Segundo mandato de von der Leyen em risco após falhas na gestão da crise no Médio Oriente
O conflito no Médio Oriente está a afetar a reputação de von der Leyen, acusada de parcialidade. Críticas no seio da UE podem custar-lhe potencial segundo mandato à frente da Comissão.
Numa União Europeia (UE) que sempre questionou qual é o seu rosto, a pandemia de Covid-19 e a guerra na Ucrânia conferiram protagonismo a Ursula von der Leyen. Mas, perante o conflito entre Israel e o movimento islamita Hamas, a presidente da Comissão Europeia pôs em causa a credibilidade que conquistou também lá fora.
Depois de um dos seus comissários anunciar a suspensão do apoio à Palestina, aparentemente sem consulta prévia, e de ter visitado Israel e, ao lado de Benjamin Netanyahu, ter apelado ao direito de o país se defender, sem se pronunciar acerca das consequências humanitárias em Gaza, choveram críticas contra a líder do Executivo comunitário, provenientes de membros das várias instituições da UE.
Com eleições europeias a daqui a menos de um ano, estes erros políticos arriscam ser uma pedra no sapato da política alemã para um eventual segundo mandato à frente do braço executivo da UE. “Estamos a assistir a uma sucessão de situações incómodas nesta legislatura, resultantes de uma certa competitividade entre egos (…) que, no fim de contas, é prejudicial para a imagem da União no mundo“, afirmou, em declarações ao ECO, o eurodeputado Nacho Sánchez Amor, eleito pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE).
A sequência de “situações incómodas” a que se refere o eurodeputado espanhol teve início em 9 de outubro, dois dias depois do ataque do Hamas a Israel, quando o comissário europeu com a pasta da Vizinhança e do Alargamento, Olivér Várhelyi, anunciou na rede social X (antigo Twitter) a suspensão “imediata” de todos os pagamentos ao abrigo do apoio destinado ao desenvolvimento da Palestina, no valor de 691 milhões de euros.
Tweet from @OliverVarhelyi
A decisão não foi bem recebida na comunidade europeia e internacional. Portugal foi um dos países mais críticos sobre a atuação do comissário, com o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, a qualificá-la como “um erro grosseiro”. Já o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, chegou a contactar o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, para pedir a Bruxelas que não avançasse com a suspensão do apoio à Palestina.
Horas após o tweet de Várhelyi, o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, esclareceu que a Comissão Europeia iria apenas rever a ajuda humanitária à Faixa de Gaza – que, no final dessa semana, decidiu triplicar, para 75 milhões de euros – e não suspender os devidos pagamentos, argumentando que “castigar o povo palestiniano só iria prejudicar os interesses da União Europeia na região e encorajar ainda mais os terroristas”.
Tweet from @JosepBorrellF
“Não me lembro de uma falha tão grave de um comissário em funções, pelo menos neste século“, comenta o deputado único do Livre, Rui Tavares, em declarações ao ECO. A Comissão Europeia, através do seu principal porta-voz, atirou culpas a Olivér Várhelyi, dizendo que este não consultou previamente qualquer membro do colégio de comissários. Porém, no dia anterior, o mesmo porta-voz tinha afirmado, numa mensagem aos jornalistas citada pelo POLITICO, que podia “confirmar a substância” dos tweets de Várhelyi.
No mínimo, fazer uma verificação para perceber se houve esse tipo de instruções ou se ele agiu de modo próprio, era uma coisa necessária para repor a autoridade sobre o próprio Colégio de Comissários. A mensagem que é passada é que cada comissário agora faz política como lhe apetece e isso vai ser muito complicado para Von der Leyen no fim do mandato.
Considerando o caso política e institucionalmente grave, dada a violação de princípios inscritos nos tratados da UE, mais de 70 eurodeputados assinaram uma carta aberta para von der Leyen, na qual pedem a demissão do comissário. Mas, até agora, a líder do Executivo comunitário não reagiu ao que aparenta ser um ato de insubordinação. “Acho que seria adequado (a demissão); Várhelyi extrapolou as suas funções e é extraordinário que continue em funções“, considera Rui Tavares, argumentando que se tratou de “uma enorme machadada na autoridade da própria presidente da Comissão“.
Por outro lado, Rita Figueiras, professora de Comunicação Política na Universidade Católica Portuguesa, aponta que o comissário, que foi a segunda escolha do Governo liderado por Viktor Orbán para a Comissão Europeia, “parece ter colocado a sua nacionalidade e o posicionamento da Hungria à frente do cargo europeu“. No entanto, o estatuto dos comissários proíbe aceitar ordens de governos nacionais, em particular daquele do seu país de origem.
“A presidente da Comissão não tem coragem de demitir ou de pôr na ordem um comissário que está evidentemente a agir para minar a política externa da UE. (…) A mensagem que é passada é que cada comissário agora faz política como lhe apetece, e isso vai ser muito complicado para von der Leyen no fim do mandato“, afirma o antigo eurodeputado Rui Tavares, que, ainda assim, apela a uma “verificação” para perceber se Várhelyi recebeu instruções ou agiu de modo de próprio.
“Golpe” contra o Conselho da UE
As reações políticas negativas atingiram o seu auge, no entanto, na sequência da viagem de von der Leyen a Israel. Ao lado do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a presidente da Comissão Europeia afirmou que o país tem o direito de se defender, sem instar ao respeito pelo direito internacional humanitário. “Sei que a reação de Israel irá mostrar que é uma democracia”, disse, no mesmo dia em que o Governo israelita ordenou a saída de cerca de um milhão de pessoas do norte de Gaza para o sul da região, enquanto preparava uma potencial ofensiva terrestre.
Esta posição está longe daquela acordada dias antes pelos ministros dos Negócios Estrangeiros dos 27 Estados-membros, que condenaram os ataques do Hamas, mas também apelaram “à proteção dos civis e à contenção, à libertação dos reféns e à permissão do acesso a alimentos, água e medicamentos em Gaza, em conformidade com o direito humanitário internacional”.
Entre eurodeputados, diplomatas e chefes de Governo e de Estado, os críticos não se tardaram a fazer ouvir. Porém, o principal “puxão de orelhas” veio mesmo do seio da Comissão, com o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, a deixar claro que a “posição oficial” da UE sobre qualquer política externa é definida pelo Conselho Europeu e pelo Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros – o que exige sempre a unanimidade dos 27 Estados-membros.
Não me parece que estejamos no ponto em que Ursula Von der Leyen tenha em risco a sua reeleição. O capital dela é muito maior que isso (os erros políticos na reação à crise no Médio Oriente). É hoje muito reconhecida como a líder europeia e acabou por ser a referência da União Europeia em termos de quem a representa.
Embora o Executivo comunitário tenha um grande poder de influência na política externa, através, por exemplo, de acordos comerciais, os tratados não lhe atribuem qualquer papel nesta matéria. Apenas o Alto Representante, cargo atualmente ocupado por Josep Borrell, que preside aos Conselhos de Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa da UE e é, simultaneamente, um dos vice-presidentes da Comissão, é responsável por assegurar a ligação entre estas duas instituições. Ou seja, tal como Várhelyi, também von der Leyen extrapolou as suas funções.
Rui Tavares recorda, no entanto, que a antiga ministra da Defesa da Alemanha prometeu uma Comissão geopolítica aquando da sua nomeação para o Berlaymont: “No seu primeiro desafio, que foi a crise russo-ucraniana, deu passos, muitos deles muito positivos, para implementar essa visão, que me parece muito necessária e no futuro próximo mais ainda”, face à ameaça de um regresso de Donald Trump à Casa Branca que pode “deixar a Europa sozinha no mundo geopolítico dos adultos”.
O problema é que a presidente da Comissão Europeia falhou no segundo teste. “Num dos governos mais extremistas em Israel, ir a correr para se mostrar ao lado de Netanyahu (quando) não é ele quem merece solidariedade; quem merece são aquelas pessoas que foram massacradas. É preciso também aí traçarmos a linha do inaceitável, e acho que von der Leyen não a soube traçar bem”, remata o historiador.
Segundo o Financial Times, pessoas próximas da líder do Executivo afiançam que a sua reação resulta de um impulso alemão, a chamada culpa histórica, para defender Israel a todo o custo. A investigadora Rita Figueiras reconhece que, tendo a UE relações com o Estado de Israel e sendo von der Leyen alemã, “ambos os fatores juntos podem ajudar a explicar o seu movimento inicial”. Mas, como ressalva Rui Tavares, von der Leyen tem de ter, em primeiro lugar, “os instintos políticos de uma política europeia”.
Von der Leyen procurou retratar-se das acusações logo no dia seguinte à viagem, no comunicado em que a Comissão anunciava o aumento da ajuda humanitária a Gaza, declarando o “apoio ao direito de Israel de se defender contra os terroristas do Hamas, no pleno respeito do direito humanitário internacional”.
Dias depois, o porta-voz do Executivo afirmou que a líder do Executivo fora a Israel representar apenas a Comissão e não a posição dos 27 Estados-membros da UE. “Ninguém criticou von der Leyen por ter ido à Ucrânia e a Bucha”, atirou ainda o responsável.
Mas nem a liderança da alemã em resposta à guerra na Ucrânia agradou a todos. “Vimos a mesma coisa com os anúncios de sanções, ou na maioria das questões relacionadas com a Ucrânia”, alegou um funcionário da Comissão Europeia, citado pelo POLITICO sob a condição de anonimato.
Está em causa o estilo de liderança de von der Leyen, muito diferente do do seu antecessor no cargo, Jean-Claude Juncker: em vez de haver uma efetiva tomada coletiva das decisões, ela trata de todos os assuntos bilateralmente com cada um dos comissários, quando não recorre, sozinha, apenas ao seu gabinete.
“É conhecida por ser workaholic, alguém que dorme no Berlaymont quando está em Bruxelas, por funcionar muito dentro do seu círculo íntimo de conselheiros, em particular com o seu conselheiro político, e de ligar relativamente pouco aos comissários”, assinala, ao ECO, o especialista em assuntos europeus Paulo Sande. Ainda assim, realça, a forma como ela tem gerido a Comissão “já existe há alguns anos”, apenas tem estado, “provavelmente, disfarçada pelo facto de ter conseguido obter resultados”.
Se estas críticas têm estado abafadas, voltaram a ouvir-se com a ida a Israel. O problema de se voltarem a ouvir é que para o ano há eleições para o Parlamento Europeu e, logo a seguir, será escolhido o próximo presidente da Comissão Europeia. Von der Leyen ainda não anunciou se vai candidatar-se a um novo mandato de cinco anos, mas o Partido Popular Europeu, a sua família política na UE, já garantiu que a apoiará caso decida recandidatar-se.
“Certamente, a questão será recuperada pelos não apoiantes de Ursula von der Leyen quando a questão da renovação do mandato se colocar“, admite a académica Rita Figueiras. Mas, para Paulo Sande, embora a viagem a Israel “não tenha sido a finest hour de von der Leyen”, não está num ponto em que a sua reeleição esteja em risco. “O capital dela é muito maior que isso. É hoje muito reconhecida como a líder europeia e acabou por ser a referência da UE em termos de quem a representa”, argumenta o especialista em assuntos europeus.
Mais importante do que a eventual reeleição de von der Leyen, Rui Tavares chama a atenção para a necessidade de retomar o método de designação de candidatos para a presidência da Comissão Europeia, conhecido como “Spitzenkandidaten” (ou “candidatos principais”, numa tradução livre a partir da língua alemã), através do qual cada grupo político do Parlamento Europeu apresenta um cabeça-de-lista às eleições europeias.
O processo, que não foi aplicado nas últimas eleições, dita que o cabeça-de-lista do grupo político com mais assentos conquistados na assembleia europeia é depois escolhido para assumir a presidência do Executivo comunitário. Até ao momento, só uma vez este sistema foi respeitado, com Jean-Claude Juncker.
“Independentemente do currículo da pessoa, não é a forma correta numa Europa que ainda por cima se prepara para ser paladina da democracia no resto do mundo e para dar lições de moral, depois dizer-se ‘bem, mas esta pessoa não se apresentou a eleições’. Estávamos num caminho para legitimar, democraticamente, a Comissão Europeia. Temos de voltar a esse caminho“, apela o antigo eurodeputado.
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