Exportadoras trocam de botas em Milão sem “descalçar” crise política em Portugal
Industriais do calçado preparam-se para a neve e até mudam de género para enfrentar falta de encomendas no estrangeiro, mas não esquecem eleições em casa que mexem com financiamento e trabalhadores.
Nos poucos intervalos em que potenciais clientes não estão a entrar nos dois stands que montou na Micam, Reinaldo Teixeira, um dos principais industriais portugueses do calçado, vai espreitando o telemóvel para ver as mensagens que vão caindo e as notícias que vão chegando de Portugal, onde a agenda mediática está por estes dias ocupada com as eleições legislativas. Nesta que é a principal montra do setor a nível mundial, os empresários nacionais procuram alternativas para a escassez de encomendas, mas não esquecem o contexto político em casa, lamentando que a indústria seja ignorada na campanha eleitoral.
Depois de se ter “aguentado” durante o ano passado com uma faturação de 50 milhões de euros, mas reconhecendo estar assustado com os dez milhões de pares que a indústria nacional exportou a menos face a 2022, o dono da Carité Calçados vai participar este ano em mais feiras internacionais. “Quando as coisas não estão bem, temos de procurar mais. Não podemos ficar em casa e à espera de que alguém faça o trabalho por nós. Não vale a pena ficar a gemer”, atira o histórico empresário de Felgueiras.
Com perto de 700 funcionários, incluindo as firmas parceiras que trabalham em exclusivo para o grupo, e um volume de produção anual a rondar atualmente um milhão de pares, Reinaldo Teixeira tomou igualmente a decisão de voltar a vender para os Estados Unidos, que no passado chegou a ser um “mercado importante” para o grupo nortenho. Já tem inclusive viagem marcada para expor em feiras profissionais do outro lado do Atlântico e leva na bagagem as duas marcas próprias: J. Reinaldo (segmento moda) e Tentoes (técnico e profissional).
Mas a 10 de março promete estar em Portugal para votar e espera acordar no dia seguinte com o “bom senso dos políticos para fazerem parcerias e porem o país acima dos interesses individuais”. Ao futuro Governo pede uma redução de impostos capaz de “devolver a ambição” e a vontade de investir aos empresários; e que permita aos trabalhadores levarem mais dinheiro para casa. Incluindo “flexibilidade” na tributação do trabalho extraordinário para que “o suor dessas horas não fique para o Estado”. Chega ao ponto de recusar encomendas para não sobrecarregar a produção, sabendo que “os empregados não querem dar horas extras porque sobem de escalão no IRS”.
Outra prioridade que apontam ao próximo Executivo é o funcionamento do Banco Português de Fomento, que “devia estar focado na indústria, mas ainda não [viu] acrescentar nada”. “Precisamos de um banco amigo da indústria e isso não se tem visto. Já tive duas reuniões com eles, mas saí com a sensação de que as condições oferecidas nem sequer se aproximam da banca normal, com quem trabalho há 30 anos”, resume o empresário. É que o tema do fundo de maneio, desabafa, é “importantíssimo” para as empresas nesta fase de retração económica na maior parte dos mercados mais relevantes para o calçado português.
O suor das horas extraordinárias não pode ficar para o Estado. Algumas vezes recuso encomendas para não sobrecarregar a produção.
“A indústria emprega centenas de milhares de pessoas. Pagamos impostos, pagamos à Segurança Social, estamos a contribuir – e muito. Se nestas alturas mais débeis nos ajudarem com um comprimido para a gente não se ir abaixo, como tomamos numa doença, acho que era fabuloso. As empresas sentem-se manietadas porque por vezes os clientes pagam mais a longo prazo, ou porque estão a fazer um investimento em nova tecnologia. E para tudo é preciso dinheiro, é a gasolina de que precisamos”, ilustra Reinaldo Teixeira.
José Afonso Pontes, que lidera a empresa criada há 65 anos pelo avô José Maria em Guimarães e que é uma das mais antigas do concelho ainda em atividade, sublinha igualmente que o negócio da Cruz de Pedra é internacional, mas “obviamente a conjuntura nacional também preocupa, por muito que [queira distanciar-se] um bocadinho dos problemas” políticos do país. Por um lado, sente os trabalhadores “desanimados e descontentes com a situação que hoje atravessam”; por outro, exemplifica, vê os empresários “injustamente” obrigados a reembolsar com as atuais taxas de juro mais elevadas as chamadas linhas Covid, a que recorreram por causa da pandemia.
A decisão de lançar uma linha de calçado para senhora em 2023 deu um “contributo decisivo” para manter o volume de vendas face ao ano anterior. No entanto, o líder da empresa minhota que detém a marca própria Campobello (vale 30% do negócio) e que está a fazer um investimento de 400 mil euros para automatizar e modernizar as linhas de montagem, alerta para a situação “extremamente preocupante” que atravessam os setores industriais. Incluindo o do calçado, que diz ter entrado num “declínio bastante grave”. “Devia falar-se mais de indústria na campanha eleitoral. Não sinto que as coisas estejam a ser discutidas como deviam”, lamenta.
Baixar temperatura e recusar encomendas com “fome”
Com Portugal a enfrentar um “desafio grande” para se posicionar face a outros históricos produtores europeus, como acontece no calçado, também o líder da gigante Procalçado, sediada em Vila Nova de Gaia, lamenta ver a indústria “fora da agenda” da campanha eleitoral. E os partidos a omitirem “quais os projetos e prioridades efetivas” que têm para estes setores de atividade que têm um “peso relevante” para as exportações nacionais. Mas que, reconhece, acabam por não ser tão apelativos para os políticos como outros temas, nem “atraem votos”.
O grupo especializado em componentes para calçado trouxe a esta feira italiana a marca Lemon Jelly, que lançou há 11 anos e que em 2023 não escapou uma quebra próxima dos 20%, para um volume de vendas de 4,5 milhões de euros. Uma das respostas ao atual “contexto desafiante” está por estes dias bem visível no stand da Micam, para integrar a próxima coleção outono/inverno. Aos conhecidos modelos para a chuva que já tinha no portefólio, acrescentou as botas yuki, desenvolvidas para aguentar até 30 graus negativos e com as quais espera impulsionar as vendas para os mercados da Escandinávia.
José Pinto sabe que a batalha da Lemon Jelly é no “competitivo ambiente internacional”, mas assume também estar atento à potencial instabilidade política em Portugal. Uma “areia a mais na engrenagem” que dispensava nesta fase. Embora não acredite nas promessas que tem ouvido na campanha, dramatiza que o próximo Governo “deve baixar os impostos para todos conseguirem ter melhores condições de vida e se tornarem também melhores consumidores”. E para que chegue ao bolso dos funcionários, em vez de se perder na tributação adicional, o “esforço enorme” que fez há poucos meses para “melhorar as condições salariais de todos” na empresa, onde garante que ninguém recebe o salário mínimo.
Impostos elevados? “Nesse aspeto mudam os Governos e continua tudo na mesma. Não acredito em promessas dessas. Se não formos nós a liderar a mudança e a criar valor acrescentado… [Pausa] É a única solução para conseguirmos pagar as contas e os impostos que nos pedem, que são cada vez mais altos. Não me sinto acarinhado como empresário, embora também não sinta um estigma. Temos a nossa missão e temos de ser cada vez menos dependentes do Estado”, acrescenta o fundador e CEO do grupo Procalçado, que detém a Lemon Jelly.
Orlando Santos corrobora que “o contexto económico a nível nacional tem de ser favorável, sobretudo quando as empresas passam por um momento mais grave, como o atual”. “É preciso olhar para a indústria como um motor de desenvolvimento da economia portuguesa. Damos emprego diretamente a 88 famílias, mas temos outras empresas que trabalham a 80% ou 90% para nós, por isso, no total seriam perto de 300 famílias que ficariam em perigo se fechássemos portas”, sustenta o CEO da Softwaves, que emprega 88 pessoas em São João da Madeira.
É preciso olhar para a indústria como um motor de desenvolvimento da economia portuguesa. Seriam perto de 300 famílias que ficariam em perigo se fechássemos portas.
O líder desta marca de calçado de senhora, pertencente à Conforsis, dá o exemplo da Alemanha para atestar que “os países em que a indústria não foi negligenciada conseguem andar para a frente” e recorda que a inteligência artificial acarreta ameaças para os setores dos serviços, mas “a indústria de manufatura vai ser sempre necessária”. Esta “família de sapateiros” – uma ascendência reclamada também pelo socialista Pedro Nuno Santos, oriundo do mesmo concelho – apostou a 100% nesta marca própria, na viragem do milénio, depois de perder grande parte das encomendas para a China.
Acabou por ser esse “trabalho de marca” que valeu à exportadora nortenha um crescimento de 22% na faturação, para 9,5 milhões de euros, em contraciclo com a indústria portuguesa. “Quando criámos a marca, fechámos por completo o private label. De vez em quando chega alguém a querer que fabriquemos com a marca dele, mas isso seria prostituir a nossa marca, metendo-lhe outro nome. Mas isto exige disciplina porque muitas vezes estamos a precisar de encomendas. Mas negamos, mesmo estando com fome”, aponta o empresário, que tem 1.500 pontos de venda concentrados na Bélgica, França e EUA.
Fundada a 1 de maio de 1970, a empresa foi comprada em 1990 por Leonel Santos, que era o contabilista. Já com a segunda geração aos comandos – Orlando e Hélder estão por estes dias em Milão e o irmão Marcelo noutra feira nos EUA –, o preço dos sapatos à saída da fábrica ronda os 100 euros, subindo nas lojas para um intervalo entre 250 e 300 euros.
Posicionado num segmento alto que diz ser uma “zona segura” para a empresa, atesta que não só os modelos são “mais difíceis de copiar”, como “há menos sangue” a nível concorrencial. Outro vetor de crescimento nesta fase conturbado são as vendas através da loja online, onde já vende meio milhão de euros e consegue fazer chegar os produtos a destinos como a Austrália ou as ilhas Guadalupe.
No meio de “tubarões” que são presença habitual na Micam, a Nano Shoes faz a estreia absoluta. Lígia Silva, responsável comercial, relata que a empresa de Cesar (Oliveira de Azeméis) veio “à procura de novos clientes e de um novo impulso”. No ano passado, graças às encomendas de calçado de uniformes (alfândegas e aeroportos) provenientes de um cliente francês que “atingiu números maiores”, viu a faturação disparar 25% e atingir pela primeira vez a fasquia dos dois milhões de euros. Até teve de subcontratar produção a outras fábricas nacionais. “Mas temos de continuar a trabalhar porque nada dura para sempre”, completa.
Estamos expostos à realidade internacional, mas não vivemos à margem da situação política em Portugal. Temos de continuar a trabalhar porque nada dura para sempre.
Além de França, tem também clientes na Finlândia, na Dinamarca e nos Países Baixos. A marca própria existe desde a fundação, mas o fabrico de sapatos para outras marcas ainda pesa 80% do total. A porta-voz da empresa nortenha aponta como objetivo “equilibrar para 50/50 dentro de cinco anos”.
Questionada sobre as perspetivas para 2024, diz serem agora “mais moderadas”, mostrando que não “fica indiferente ao que se passa à volta”. Incluindo no país de origem, onde vende sapatos para os trajes académicos. “Estamos expostos à realidade internacional, mas não vivemos à margem da situação política em Portugal”, anui Lígia Silva.
Também Paulino Moura, que começou a trabalhar com 14 anos numa fábrica de calçado e há pouco mais de duas décadas criou a sua própria empresa, conseguiu escapar à perda de vendas no ano passado, mantendo os sete milhões de euros no ano anterior. Com 100 funcionários em Vizela, argumenta que foi a diversidade de gamas que “ajudou a aguentar” o negócio no último exercício. Passou a vender mais sapatos para mulheres e diz ter colmatado a redução de algumas encomendas com novos clientes de segmento médio-alto.
Isto é uma indústria que cada vez está a ficar mais velha. Há muita dificuldade em encontrar pessoal qualificado para a produção. Nem os meus filhos vejo a querer pegar nos sapatos.
Na nova fábrica em que investiu quatro milhões de euros produz diariamente à volta de mil pares, exportando 90% para mercados como Alemanha, Itália ou França. Não arrisca estimativas para a evolução do negócio em 2024, mas tem a certeza que “o futuro desta indústria não passa por produzir mais, mas por produzir melhor e com valor acrescentado”. Porém, apostar nesses artigos de gamas mais elevadas exige mão-de-obra especializada que escasseia cada vez mais no setor, apesar do projeto da associação do setor (APICCAPS) nas escolas para tornar esta indústria mais atrativa para as novas gerações.
“Isto é uma indústria que cada vez está a ficar mais velha. Há muita dificuldade em encontrar pessoal qualificado para a produção. Temos de os ir formando dentro de casa. Alguém tem de os ensinar. Mas isto não é indústria, é artesanato. É preciso ter mão e cuidado. Não sendo um setor interessante para os jovens, aqueles que nos procuram para trabalhar não vêm com aquela motivação que deviam”, resume Paulino Moura. E nem os filhos vê “a querer pegar nos sapatos”.
(O jornalista viajou para Itália a convite da APICCAPS)
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