Os quatro mil dias da Operação Marquês. Foi há dez anos que Sócrates foi detido mas julgamento sem previsão para começar
José Sócrates foi o primeiro ex-chefe do Governo a ser detido preventivamente em Portugal. Esteve 288 dias em preventiva e mais 42 dias em prisão domiciliária. Foi há dez anos que tudo começou.
O dia 21 de novembro de 2014 – há precisamente dez anos – ficou para a história quando o país foi confrontado, com a transmissão em direto pelas televisões, de José Sócrates a ser detido na manga de um avião no aeroporto de Lisboa e a entrar, rodeado de câmaras de televisão, no carro das autoridades policiais.
Horas depois, a PGR (à data Joana Marques Vidal) assumia que o ex-primeiro-ministro e outras três pessoas foram detidas por ordem do procurador Rosário Teixeira, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Em causa estavam os crimes de “fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção”. Sócrates tornava-se assim o primeiro político que tinha tido funções governativas suspeito de corrupção, no exercício desse cargo. Esteve 288 dias (quase um ano em preventiva) e mais 42 em prisão domiciliária. No total, feitas as contas, a conhecida Operação Marquês tornou-se pública há cerca de quatro mil dias. Dez anos anos depois, o julgamento ainda nem tem data marcada para começar e processo deixou de ser considerado urgente.
A 11 de outubro de 2017, o Ministério Público acusa José Sócrates de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada. No total, foram 28 arguidos acusados de um total de 189 crimes. Para além do nome sonante do ex-secretário geral do PS (que em 2018 decide desfiliar-se), o PGR acusou ainda o ex-banqueiro Ricardo Salgado, o antigo presidente da PT Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, ex-administrador da PT e o ex-ministro e antigo administrador da CGD Armando Vara.
O caso que se tornou um dos mais mediáticos da história da Justiça portuguesa ocupou manchetes e aberturas de telejornais durante anos. Mas só nove anos depois, a 25 de janeiro de 2024, é que o Tribunal da Relação decidiu que, sim, José Sócrates será julgado por 22 crimes, incluindo corrupção. Dez meses depois desta decisão, ainda nada aconteceu.
Nada tem sido célere na Operação Marquês, no que a Sócrates respeita. O inquérito demorou quatro anos e três meses, a instrução demorou quase um ano para começar e a decisão da mesma chegou dois anos e sete meses depois, pronunciando para julgamento apenas cinco desses arguidos e por apenas. 17 crimes. Uma decisão tomada por Ivo Rosa, polémica, e conhecida a 9 de abril de 2021.
Depois desta decisão – que separou do processo principal as acusações a Salgado e Vara para seguirem logo para julgamento -, o Ministério Público apresentou recurso do mesmo que só subiu à Relação de Lisboa no dia 17 de fevereiro de 2023, quase dois anos depois da decisão instrutória. A Relação de Lisboa decidiu então esse recurso a 25 de janeiro de 2024, quase um ano depois, e voltou a pronunciar para julgamento José Sócrates e mais 21 arguidos (17 individuais e quatro empresas) pela prática de 118 crimes, revertendo quase na íntegra a decisão de Ivo Rosa.
Ou seja: Henrique Granadeiro, Zeinal Bava, Joaquim Barroca, Helder Bataglia, Rui Horta e Costa, José Paulo Pinto de Sousa (primo de José Sócrates), o ex-diretor de Vale do Lobo Gaspar Ferreira (ex-diretor de Vale do Lobo), Luís Silva Marques e José Luís Ribeiro dos Santos (funcionários da Infraestruturas de Portugal), Gonçalo Trindade Ferreira (advogado), Inês do Rosário (mulher de Santos Silva), Sofia Fava (ex-mulher de Sócrates), e Rui Mão de Ferro (administrador de empresas) vão a julgamento. Isto além de José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva, Armando Vara e João Perna.
Para piorar este cenário, segundo avançou o Observador na terça-feira, os autos da Operação Marquês deixaram de ser urgentes desde 25 de janeiro — mesmo com o risco de prescrição de alguns crimes. Ou seja, a tramitação deixou de ser prioritária face a outros processos e para sempre que haja férias judicias.
Pelo meio, Armando Vara e Ricardo Salgado foram condenados. No caso do ex-ministro (que já tinha sido condenado no âmbito do processo Face Oculta), foi-lhe aplicada uma pena de dois anos de prisão efetiva, em 2021, por um crime de branqueamento de capitais, depois de ter sido julgado num processo autónomo. Estava inicialmente acusado de crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada. Já o ex-banqueiro Ricardo Salgado foi, em 2022, também condenado a seis anos de prisão por três crimes de abuso de confiança. Em 2023, o Tribunal da Relação agravou a medida, passando para oito anos de prisão. João Perna, ex-motorista de José Sócrates, foi também condenado. Apanhado na posse de arma proibida, Perna foi levado a julgamento por esse facto. Foi condenado a prisão domiciliária, que entretanto foi alterada para liberdade mediante a apresentação semanal às autoridades.
O que está no centro da investigação?
A Operação Marquês iniciou-se em 2014, depois de uma denúncia, no ano anterior, feita pela Caixa-Geral de Depósitos (CGD) à Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária, que dava conta de um possível esquema que teria rendido quase mais de meio milhão de euros a José Sócrates.
A investigação começou com os mais de 23 milhões de euros reunidos por Carlos Santos Silva, transferidos da Suíça para Portugal, primeiro em 2004 e, depois, em 2010 e 2011. O empresário – amigo próximo de Sócrates – tinha uma conta no Banco Espírito Santo (BES), em seu nome, que o Ministério Público (MP) acreditava servir para cobrir despesas feitas em nome de Sócrates. Além disso, o MP dizia na acusação que o ex-primeiro ministro recebia dinheiro em mãos e dispunha de verbas para pagar férias ou ter à sua disposição a casa de Carlos Santos Silva em Paris.
As suspeitas iniciais de corrupção recaíam apenas sobre o grupo Lena, pois o MP acreditava que o dinheiro na Suíça eram contrapartidas pelo favorecimento que Sócrates teria feito à construtora, enquanto responsável político, em obras ligadas ao TGV e à Parque Escolar. A investigação acabou por conseguir encontrar aquilo que considerou ser a origem do dinheiro, mantendo suspeitas de corrupção ligadas apenas a 2,9 milhões de euros de euros, que terão tido origem no grupo Lena, passando pela conta do administrador Joaquim Barroca. Foram também descobertos 12 milhões de euros que também passaram por contas na Suíça, controladas por Hélder Bataglia, administrador de uma empresa do Grupo Espírito Santo (GES), relacionada com o empreendimento de Vale do Lobo, no Algarve.
Cronologia de 2014 a 2024
2014
21 de novembro:
- José Sócrates é detido no aeroporto de Lisboa, quando chega de um voo proveniente de Paris. A Procuradoria-Geral da República (PGR) confirma que José Sócrates e outras três pessoas foram detidos num inquérito dirigido pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), que investiga “suspeitas dos crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção”.
22 de novembro:
- PGR revela a identidade dos outros três detidos: o empresário Carlos Santos Silva, o advogado Gonçalo Trindade Ferreira e o motorista de José Sócrates, João Perna.
- José Sócrates acompanha as buscas feitas à sua residência, sendo depois presente ao juiz Carlos Alexandre, no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), para primeiro interrogatório judicial, que se prolongou pelo dia seguinte.
24 de novembro
- Decretada prisão preventiva ao ex-primeiro ministro (ex-PM), ao seu motorista e a Carlos Santos Silva por suspeitas de crime económicos. Gonçalo Trindade Ferreira fica proibido de contactar com os restantes arguidos, de se ausentar para o estrangeiro, com a obrigação de entregar o passaporte, e de se apresentar semanalmente no DCIAP.
11 de dezembro
- O advogado de Sócrates entrega, no TCIC, um pedido de libertação do ex-PM, alegando que o prazo de duração do inquérito foi ultrapassado.
16 de dezembro
- STJ recusa apreciar o terceiro pedido para a libertação de Sócrates, considerando que o autor “não tinha interesse legítimo em agir”.
19 de dezembro
- Advogado recorre da prisão preventiva de Sócrates.
23 de dezembro
- O ex-motorista de Sócrates passa a prisão domiciliária.
2015
21 de fevereiro:
- O administrador da farmacêutica Octapharma Paulo Lalanda de Castro é constituído arguido, depois de ter sido ouvido, “a seu pedido”, pelo procurador Rosário Teixeira.
24 de fevereiro:
- Juiz decide manter José Sócrates e Carlos Santos Silva em prisão preventiva. João Perna vê a medida de coação de prisão domiciliária ser alterada para liberdade provisória, mediante apresentação semanal à autoridade policial.
17 de março:
- O TRL rejeita o recurso das medidas de coação, mantendo o ex-PM em prisão preventiva, por considerar que se verificam “fortes indícios dos crimes imputados e o perigo de perturbação da recolha e da aquisição da prova”.22 de abril:
- Joaquim Barroca, administrador do Grupo Lena, fica em prisão preventiva.
4 de setembro:
- Sócrates passa para prisão domiciliária depois de 288 dias detido em prisão preventiva.
16 de outubro:
- José Sócrates é libertado, mas fica proibido de se ausentar de Portugal e de contactar outros arguidos.
Carlos Santos Silva deixa de estar em prisão domiciliária.
23 de outubro:
2016
21 de abril:
- A ex-mulher de José Sócrates, Sofia Fava, é constituída arguida por suspeitas de fraude fiscal e branqueamento de capitais.
26 de abril:
2017
14 de janeiro:
- O empresário luso-angolano Hélder Bataglia apresenta-se voluntariamente no MP para um interrogatório complementar.
18 de janeiro:
- O ex-presidente do BES Ricardo Salgado é interrogado pelo MP depois de ter sido constituído arguido por suspeitas de corrupção, abuso de confiança, tráfico de influência, branqueamento e fraude fiscal qualificada, ficando impedido de se ausentar para o estrangeiro sem autorização prévia e proibido de contactar com os outros arguidos do processo.
8 de fevereiro:
- Rui Horta e Costa renuncia ao cargo de administrador não-executivo dos CTT após ser arguido por suspeitas de corrupção ativa, fraude fiscal, branqueamento e abuso de confiança.
24 de fevereiro:
- Os antigos gestores da Portugal Telecom Henrique Granadeiro e Zeinal Bava são arguidos por suspeitas de fraude fiscal, corrupção passiva e branqueamento de capitais.
7 de março:
- O administrador do Grupo Lena Joaquim Paulo da Conceição e a empresa Lena SGPS são arguidos.
17 de março:
- A PGR anuncia a constituição de 28 arguidos e decide prolongar o prazo de investigação.
27 de abril:
- A PGR decide prorrogar por três meses o prazo para conclusão do inquérito da Operação Marquês, a contar da data de junção ao processo da última carta rogatória a ser devolvida. José Sócrates critica o prorrogamento pelo MP, “pela sexta vez”, do prazo de inquérito, considerando tratar-se de uma “perseguição” de “um departamento estatal da caça ao homem”.
29 de agosto:
- A decisão do MP sobre a Operação Marquês deverá ser conhecida até 20 de novembro.
30 de agosto:
- O vice-procurador-geral da República dá um prazo de 45 dias para que o diretor do departamento “preste informação sobre o estado” do inquérito.
11 de outubro: a acusação
- O MP acusa José Sócrates de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada. Uma nota da Procuradoria dá conta da acusação dos 28 arguidos por um total de 189 crimes, e indica que o Carlos Santos Silva foi acusado de 33 crimes, entre os quais corrupção passiva de titular de cargo político, corrupção ativa de titular de cargo político, branqueamento de capitais, falsificação de documento, fraude fiscal e fraude fiscal qualificada. O banqueiro Ricardo Salgado é acusado de 21 crimes: corrupção ativa de titular de cargo político, corrupção ativa, branqueamento de capitais, abuso de confiança, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada. O antigo presidente da PT Zeinal Bava está acusado de cinco crimes de corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada. Henrique Granadeiro, ex-administrador da PT, está acusado de corrupção passiva (um crime), branqueamento de capitais (dois), peculato (um), abuso de confiança (um) e fraude fiscal qualificada (três). O ex-ministro e antigo administrador da CGD Armando Vara é acusado de corrupção passiva de titular de cargo político (um), branqueamento de capitais (dois) e fraude fiscal qualificada (dois).
12 de outubro:
2018
4 de maio
- José Sócrates anuncia que pediu a desfiliação do Partido Socialista para acabar com um “embaraço mútuo”, após críticas da direção que, na sua opinião, ultrapassam os limites do aceitável.
7 de setembro
- 19 arguidos pedem a abertura de instrução. São eles José Sócrates, Armando Vara, Carlos Santos Silva, Bárbara Vara, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, Gonçalo Trindade Ferreira, Joaquim Barroca, Paulo Bernardo Pinto de Sousa, Sofia Fava, Rui Mão de Ferro, Helder Bataglia, José Diogo Rocha Vieira, Papelan, Vale de Lobo Resort, Oceano Clube e grupo Lena.
28 de setembro: O juiz Ivo Rosa é escolhido por sorteio eletrónico para dirigir a fase de instrução.
25 de outubro:
- A instrução do processo vai começar na última semana de janeiro de 2019, com audiências nos três últimos dias de cada mês decidiu Ivo Rosa.
2019
28 de janeiro:
- A instrução começa no TCIC com o interrogatório de Bárbara Vara, filha do ex-ministro Armando Vara, e segundo o seu advogado a arguida respondeu “às perguntas que lhe foram feitas” e foi fiel ao que alegou anteriormente.
4 de novembro:
- Termina o interrogatório de Sócrates, que durou cinco dias, com o arguido a reiterar que a acusação é “monstruosa, injusta e completamente absurda”, e que mantém o mesmo espírito de repor a verdade para que não fique “pedra sobre pedra” da acusação.
2020
- 5 de março:
O procurador Rosário Teixeira pede para que todos os 28 arguidos sejam julgados, após mais de quatro horas e meia de
2021
9 de abril
- O juiz Ivo Rosa anuncia a decisão que reduz a cacos a acusação do Ministério Público. Sócrates é pronunciado pelos crimes de branqueamento e falsificação, mas os crimes de corrupção desaparecem. Carlos Santos Silva, que na tese do MP era o testa de ferro de Sócrates, passa a ser o corruptor para ato não determinado, já prescrito. Zeinal Bava, Sofia Fava, Henrique Granadeiro, Joaquim Barroca, Helder Bataglia, Rui Mão de Ferro e Gonçalo Trindade escapam ao julgamento.
Rosa arquivou 172 dos 189 crimes de que os arguidos estavam acusados
13 julho
- Vara é o primeiro a ser julgado e é condenado a dois anos e meio de prisão por branqueamento de capitais. Já tinha sido condenado no processo Face Oculta e teve de cumprir cerca de cinco anos de prisão.
2022
7 março:
- Ricardo Salgado é condenado a seis anos de prisão por abuso de confiança. O tribunal admite que o ex-banqueiro sofre de Alzheimer, mas entende que isso não afeta a sua defesa. O Tribunal da Relação de Lisboa irá agravar a pena em mais dois anos. Salgado recorreu e está em liberdade.
2023
19 de abril
- O Tribunal da Relação de Lisboa dá razão a um recurso de Sócrates e dá-lhe um prazo de 120 dias para arguir nulidades da decisão instrutória de Ivo Rosa, o que tinha sido negado por este juiz de instrução. Como consequência, os crimes de falsificação estão condenados à prescrição.
2024
25 janeiro:
- O Tribunal da Relação de Lisboa repõe grande parte da acusação e todos os 28 arguidos vão a julgamento. Sócrates será julgado por 22 crimes, incluindo três de corrupção.
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