Portos “entupidos” ameaçam fornecimento de trigo à indústria alimentar. Pão e massas vão ficar mais caros
Silos cheios em Leixões e Lisboa condicionam descarregamento de navios com matéria-prima para fabricar pão, bolos, massas, bolachas ou cereais de pequeno-almoço. Custos terão “reflexos" nos preços.
É mais uma “tempestade perfeita” a ameaçar a indústria alimentar em Portugal. Depois do disparo dos custos logísticos na sequência da pandemia e do risco de virem a faltar os cereais após o início da guerra da Ucrânia, agora é a sobrelotação dos silos portuários em Leixões e no terminal do Beato (Lisboa) que ameaça o abastecimento de trigo para o fabrico de pão, produtos de pastelaria, massas, bolachas ou cereais de pequeno-almoço. Os industriais do setor afastam, para já, a necessidade de “limitar as vendas”, mas advertem ao ECO que o aumento dos custos “vai ter necessariamente reflexos no preço de venda dos produtos”.
Em causa está sobretudo a chegada nas últimas semanas aos portos portugueses de navios de grandes dimensões com carregamentos de milho, soja e outras matérias-primas destinadas às rações animais. Devido aos maiores constrangimentos à importação da Ucrânia — embora nas últimas semanas tenham saído alguns pelos corredores alternativos abertos pela União Europeia, o que acrescenta pressão nestas infraestruturas –, esses produtos estão a vir de origens mais longínquas, como Brasil, Canadá ou África do Sul. E em maiores quantidades, o que está a “entupir os armazéns portuários”, relata Luís Ramos, presidente da APIM.
“Com esta sobrelotação em Leixões e no Beato, quando chegam de França os nossos barcos mais pequenos com trigo panificável ou trigo duro [usado nas massas] não têm espaço em silo e os barcos inclusivamente não podem acostar – porque não vão ocupar cais se não podem manobrar. E ficam ao largo a aguardar vez para descarregar, com custos muito significativos para a indústria. Corremos o risco de eventualmente faltar o cereal e de não haver farinha para fazer pão, bolachas ou massas alimentícias porque a capacidade de armazenagem nas fábricas é muito reduzida e estamos habituados a fazer uma rotação quase semanal de navios”, dramatiza o porta-voz da associação empresarial.
Corremos o risco de eventualmente faltar o cereal e de não haver farinha para fazer pão, bolachas ou massas alimentícias porque a capacidade de armazenagem nas fábricas é muito reduzida e estamos habituados a fazer uma rotação quase semanal de navios.
Até ao final do ano, com o aproximar do período natalício em que o consumo cresce, a expectativa dos industriais é que o trânsito dos navios aumente. E se as condições de descarga se mantiverem “limitadas”, os industriais acenam com o “risco de ter de refletir isto no preço”. “Mas o pior que pode acontecer é poder haver mesmo falta de cereal e termos de limitar as vendas. Isso é algo que não queremos. Nem queremos inflamar o mercado e que os clientes desatem a correr [às lojas] com receio que acabe a farinha e que não haja pão. Não estamos nessa situação”, contextualiza Luís Ramos, que é também administrador da Germen e do grupo Better Foods.
Pedro Moreira da Silva, CEO da Cerealis, confirma ao ECO esta “situação crítica” nos principais portos portugueses, em que “estas infraestruturas estão completamente cheias, chegando ao ponto de não ser possível descarregar barcos que estão a chegar todas as semanas”. “Esta situação já está a gerar sobrecustos logísticos e de sobre-estadias dos navios, que se irão repercutir no aumento do custo industrial”, completa o líder do grupo nortenho que detém as marcas Milaneza ou Nacional. Cada dia de atraso de um cargueiro na descarga poderá custar entre 20 a 30 mil euros, calcula o gestor, “o que se somará aos custos de logística acrescida que a falta de armazenagem vai provocar”.
Estas infraestruturas (Lisboa, Leixões e Aveiro) estão completamente cheias, chegando ao ponto de não ser possível descarregar barcos que estão a chegar todas as semanas. Esta situação já está a gerar sobrecustos logísticos e de sobre-estadias dos navios que se irão repercutir no aumento do custo industrial.
Além disso, há outras nuvens a pairar sobre esta indústria alimentar, como o da subida “relevante” dos preços do trigo duro durante o verão, como o ECO noticiou em agosto, na sequência das más colheitas em Espanha e França e da redução a produção do Canadá, e que “obviamente terá impacto no preço das massas de 2024”, confirma agora o presidente executivo da Cerealis, que tem fábricas na Maia, Porto, Trofa, Coimbra e Lisboa.
Por outro lado, começam a surgir outros dados que vão onerar ainda mais os fatores de produção, desde logo uma “subida muito significativa dos custos totais de energia”. “As tarifas de eletricidade vão, aparentemente, subir de forma muito relevante numa altura em que as estimativas de custos da energia (elétrica e gás) vão também subir”, sustenta o filho de Carlos Moreira da Silva, dono da BA Glass, que há dois anos, em parceria com a família Silva Domingues, comprou este que é um dos maiores grupos nacionais do setor alimentar.
Reservar espaço nos silos para alimentação humana
Admitindo serem “contas por alto” e que podem pecar por defeito, o líder da APIM contabiliza que, entre o trigo mole (panificável) e o trigo duro (usado no fabrico das massas), as fábricas deste setor precisam de consumir mais de 3.000 toneladas de cereal por dia. Com a indústria nacional a depender em mais de 90% da importação de cereais, esta organização já alertou o Governo para a urgência de aumentar a capacidade de armazenamento nos portos e adaptar estas infraestruturas às “necessidades da indústria”, sob pena de terem de continuar a “fazer estas ginásticas” em situações de crise como a atual.
Luís Ramos dá o exemplo de Leixões, onde se mantém há cerca de um mês um navio que trouxe 40 mil toneladas de milho brasileiro sem conseguir descarregar a totalidade da carga, que equivale a 40% da capacidade total do silo concessionado à SDL. Ao mesmo tempo, um navio com trigo, que em condições normais ficaria apenas dois dias neste porto, não havendo espaço neste armazém temporário, está há mais de uma semana a descarregar faseada e diretamente para as fábricas, “com custos muito significativos para a indústria”.
É que a alternativa de desviar as mercadorias para outros portos também é pouco viável, quer em termos logísticos, quer financeiros. A Norte, o Porto de Aveiro está igualmente “cheio com produtos sobretudo para a alimentação animal”. Já Viana do Castelo e Marín (Galiza) não estão habituados nem preparados para este tipo de operações e o abastecimento às fábricas do Grande Porto, neste caso, obrigaria a indústria a suportar “custos avultados”.
A solução mais imediata, sugere o representante das moagens de trigo e dos produtores de massas, bolachas e cereais de pequeno-almoço, que diz estar em contacto com o Ministério da Agricultura e da Alimentação – a tutela não respondeu às questões do ECO –, seria “reservar uma parte do espaço nos silos exclusivamente para os cereais destinos à alimentação humana”. “É o Governo que pode regular isto e estabelecer prioridades, em função do consumo. Acho que a alimentação animal não é prioritária face à humana”, acrescenta Luís Ramos, salvaguardando que “não [quer] um conflito com os homens das rações, mas é uma questão de acautelar as prioridades e ter isso em conta”.
Indústria de rações “aproveita as oportunidades do mercado”
Sem querer comentar diretamente esta proposta e lembrando que a gestão dos silos segue a lógica de “first come, first serve” e, por isso, “têm de esperar pela saída de matéria-prima para entrar outra”, Jaime Piçarra, secretário-geral da associação que representa os produtores de alimentos para animais (IACA), reconhece que “a APIM tem razão e, como os silos estão cheios, neste pico não há a rotação que havia anteriormente, em condições normais”. No entanto, nota que também os industriais das rações estão a suportar os “sobrecustos” de ter os seus barcos à espera, o que “significa um produto final mais caro”.
Depois destas experiências e desta volatilidade, seria importante aumentar a área de armazenagem, promover uma maior rotatividade e, se calhar, a capacidade de as empresas terem mais espaço em casa para fazerem stock.
No início da guerra na Ucrânia, uma grande produtora de cereais, “ficou evidente a fragilidade nacional” no que toca a estas matérias-primas. E ainda em fevereiro deste ano, devido a uma greve às horas extraordinárias na Silopor, a gestora dos terminais da Trafaria e do Beato, em Lisboa, advertiu que o país só tinha stocks para 15 dias. Neste momento, o cenário é o oposto, com o porta-voz da IACA a falar numa “questão de aproveitar as oportunidades do mercado”. É que não só estão a chegar neste momento os cereais que foram encomendados pelas empresas noutras origens mais distantes, como carregamentos de milho da Ucrânia via rotas alternativas abertas pela UE, após a ameaça russa ao acordo dos cereais.
Confirmando que os silos estão cheios com milho e soja para a alimentação animal, mas que a indicação que têm da gestora é que “estão a sair bem e com regularidade” para as fábricas, Jaime Piçarra concorda que “depois destas experiências e desta volatilidade, seria importante promover uma maior rotatividade e a aumentar capacidade de as empresas terem mais espaço em casa para fazerem stock”. É que o investimento em novos silos, pelo menos na região de Lisboa, continua a ter o “problema de fundo” de a Silopor, uma empresa de capitais públicos, estar em liquidação há mais de 20 anos.
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