Bruxelas à espera do novo primeiro-ministro inglês
A Comissão questiona os termos em que o novo Governo britânico quer continuar a relação com a UE. Sem renegociar o Brexit, Londres prioriza "pacto de segurança” para, no futuro, discutir o comércio.
Desde bem antes das eleições de 4 de julho que o Partilho Trabalhista (Labour) fazia campanha sob o slogan “Make Brexit Work”, com o seu líder Keir Starmer a comprometer-se a não mexer no atual acordo de saída do Reino Unido da União Europeia (UE). Agora, chegado ao número 10 da Downing Street, quer fazer reset nas relações com o bloco comunitário e vê com bons olhos um “pacto de segurança” entre ambos. Em Bruxelas, por seu lado, mantém-se a desconfiança em relação a Londres desde que Boris Johnson ameaçou “rasgar” partes do acordo, aguardando-se apenas que o novo Governo britânico decida pôr as cartas na mesa e mostre ao que vem. No entanto, a Comissão Europeia admite estar de “mente aberta” para renegociar os protocolos já em vigor.
O futuro das relações do Reino Unido com a UE esteve ausente da campanha eleitoral dos trabalhistas, provavelmente por um receio de que trazer o assunto à tona dissuadisse os defensores da saída de votarem no partido. Porém, está inscrito no programa do Labour uma aproximação ao bloco do qual deixaram de fazer parte oficialmente no final de 2020, bem como uma iniciativa para a negociação de um “pacto de segurança” entre as duas partes. As “linhas vermelhas” são o regresso ao mercado único, à união aduaneira e à livre circulação de pessoas.
Embora ainda pouco tenha sido desvendado sobre em que pode consistir um eventual “pacto de segurança”, Olivia O’Sullivan, do Chatham House, considera que a ambição do Executivo trabalhista é incluir questões além da Defesa, tais como a “segurança económica”, o “clima” e as “ligações energéticas”. Ao mesmo tempo, a diretora do programa ‘UK in the World’ (‘O Reino Unido no Mundo’, em português) vê “alguma margem de manobra” nas linhas vermelhas do Labour. “O novo Governo está a planear procurar um acordo veterinário para reduzir as barreiras ao comércio de produtos alimentares e agrícolas“, podendo também tentar “alinhar-se mais estreitamente com a UE em alguns setores económicos, como o dos produtos químicos“, refere, em declarações ao ECO.
No entender do diretor do Centre for European Reform (CER), o recém-empossado primeiro-ministro deve priorizar a cooperação em matéria de segurança. “Face à ameaça [militar] da Rússia e a um eventual regresso de Donald Trump à Casa Branca, quanto mais a Grã-Bretanha puder contribuir para a segurança europeia, maior será a boa vontade criada junto dos antigos parceiros da UE“, escreve Charles Grant, numa carta aberta dirigida a Keir Starmer com dez sugestões para melhorar as relações com o bloco comunitário. Particularmente o Acordo de Comércio e Cooperação (ACC) é “muito limitado” no que diz respeito à Política Externa e à Defesa, aponta, assinalando que “países como os Estados Unidos, o Canadá e a Noruega têm laços mais estruturados com a UE” nesta matéria do que o Reino Unido.
Essa cooperação pode ser útil, mais tarde, em novas discussões sobre as questões comerciais. Sobretudo os pequenos fabricantes britânicos consideram que a burocracia e a fricção nas fronteiras imposta pelo acordo do Brexit prejudica as exportações, enquanto as empresas de serviços – como as consultoras – se queixam de serem prejudicadas pela impossibilidade de enviar trabalhadores para a UE por alguns dias sem visto. A estimativa do Office of Budget Responsibility aponta para que o acordo do Brexit tenha tido um custo de 4% no PIB britânico.
Keir Starmer, por sua vez, acredita que pode conseguir um acordo “muito melhor” do que o “acordo falhado que Boris Johnson impôs ao Reino Unido”. Numa viagem a Edimburgo, poucos dias após ser empossado primeiro-ministro, afirmou que já estão a ser desenvolvidos esforços para melhorar as relações do país com a União Europeia. A visita de David Lammy à Alemanha, Polónia e Suécia, a primeira como ministro dos Negócios Estrangeiros, evidencia isso mesmo: ainda que os encontros com os respetivos homólogos dos três parceiros europeus se tenham devido, em parte, ao apoio à Ucrânia, o novo chefe da diplomacia britânica sublinhou a vontade de “redefinir” não só as relações bilaterais, como também a relação com o bloco comunitário.
No entanto, o diretor do Centre for European Reform alerta o novo primeiro-ministro para que não ignore as instituições europeias, com quem “os sucessivos governos conservadores, avessos aos ‘burocratas de Bruxelas’, procuraram muitas vezes minimizar os contactos”, privilegiando as relações com as capitais nacionais. É “importante” contactar com ambas, frisa Charles Grant, num apelo por uma diplomacia “calma, previsível e construtiva”.
Uma das sugestões passa por Keir Starmer fazer um discurso em Bruxelas. “Contribuiria muito para demonstrar que, com o Partido Trabalhista, o Reino Unido está a mudar”, argumenta o responsável do think tank sediado em Londres, sugerindo ainda que o primeiro-ministro tente obter um convite para o Conselho Europeu agendado para outubro, de forma não só a “assinalar um reinício das relações”, mas também como uma “demonstração de unidade” antes das eleições presidenciais norte-americanas de 4 de novembro.
Precisamente as eleições do outro lado do Atlântico são uma das circunstâncias que será preciso ter em conta na relação entre a UE e o Reino Unido, devido à possibilidade de Donald Trump ser eleito Presidente dos EUA pela segunda vez. Como nota o diretor do CER, o contexto geopolítico irá influenciar, a longo prazo, o caminho a seguir entre ambas as partes. Propõe, nesse sentido, o reforço dos conhecimentos especializados sobre o bloco comunitário. “O Governo deve colaborar com as empresas, os grupos de reflexão e as universidades” para recuperar da “grande perda” de peritos em matérias europeias, que foi uma consequência do Brexit.
O novo residente do número 10 de Downing Street tem uma boa oportunidade para detalhar um pouco mais dos seus planos para melhorar a relação com a UE já na próxima semana, quando receber os líderes dos 47 países da Comunidade Política Europeia, incluindo os 27 Estados-membros do bloco comunitário, numa reunião que decorre no Palácio de Blenheim, no condado inglês de Oxfordshire, na quinta-feira, 18 de julho.
Starmer disse que exclui o mercado único, uma união aduaneira ou a readoção da liberdade de circulação. Mas, dentro destas linhas vermelhas, ainda há alguma margem de manobra. O novo Governo está a planear procurar um acordo veterinário para reduzir as barreiras ao comércio de produtos alimentares e agrícolas e poderá também procurar alinhar-se mais estreitamente com a UE em alguns setores económicos, como o dos produtos químicos.
Focada em cumprir agenda em vigor, Bruxelas põe o ónus em Londres para novos acordos
A grande questão é saber como é que isto é recebido em Bruxelas e nas 27 capitais da União Europeia. Ao ECO, um porta-voz do gabinete do chefe do serviço de relações UE-Reino Unido da Comissão Europeia disse que esta instituição “aguarda com expectativa a oportunidade de colaborar com o novo Governo do Reino Unido” para “aprofundar relações” e “enfrentar” desafios globais, desde os conflitos regionais à pobreza e às alterações climáticas.
Sem abrir muito o jogo, o Executivo comunitário salienta apenas o desejo de manter uma “agenda positiva” com o “amigo e parceiro”, baseada “no pleno respeito e na aplicação fiel e atempada do Acordo de Saída, incluindo o Quadro de Windsor, e do Acordo de Comércio e Cooperação” – a “pedra angular” das relações entre as duas regiões.
A mesma ideia foi reiterada na passada quarta-feira pelo principal porta-voz da Comissão, Eric Mamer, ao apontar que, neste momento, o foco é a “implementação” dos acordos já assinados entre as duas partes. No entanto, mostrou abertura em negociar uma eventual proposta dos trabalhistas no âmbito dos protocolos em vigor, colocando o ónus sobre Londres. “Cabe ao Reino Unido dizer o que quer, em que termos, e como quer que esta relação continue“, afirmou, lembrando que o Acordo de Saída e o ACC tiveram por base as linhas vermelhas do governo britânico da altura.
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Renegociar um acordo que demorou tantos anos a concluir não é bem visto por muitos líderes da UE e membros das instituições europeias. Por isso, Olivia O’Sullivan defende que Keir Starmer deve concentrar-se em procurar uma “cooperação renovada” em “prioridades partilhadas” como a ameaça da Rússia, um possível segundo mandato de Trump e a gestão dos laços económicos com a China em vez de reabrir já as negociações sobre questões comerciais entre as duas partes.
“Mas a prossecução de uma cooperação mais profunda em algumas áreas, como os programas industriais de Defesa e o financiamento, pode encontrar barreiras existentes à participação de países terceiros em projetos da UE”, ressalva a diretora do Chatham House.
Numa entrevista ao Politico, o antigo presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker disse que o Reino Unido está atualmente a “descobrir as consequências do seu voto” no referendo de 2016, que “correspondem exatamente” ao que Bruxelas “lhe disse que seriam”. Contudo, não deixa de ser um bom augúrio o “sim” de David Lammy ao convite do chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, para participar na reunião de outubro do Conselho dos Negócios Estrangeiros da UE.
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