Exclusivo Tribunal declara “inconstitucional” lei que limita regresso da Função Pública à Caixa Geral de Aposentações

Decisão judicial contraria diploma interpretativo, com origem no Governo e viabilizado pelo Parlamento, e dita o direito à reintegração de um professor que saiu e depois voltou à escola pública.

Já há decisões judiciais a declarar a “inconstitucionalidade” da lei interpretativa que restringe a subscrição de funcionários públicos na Caixa Geral de Aposentações (CGA) por “violação do princípio da confiança”. Uma dessas sentenças emanou do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel e determinou a reinscrição de um professor no subsistema de proteção social convergente com efeitos a 20 de outubro de 2009, segundo o acórdão a que o ECO teve acesso.

Este juízo diz apenas respeito à situação em particular, não se podendo aplicar a outras, mas, após três julgamentos desta natureza, o plenário do Tribunal Constitucional (TC) tem de se pronunciar e decidir se elimina ou não a norma do ordenamento jurídico, esclareceu ao ECO o professor de Direito Constitucional da Universidade Católica, Tiago Duarte.

No caso de os juízes do Palácio de Ratton concluírem pela inconstitucionalidade geral, a lei cai e volta a regra que permite o reingresso sem limites de trabalhadores à CGA que tinham sido subscritores antes de 1 de janeiro de 2006, data em que o sistema foi encerrado, deixando de aceitar novos registos.

O tribunal de Penafiel pronunciou-se no início deste ano sobre o caso de um docente que começou a lecionar em 2001, tendo sido admitido na CGA nesse mesmo ano. Exerceu funções em várias escolas, tendo iniciado e cessado contratos. Entre 2004 e 2009, interrompeu a atividade letiva e depois regressou à escola pública, mas foi-lhe recusado o pedido para se reinscrever na CGA, cujo regime é mais favorável do que o da Segurança Social designadamente no pagamento de baixas médicas.

Face aos vários acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA) favoráveis ao regresso de trabalhadores à CGA, o professor solicitou ao tribunal a extensão dos seus efeitos ao seu caso. O juiz acabou por lhe dar razão e a decisão foi proferida a 31 de janeiro deste ano, já depois da lei de dezembro do ano passado que restringe o registo de funcionários públicos que saíram e voltaram a trabalhar para o Estado.

O número 2 do artigo 2.º da Lei n.º 45/2024 de 27 de dezembro deve ser desaplicado por inconstitucionalidade, nomeadamente por violação do princípio da confiança.

Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel

O número 2 do artigo 2.º da Lei n.º 45/2024 de 27 de dezembro deve ser desaplicado por inconstitucionalidade, nomeadamente por violação do princípio da confiança”, de acordo com a sentença. O acórdão contesta o diploma, com origem no Governo e aprovado pelo Parlamento, que meteu um travão à reinscrição de trabalhadores no subsistema de proteção social convergente. Essa lei procede a uma “interpretação autêntica” das regras que permitem que funcionários voltem à CGA, depois de um hiato em que saíram por terem deixado de trabalhar para o Estado.

De salientar que o subsistema de proteção social deixou deixou de aceitar novos subscritores desde 1 de janeiro de 2006. Ou seja, apenas os trabalhadores que estavam inscritos em data anterior podem regressar à CGA quando voltem a exercer funções na Administração Pública.

O artigo, declarado inconstitucional e que contraria vários acórdãos de tribunais superiores, estabelece que só é possível a reinscrição de funcionários públicos quando se verifique que não existiu descontinuidade temporal na prestação de trabalho ao Estado ou, existindo, se comprove que foi involuntária, limitada no tempo e justificada pelas especificidades próprias da carreira. Para além disso, é preciso comprovar que o funcionário não exerceu atividade remunerada durante o período em que interrompeu o vínculo público.

“O legislador viola a confiança legítima dos particulares e, consequentemente, o princípio da proteção da confiança, quando decide introduzir, em 2024, inovações na Lei n.º 60/2005, sem qualquer consideração pelos efeitos já constituídos, sem qualquer consideração pela jurisprudência que, de forma reiterada e constante, vinha atribuindo aos professores o direito à inscrição na Caixa Geral de Aposentações a quem antes de 1 de janeiro de 2006, estivesse inscrito nesse regime de providência”, conclui o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

“E dizemos que a jurisprudência o vinha atribuindo sem distinções de hiatos temporais, sem cuidar de saber se teve essa relação jurídica de emprego público durante muito ou pouco tempo, involuntariamente ou voluntariamente, se recebeu ou deixou de receber, se os hiatos temporais se justificam ou não ‘pelas especificidades próprias da carreira em que o funcionário ou agente está inserido’, porque tais requisitos não constam da jurisprudência conhecida”, reforça o tribunal.

Assim, o entendimento deste tribunal de primeira instância é que, “quando um sujeito cesse o vínculo laboral e celebre um novo, tal não se considera como sendo ‘iniciar funções'”, tal como resulta do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 6 de março de 2014.

Ora o professor estava inscrito na CGA antes de o sistema ter deixado de aceitar novos subscritores, “logo, a partir do momento em que volte a constituir uma relação jurídica que, anteriormente a 31 de dezembro 2005, lhe conferisse o direito à inscrição na CGA, terá direito ser reinscrito”, de acordo com a mesma decisão. “A jurisprudência não exige qualquer outro requisito. Diga-se que se verifica a identidade da situação pelo menos em relação a cinco decisões de tribunais superiores”, refere o tribunal.

A lei em causa e mais concretamente o número 2 do artigo 2.º veio introduzir requisitos novos, que a jurisprudência não previa, e que não se podem retirar da letra da norma interpretada […] é uma falsa norma interpretativa.

Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel

“A lei em causa e mais concretamente o número 2 do artigo 2.º veio introduzir requisitos novos, que a jurisprudência não previa, e que não se podem retirar da letra da norma interpretada”, lê-se no relatório. Por isso, o tribunal conclui que “o número 2 do artigo 2.º da Lei n.º 45/2024 “é uma falsa norma interpretativa”.

Há ainda o “problema jurídico” da retroatividade do diploma em causa, embora o mesmo indique que não se aplique a decisões transitadas em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor: “Esta lei produz efeitos a partir da entrada em vigor da Lei n.º 60/2005 de 29 de dezembro. As normas contidas neste diploma visam por isso ser aplicadas retroativamente a situações de facto já constituídas e inclusive a ações judiciais pendentes”.

Uma vez que a lei retroage a situações anteriores, o princípio inviolável da proteção de confiança fica ferido de inconstitucionalidade. “O Tribunal Constitucional explica, no seu acórdão n.º 310/2021, que o princípio da proteção da confiança constitui um dos invólucros jurídicos que o ordenamento jurídico e seu edifício não deixarão de dispensar aos valores da estabilidade, da segurança e da confiabilidade”, argumenta o juiz que assina a sentença.

“Estão em causa valores que, merecedores de um reconhecimento indubitável e de uma proteção acrescida, são erigidos à categoria de bens jurídicos fundamentais, constituindo-se em cânones orientadores que devem enformar todos os atos dos poderes públicos, principalmente os que encerrarem conteúdo decisório. Ideia fundamental a reter é a de que não devem ser permitidas alterações jurídicas com as quais, razoavelmente, os arguidos/reclusos não podem contar e que introduziriam na respetiva esfera jurídica desequilíbrios desproporcionais”, refere o tribunal de Penafiel citando o mesmo acórdão do Palácio de Ratton.

Diploma arrisca ser eliminado ao fim de três sentenças

O tribunal, ao declarar a inconstitucionalidade da lei que limita a reinscrição na CGA, “obriga o Ministério Público a recorrer para o Tribunal Constitucional e, até chegar a uma decisão, são suspensos os efeitos da sentença da primeira instância“, explica ao ECO o constitucionalista Tiago Duarte.

O coletivo de juízes pode confirmar o juízo do tribunal administrativo, “que se aplica exclusivamente àquele caso em concreto, ou seja, não tem efeitos gerais”, refere. “Se considerar que não é inconstitucional, força o tribunal a refazer a sentença”, impedindo assim a reinscrição daquele trabalhador na CGA, acrescenta.

E quando é que a declaração de inconstitucionalidade ganha força geral? “Após três decisões de inconstitucionalidade”, que cheguem ao Palácio de Ratton “por recurso do Ministério Público, o Tribunal Constitucional tem de reunir todos os seus 13 juízes e decidir se de facto aquela norma viola efetivamente a lei fundamental. Se considerar que é realmente inconstitucional, então a norma tem de ser eliminada do ordenamento jurídico”, esclarece.

A polémica em torno da reinscrição de funcionários públicos no regime de proteção social convergente estalou ainda durante o anterior Governo socialista de António Costa, quando suspendeu uma circular da CGA, de julho de 2023, que permitia que os trabalhadores voltassem ao sistema. O Executivo da altura justificou a decisão com a necessidade de avaliar primeiro os impactos orçamentais daquela orientação, o que mereceu forte contestação por parte dos sindicatos, nomeadamente da Federação Nacional dos Professores (Fenprof).

Mas os tribunais continuaram a dar razão aos funcionários públicos. O atual Executivo de Luís Montenegro quis pôr termo a este braço de ferro e avançou, inicialmente, com um decreto-lei, que foi travado pelo Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa decidiu “devolver sem promulgação”, exigindo ao Governo uma proposta de lei a submeter à Assembleia da República. Os deputados acabaram por aprovar o diploma em outubro do ano passado com os votos contra do PS, Iniciativa Liberal, BE, PCP e Livre e a favor de PSD, CDS e Chega. A 27 de dezembro de 2024, a norma foi publicada em Diário da República.

Uma das razões que levou os funcionários públicos a querer voltar à CGA tem a ver com o regime das baixas por doença, que é mais benéfico do que o da Segurança Social. Assim, na Caixa Geral de Aposentações, nos três primeiros dias de incapacidade, não há direito a compensação alguma, sendo que a partir do 4.º e até ao 30.º dia de baixa o trabalhador recebe 90% do ordenado. Na Segurança Social, os primeiros três dias também não são remunerados, mas a partir daí e até ao 30.º dia, o subsídio corresponde a apenas 55% do salário.

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