Governo acaba com primazia total do comprador de casa sobre a banca quando construtor entra em insolvência

Mudança à lei retira o direito de quem assinou o contrato-promessa de ser sempre pago antes de as entidades financeiras receberem o valor emprestado. Medida é uma das metas para desembolso do PRR.

A banca vai passar à frente dos compradores de casa, no direito de receber o valor emprestado ou mesmo o imóvel, quando o construtor entra em insolvência, segundo um decreto-lei do Governo publicado no final da semana passada em Diário da República. Esta alteração entra em vigor a 24 de agosto. Isto significa que, a partir dessa data, uma família deixa de poder ser indemnizada em primeiro lugar pelo sinal que deu pela habitação, no caso de falência do empreiteiro e incumprimento do contrato, passando o credor hipotecário — isto é, o banco — a ter a primazia na execução da dívida.

“Em sede de execução ou processo de insolvência, o titular do direito de retenção”, isto é, o comprador que assinou o contrato-promessa de compra e venda, “deixa de ter sempre preferência perante os restantes credores”, indicou ao ECO fonte oficial do Ministério da Justiça. “Pelo contrário, o credor hipotecário”, ou seja, a banca, “passa a ter preferência no pagamento nos casos em que registou anteriormente a hipoteca, salvo se o titular do direito de retenção tiver realizado despesas com o imóvel com vista à sua conservação ou aumento do seu valor, casos em que o direito de retenção continua a prevalecer”.

Assim, para o promitente-comprador poder ser pago primeiro que a banca, no caso de insolvência ou incumprimento da construtora, é necessário que tenha realizado “despesas para conservar ou aumentar o valor” do imóvel, lê-se no diploma assinado pelo primeiro-ministro, Luís Montenegro, pelo ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, pela ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, e pelo secretário de Estado da Economia, João Ferreira.

Há um risco de os promitentes-compradores serem mais prejudicados, porque primeiro serão os bancos a receber e só depois terão direito a reaver o sinal em dobro.

Paulo Valério, presidente da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação (APDIR)

“Esta solução corresponde ao que tem sido defendido pela doutrina jurídica há mais de 30 anos, traz mais segurança jurídica e mais justiça: o retentor não pode ser pago depois do credor hipotecário nos casos em que tiver contribuído para conservar ou aumentar o valor da coisa, pois nessas situações, sem a preferência do retentor, o credor hipotecário enriqueceria à custa das despesas feitas por aquele. Nos restantes casos, o critério da prioridade do registo ou da constituição do direito é mais justa e traz maior segurança jurídica”, defende o Ministério de Rita Alarcão Júdice.

Advogados consultados pelo ECO alertam, porém, que os compradores de casa que assinaram contrato-promessa de compra a venda podem ser afetados negativamente com esta mudança legislativa. “Há um risco de os promitentes-compradores serem mais prejudicados, porque primeiro serão os bancos a receber e só depois terão direito a reaver o sinal em dobro”, explica Paulo Valério, presidente da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação (APDIR).

O advogado saliente que, neste momento, “o direito de retenção prevalece sempre sobre a hipoteca”. O decreto-lei do Executivo limita-o agora “às situações em que houver gastos de conservação e valorização do imóvel”, indica Valério.

“A consequência mais imediata que salta à vista verificar-se-á em sede de processo de insolvência, isto é, quando tiver sido celebrado um contrato-promessa de compra e venda, o construtor do imóvel vier a ser declarado insolvente e o administrador de insolvência não celebrar o contrato prometido (de compra e venda), o promitente-comprador que tenha direito de retenção sobre o imóvel passará, com a alteração legislativa agora introduzida, a ter o respetivo crédito graduado para pagamento a seguir ao do credor hipotecário”, acrescenta Natália Garcia Alves, sócia do departamento de resolução de litígios da SRS Legal.

Uma forma de proteger o promitente-comprador perante uma situação de insolvência do construtor poderá passar por conferir eficácia real ao contrato-promessa.

Natália Garcia Alves, sócia do departamento de resolução de litígios da SRS Legal

Para a advogada, “uma forma de proteger o promitente-comprador perante uma situação de insolvência do construtor poderá passar por conferir eficácia real ao contrato-promessa de compra e venda, pois neste caso o administrador de insolvência será obrigado a cumprir o contrato-promessa, ou seja, a celebrar o contrato de compra e venda e o promitente-comprador não sairá prejudicado em relação ao credor hipotecário”.

Para conferir eficácia real a um contrato é necessário registá-lo como tal num Conservatória de Registo Predial. Assim, o documento deixa de ter efeitos apenas entre as partes contratantes, estendendo-se a eficácia do mesmo a quaisquer terceiros.

Condição para desembolso das verbas do PRR

Apesar dos reparos apontados pelos advogados às situações em que os compradores podem ser prejudicados porque perdem a primazia na receção da indemnização pelo sinal que deram pela casa face ao direito de os bancos executarem a dívida em causa, o Governo salienta que “o decreto-lei não retira o direito de retenção a ninguém”.

“Quem tinha direito de retenção continua a ter, incluindo os promitentes-compradores. Aquilo que o decreto-lei faz é racionalizar os casos em que o retentor é pago antes dos outros credores em sede de execução, limitando-os às situações em que a preferência no pagamento é realmente justificada. O que se altera são os requisitos da prevalência: a partir de agora todos os titulares do direito de retenção, incluindo os promitentes-compradores, apenas serão pagos em sede de execução antes dos credores que têm hipoteca anterior quanto ao valor das despesas que tiverem tido a conservar ou aumentar o valor da coisa”, argumenta fonte oficial do Ministério da Justiça.

Por outro lado, o gabinete da ministra Rita Alarcão Júdice refere que, “desde 1986 até hoje multiplicaram-se os estudos que sublinham a injustiça e ineficiência a que a prevalência” do direito de retenção sobre a hipoteca, “conduz, podendo-se indicar, sumariamente, duas críticas:

  • Enfraquecendo a hipoteca enquanto garantia, a solução pode tornar mais difícil a concessão de crédito pelas entidades bancárias às famílias ou o estabelecimento pelos bancos de exigências contratuais de não entrega da coisa, prejudicando as famílias que visava proteger;
  • Incentiva a simulação de contratos-promessa, entregando o proprietário a coisa a terceiro que fica a poder viver no imóvel, invocando direito de retenção e inutilizando os direitos do credor hipotecário”.

É uma medida introduzida no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) pelo Governo anterior, que teve de ser concretizada pelo atual Executivo para cumprimento das metas de desembolso.

Ministério da Justiça

Além disso, salienta que esta “é uma medida introduzida no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) pelo Governo anterior, que teve de ser concretizada pelo atual Executivo para cumprimento das metas de desembolso”.

“Do PRR da área governativa da justiça consta como medida a ‘revisão do regime de preferência do direito de retenção no confronto com a hipoteca (Código Civil)’. A medida não contém qualquer densificação, aprofundamento ou sentido orientador da referida revisão, deixando ao critério do legislador nacional a definição do modo concreto como esta seria concretizada”, aponta a mesma fonte oficial.

Neste aspeto, o Governo não poupou críticas ao anterior Executivo de António Costa por ter cessado funções “sem que o diploma estivesse elaborado ou houvesse qualquer projeto na pasta de transição”. Neste sentido, “o atual executivo concretizou a medida da forma mais justa e que traz mais segurança jurídica”, rematou.

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