Medina financiou queda da dívida pública com dinheiro das pensões futuras
O forte investimento em obrigações do Tesouro pela CGA e pelo FEFSS em 2023 baixou a dívida pública e elevou o rating de Portugal, mas suscita dúvidas sobre o impacto no futuro dos pensionistas.
O ás de trunfo de Fernando Medina para baixar o rácio da dívida pública em 2023 para um nível histórico de 99,1% do PIB foi o dinheiro das pensões futuras dos portugueses. Através do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) e da Caixa Geral de Aposentações (CGA), foram investidos mais de 7,7 mil milhões de euros na aquisição de títulos de dívida da República, nomeadamente de obrigações do Tesouro.
Recorde-se que, segundo os últimos dados do Banco de Portugal, o stock da dívida pública registou uma queda de 9,3 mil milhões em 2023 face aos valores de 2022, atirando a dívida para cerca de 263 mil milhões de euros em dezembro do ano passado, o valor mais baixo desde junho de 2020.
Segundo contas do ECO, o FEFSS (fundo criado em 1989 para salvaguardar o cumprimento das responsabilidades do Sistema Previdencial quando este entrar em modo deficitário) detinha no final do ano passado 12,6 mil milhões de euros investidos em obrigações do Tesouro, mais 43% face a 2022, por conta da aquisição de 4,8 mil milhões de euros de obrigações do Tesouro em 2023, a que correspondeu um montante de subscrições líquidas (diferença entre compras e o somatório de vendas e amortizações) de 3,8 mil milhões de euros, de acordo com informação da tutela.
Já a CGA, que tem a seu cargo a gestão do regime de segurança social dos funcionários públicos e trabalhadores equiparados admitidos até ao final de 2005 em matéria de pensões, quase que duplicou as suas aplicações em títulos de dívida pública portuguesa de longo prazo em 2023 face a 2022, através da aplicação de 3,93 mil milhões de euros na compra de dívida nacional.
A UTAO considera que a redução do valor nominal da dívida em 2023 resultou, em grande medida, do “facto de entidades em todos os subsetores públicos serem investidores em parcelas significativas de dívida pública portuguesa”, sublinhando que “este efeito subiu consideravelmente em 2023 (mais 12,1 mil milhões de euros do que no ano anterior).”
Segundo dados da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), a CGA passou de uma exposição em títulos de dívida da República de 4,36 mil milhões de euros em 2022 para 8,29 mil milhões de euros no final do ano passado. O aumento desta exposição foi garantido com a integração dos mais de 3 mil milhões de euros do fundo de pensões da Caixa Geral de Depósitos logo no início do ano – encaixe que se destina a pagar as responsabilidades futuras do Estado para com os aposentados da CGD.
Num relatório recentemente publicado sobre as condições do mercado, a dívida pública e a dívida externa até março, apresentado ao Parlamento, a UTAO refere ainda que a redução do valor nominal da dívida em 2023 resultou, em grande medida, pelo “facto de entidades em todos os subsectores públicos serem investidores em parcelas significativas de dívida pública portuguesa”, sublinhando que “este efeito subiu consideravelmente em 2023 (mais 12,1 mil milhões de euros do que no ano anterior).”
A estratégia desenhada por Fernando Medina para baixar o rácio da dívida para menos de 100% do PIB em 2023 através da aquisição de títulos de dívida pública com recursos das Administrações Públicas traduz-se, pelo menos no curto e médio prazo, como benéfica para as contas do Estado.
Por essa razão é que a UTAO classifica a diminuição da dívida pública em 2023 como “artificial”, porque “a responsabilidade de pagar a dívida mantida por entidades públicas continua a recair sobre os contribuintes”.
Isto sucede porque a dívida pública na ótica de Maastricht (utilizada no cálculo do rácio da dívida) é uma dívida consolidada, isto é, no seu apuramento são excluídas as parcelas detidas por unidades orgânicas no interior do perímetro das Administrações Públicas.
Usar o dinheiro das pensões para elevar o rating da dívida
De acordo com dados do Banco de Portugal e cálculos da UTAO, no final do ano passado, a dívida pública detida pelas Administrações Públicas sob a forma de títulos era de oito mil milhões de euros, cerca de 86% dos 9,3 mil milhões de euros da redução do stock da dívida pública.
“O impacto da detenção cruzada de dívida pública, entre unidades orgânicas das Administrações Públicas, no valor da dívida consolidada, foi substancialmente maior em 2023 do que no passado”, referem os técnicos da UTAO. “Isto tanto é verdade no que respeita a todos os instrumentos de dívida como no que respeita apenas aos instrumentos de dívida titulada.”
Fica claro que a estratégia do Governo de António Costa e de Fernando Medina para colocar o rácio da dívida abaixo do limiar dos 100% do PIB em 2023 pela primeira vez em 14 anos foi amplamente conseguida pela utilização de entidades públicas, como o FEFSS e a CGA, para adquirir títulos de dívida pública.
Do ponto de vista da teoria da gestão de portefólio, esta estratégia é amplamente criticável, desde logo pela forte influência política de um Governo no presente na gestão do dinheiro das pensões das próximas décadas, que foi ao ponto de condicionar ainda mais a gestão do FEFSS ao estabelecer que o fundo deveria manter o valor nominal de dívida pública portuguesa constante na sua carteira a 31 de dezembro de 2023 até 31 de março de 2024, através da publicação a 29 de janeiro deste ano (mais de um mês depois da demissão do Governo) do Decreto-Lei de Execução Orçamental (DLEO).
“A UTAO pesquisou os DLEO até 2018 e não encontrou disposições semelhantes. Estas determinações no DLEO/2024 são uma prova da orientação política conducente a uma redução no valor da dívida pública de Maastricht sem ser por redução no stock da dívida viva”, refere a equipa de Rui Nuno Baleiras num documento publicado a 9 de abril deste ano.
Mas a estratégia do anterior Governo é também criticável pelo risco de concentração excessiva da carteira da CGA e sobretudo do FEFSS em dívida pública portuguesa, como recentemente o Conselho de Finanças Públicas chamou a atenção, num relatório publicado no seu site.
No entanto, é importante lembrar que “essa estratégia levou a uma queda do rácio da dívida para menos de 100% do PIB e isso ajudou a uma revisão em alta do rating da República pelas principais agências de notação, abrindo com isso um novo mercado de investidores para os títulos da dívida pública”, refere Pedro Brinca, professor da Nova SBE.
Essa nova realidade deverá contribuir para que Portugal possa financiar-se no mercado a taxas mais baixas no futuro, ao mesmo tempo que, na carteira do FEFSS e da CGA, a subida do rating da República traduziu-se igualmente numa subida do valor das obrigações do Tesouro que tinham em carteira.
Desta forma, a estratégia desenhada por Fernando Medina para baixar o rácio da dívida para menos de 100% do PIB em 2023 através da aquisição de títulos de dívida pública com recursos das Administrações Públicas traduz-se, pelo menos no curto e médio prazo, como benéfica para as contas do Estado. “Há uma narrativa que torna esta operação defensável”, destaca Pedro Brinca.
No entanto, Brinca ressalva que isso só acontecerá se esta operação for “vista como uma vez sem exemplo, como on-off“, porque, caso esta passe a ser uma prática recorrente, será natural que as agências de rating vejam isso como um risco acrescido para a gestão da dívida pública, dado que o nível de financiamento do Estado dependerá crescentemente das pensões dos contribuintes.
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