Défice e dívida elevados põem França no caminho de ser o “enfant terrible” da União Europeia

  • Joana Abrantes Gomes
  • 30 Junho 2024

Com a dívida pública e o défice acima dos limites das regras europeias, o futuro governo francês terá de focar-se em reduzir as despesas do Estado. Mas, sem maioria, país arrisca não ter orçamento.

Da lista de dezenas de países que iam a votos em 2024 não constava a eleição deste domingo e a segunda volta agendada para daqui a exatamente uma semana em França. No rescaldo da vitória da extrema-direita de Marine Le Pen (31,37%) nas europeias de 9 de junho em França, por mais do dobro da votação obtida pelo partido de Emmanuel Macron (14,60%), o Presidente francês decidiu antecipar umas legislativas que só deveriam acontecer daqui a três anos. “Não posso fingir que nada aconteceu”, justificou então aquele que chegou ao Palácio do Eliseu em 2017 com o objetivo de reforçar o centro político e enfraquecer os extremos.

Porém, se Macron achava que o crescimento do União Nacional (Rassemblement National – RN, em francês) só daria frutos nas eleições para o Parlamento Europeu, as sondagens para as legislativas antecipadas apontam para uma nova maioria de deputados do partido de extrema-direita, mas agora na Assembleia Nacional, relegando o Ensemble — a coligação que inclui o partido do Chefe de Estado francês — para o terceiro lugar, atrás da aliança de esquerda Nova Frente Popular (NFP).

As consequências da convocação de eleições antecipadas estendem-se à economia. Na Bolsa de Valores de Paris, o seu principal índice, o CAC 40, desvalorizou ao ponto de anular a maioria dos ganhos acumulados este ano e tocar mínimos de cinco meses, penalizando, sobretudo, as cotadas do setor da banca, das infraestruturas e da energia. Já o spread das obrigações francesas a 10 anos face à Alemanha atingiu 82 pontos de base na semana seguinte ao anúncio de Macron, o nível mais alto desde fevereiro de 2017.

Evolução do diferencial das obrigações francesas a 10 anos face à Alemanha desde 2012

Fonte: Reuters

A incerteza sobre os resultados eleitorais pode vir a castigar ainda mais as ações francesas e o spread da dívida soberana do país. Uma vitória da extrema-direita, da coligação de esquerda ou mesmo um cenário de ingovernabilidade: qualquer uma destas hipóteses “pode corresponder a um maior incremento do défice do Estado e do respetivo endividamento”, assinala João Queiroz, Head of Trading do Banco Carregosa, em declarações ao ECO, chamando a atenção para as implicações negativas que tal teria na evolução esperada do ritmo de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).

Em 2023, o défice francês fixou-se em 5,5% do PIB, enquanto a dívida pública do país atingiu os 110,6% do PIB. Estes números fizeram soar os alarmes em Bruxelas, com a Comissão Europeia a colocar a França sob um procedimento de défice público excessivo, na sequência da adoção das novas regras orçamentais comunitárias, que estiveram suspensas devido à crise provocada pela pandemia de Covid-19.

Caso não cumpra com o défice orçamental de até 3% e o rácio da dívida pública abaixo de 60% do PIB, mediante o cumprimento de ajustamentos anuais que terá de negociar com o Executivo comunitário, Paris arrisca-se a pagar uma multa de 0,1% do PIB, o que equivale a cerca de 2,5 mil milhões de euros, segundo Antoine Andreani, da XTB França.

A sanção nunca foi aplicada a nenhum Estado-membro, mas a decisão de Bruxelas, anunciada no passado dia 19 de junho, em plena campanha eleitoral, é entendida pelo analista da XTB França como um aviso de que o momento atual não é favorável a um aumento da despesa pública, devendo o foco do futuro governo ser a redução da dívida.

O alerta visa, sobretudo, a extrema-direita e a aliança entre o Partido Socialista, o Partido Comunista, o França Insubmissa e o Partido Ecologista. No caso de uma vitória do União Nacional — o cenário tido como mais provável tendo em conta as sondagens –, os investidores temem mudanças drásticas na política económica e fiscal, o que, segundo João Queiroz, poderia conduzir à fuga de capitais e ao aumento dos custos de financiamento para a França.

A possibilidade de políticas orçamentais expansionistas sob uma coligação de esquerda ou extrema-direita eleva as preocupações sobre a sustentabilidade das finanças de França, o que resultará numa degradação do rating ou da notação de risco de crédito e num aumento adicional nos prémios cristalizados nos spreads de dívida.

João Queiroz

Head of Trading do Banco Carregosa

Se — mais improvável — vencer o NFP, a “implementação de políticas económicas expansivas, possivelmente resultando em maiores gastos públicos e défices orçamentais, iriam gerar desequilíbrios orçamentais relevantes” e “adicionar ainda mais pressão sobre as obrigações soberanas e das empresas francesas”, prevê o responsável do Banco Carregosa.

João Queiroz acrescenta que qualquer um dos cenários pode levar, posteriormente, a um “aumento adicional nos prémios cristalizados nos spreads de dívida”, bem como a uma descida do rating e da notação de risco de crédito — embora a S&P, no início de junho, e a Fitch, em 2023, já tenham reduzido o rating da dívida francesa para “AA-“, com perspetiva estável, enquanto a Moody’s já assinalou poder seguir o mesmo caminho.

Por outro lado, o analista Antoine Andreani lembra que “o Banco Central Europeu indicou que não recorrerá ao quantitative easing em caso de perturbação no mercado obrigacionista francês”, pelo que “o próximo governo terá de evitar aumentar o prémio de risco exigido pelos credores para a dívida francesa durante os futuros leilões”.

Mas a confiança dos investidores pode sair igualmente prejudicada perante uma Assembleia Nacional fragmentada e sem uma maioria clara de um partido ou uma coligação, pois deixaria a França num cenário de ingovernabilidade e paralisia legislativa, dificultando, por exemplo, a aprovação do orçamento do Estado e de reformas económicas.

Concretizando-se um destes cenários políticos, é de realçar também o maior potencial de depreciação do euro​. Com os investidores a exigir prémios de risco mais elevados, deteriorando ainda mais os custos de financiamento para o Estado francês, o economista do Banco Carregosa avisa que outros países europeus podem ser contaminados por este posicionamento de aversão ao risco, o que, por sua vez, afetaria a “perceção do valor do euro enquanto divisa”.

Com ou sem maioria parlamentar, Le Pen aponta a mira a 2027

Desde o anúncio das eleições antecipadas, todas as sondagens apontam à vitória do União Nacional. A mais recente, da OpinionWay, publicada pelo jornal Les Echos na sexta-feira, mostrava o partido de Le Pen e aliados (incluindo membros dos Republicanos, de centro-direita) com 37% das intenções de voto, seguindo-se o NFP (28%) e o Ensemble (20%).

Prever quantos deputados de cada partido vão garantir assento nos 577 lugares do Parlamento francês já é mais díficil, visto que a eleição é a duas voltas e espera-se um aumento da participação. Ainda assim, uma sondagem da Elabe para o canal BFM TV calcula que a extrema-direita eleja 260-295 membros, o que significa que existe a possibilidade de conseguir os 289 lugares necessários para formar um governo de maioria absoluta.

A provável vitória do União Nacional, por contraposição à queda do Ensemble para terceiro lugar e, simultaneamente, à cada vez menor popularidade do Presidente francês — abaixo dos 30%, segundo os estudos de opinião –, levantam uma questão: conseguirá Macron manter-se no Eliseu em coabitação com um governo da extrema-direita de Le Pen, que deseja suceder-lhe nas presidenciais de 2027?

Os últimos dias têm aberto as cortinas ao que pode vir aí. A líder do União Nacional quer ter uma palavra a dizer na nomeação do próximo comissário europeu francês e na área da Defesa, decisões tradicionalmente reservadas ao Presidente da República. “É prerrogativa do primeiro-ministro, não do Presidente, nomear o comissário francês”, disse Le Pen à rádio Europe 1. Macron, por seu lado, deverá apontar para a continuidade de Thierry Breton no Executivo comunitário.

No entanto, não é claro se Jordan Bardella, eurodeputado reeleito este mês e apontado ao cargo de primeiro-ministro caso o União Nacional vença as legislativas antecipadas, irá aceitar formar governo. Embora garanta que o partido “está pronto para governar”, disse que não seria “um assistente do Presidente” e que só governaria com uma maioria parlamentar — com um governo minoritário, corre o risco de os partidos da oposição se unirem para aprovarem uma moção de censura e, assim, provocar a queda do executivo.

À procura de tranquilizar e dar confiança aos mercados financeiros e às empresas, o jovem de 28 anos tem vindo a amenizar o programa económico despesista do partido e prometeu, caso chegue ao poder, realizar uma auditoria às contas públicas antes de decidir as prioridades orçamentais. Ainda assim, algumas propostas continuam sem ser acompanhadas de uma previsão de custos, como a redução do imposto sobre o rendimento para menores de 30 anos para combater a “fuga de cérebros” e a revogação “em princípio” do aumento da idade de reforma dos 62 para 64 anos.

O aumento do poder de compra, reduzindo o IVA da energia — que, segundo ele, custaria 12 mil milhões de euros por ano –, seria a primeira medida do partido de extrema-direita, que quer também tributar os lucros inesperados do setor da energia e baixar a contribuição anual da França para o orçamento da União Europeia em 2 mil milhões de euros.

O que está em jogo é o futuro da nação… Ou há uma maioria clara, ou corremos o risco de uma crise de regime

Bruno Le Maire

Ministro das Finanças francês

Do lado da esquerda, apesar da surpreendente aliança formada nas poucas semanas após a convocação das eleições, os partidos continuam a ser propensos a desacordos, especialmente em questões de política externa como a guerra na Ucrânia e o conflito em Gaza, tornando improvável uma governação estável. Aliás, o NFP ainda não avançou um candidato a primeiro-ministro, com os socialistas a recusarem que seja o líder do França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon.

Um imposto sobre a riqueza, o aumento do salário mínimo para os 2.000 euros, subir o IRS sobre os mais ricos, tornar a escola pública totalmente gratuita e congelar os preços de alguns bens essenciais são apenas algumas das 150 propostas da Nova Frente Popular, que partilha com a União Nacional a revogação da reforma das pensões, mas tendo em vista repor a idade da reforma nos 60 anos.

“Ganhar mais e gastar menos” é o objetivo do Ensemble. O bloco pró-Macron, liderado pelo atual primeiro-ministro, Gabriel Attal, propõe medidas para aumentar o poder de compra, incluindo uma redução de 15% na fatura elétrica a partir do próximo inverno e uma redução do preço do material escolar através de compras em grupo. No que toca às receitas, Attal sugere um imposto sobre as recompras de ações para financiar um “fundo de renovação energética” destinado à classe média, o que permitiria renovar mais 300.000 habitações até 2027.

Sem Macron poder convocar novas eleições parlamentares nos 12 meses seguintes à segunda volta, agendada para 7 de julho, e sendo muito improvável a nomeação de um governo tecnocrata, à semelhança do que já aconteceu na Itália, a França corre o risco de ter uma legislatura suspensa e o futuro governo ter de governar por decreto, caso não seja aprovado o orçamento. O ministro das Finanças, Bruno Le Maire, deixa o aviso: “O que está em jogo é o futuro da nação… Ou há uma maioria clara, ou corremos o risco de uma crise de regime”.

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