevante numa altura em que a Rússia já não é o principal fornecedor de gás da União Europeia (UE), embora se mantenha como o segundo principal nas entregas deste combustível por metaneiro. “A necessidade de substituir o abastecimento por gasoduto (Nord Stream) deixou a Europa altamente exposta ao mercado mundial do gás“, refere Peraire.
No primeiro trimestre de 2022, antes da guerra na Ucrânia, a Rússia era o maior fornecedor de gás natural por gasoduto dos 27, detendo uma quota de 38,8%, seguida da Noruega (38,1%). A situação ja se tinha invertido no arranque deste ano, com a quota de Moscovo a cair para 17,4%, e a da Noruega a subir para 46,1%. No que respeita ao gás natural liquefeito, a Rússia (13,2%) manteve-se no primeiro trimestre de 2023 como o segundo maior fornecedor da UE, atrás dos Estados Unidos (40,2 %). Nesse período, cerca de 40% do abastecimento total da Europa foi assegurado por GNL.
“Estas potenciais greves significam que os compradores asiáticos terão de competir de forma mais agressiva com os compradores europeus no que respeita ao GNL”, aponta a analista da ICIS.
No caso de as três greves avançarem, estima a ICIS, significa 40 milhões de de toneladas de GNL ficarão indisponíveis, o que inevitavelmente fará subir os preços, “especialmente se as greves durarem mais do que algumas semanas”. Mas esses níveis não deverão atingir os valores recorde registados no ano passado, altura em que o preço do gás superou os 300 euros por MWh perante as disrupções no gasoduto que ligava Moscovo a Berlim, e por sua vez ao resto da Europa, o Nord Stream 2.
"Os níveis recorde das reservas regionais de gás e a fraca procura pesaram sobre as importações de GNL nos últimos dois meses e esperamos que esta tendência se mantenha, impedindo que os preços subam demasiado. ”
Mas os apelos de cautela apenas serão necessários num cenário em que as greves se concretizem, algo que, para já, ainda se mantém em aberto. “O mercado europeu pode ter reagido de forma exagerada às notícias“, comenta a analista do ICIS.
A noção é corroborada pelo banco neerlandês ING, que perante a realidade de as reservas de gás europeias estarem a 91% de capacidade, afirma “que qualquer influência nos preços deverá ser de curta duração“. “Precisaríamos de ver uma grande quantidade da capacidade em risco, por um período prolongado, para resultar numa mudança significativa nos mercados europeus, pelo menos durante o próximo mês ou dois“, tal como aconteceu com a guerra na Ucrânia, explicam, numa nota de análise.
Receios de uma crise energética permanecem
A rápida reação às notícias vindas da Oceânia demonstram que os receios de uma crise energética semelhante àquela assistida em 2022 ainda não foram afastadas e a decisão de a Europa se emancipar do gás russo, colocou o bloco numa posição vulnerável no mercado global do gás. Neste caso, refere Paula Di Mattia Peraire, no próximo inverno, os investidores terão que estar atentos às previsões meteorológicas — que determinarão a intensidade do recurso ao gás — e ao ritmo da procura por GNL na Ásia. “Uma vaga de frio na China e no Sudeste Asiático aumentaria a procura de GNL e aumentaria a pressão de alta sobre os preços europeu“, alerta a analista.
As preocupações face ao próximo inverno também se sentem no Japão. No mês passado, a Bloomberg dava conta de que o governo de Fumio Kishida iria propor à Agência Internacional de Energia (AIE) a criação de uma estrutura global de armazenamento de gás para os 31 Estados-membros, entre eles, Portugal. A proposta deverá ser apresentada na próxima reunião ministerial da AIE agendada para fevereiro de 2024.
Isto acontece numa altura em que a ICIS prevê que o mercado global de GNL continue a sofrer apertos, pelo menos, até 2025, ano em que se esperam que novos investimentos ligados ao setor entrem em operação. Nessa altura serão disponibilizadas mais 84 milhões de toneladas por ano GNL, prevê.
Para 2023, o ICIS antecipa que o mercado global de GNL tenha um défice de três milhões de toneladas, sendo que esse valor chegará às 12 milhões de toneladas em 2024. “Os acontecimentos no mercado mundial do gás continuarão a ter um impacto significativo nos preços europeus nos próximos 18 meses”, vinca Peraire.
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