Exclusivo Depois do boom é agora o ‘bang’ das entregas de mercearia em casa?
Incerteza económica – a inflação, os custos dos combustíveis, a guerra na Ucrânia – está a causar estragos nos planos de negócio e poderá levar a novos movimentos de concentração.
Primeiro foi o boom das entregas de comida e mercearia ao domicílio, mas depois do ‘desconfinamento’ mundial, mesmo após rondas de investimento de vários milhões, algumas das startups unicórnio ou decacórnio estão a cortar estrutura ou a colocar em pausa planos de expansão em Portugal. Depois do boom, estaremos a assistir ao bang nas entregas ultra-rápidas? A incerteza económica – a inflação, os custos dos combustíveis, a guerra na Ucrânia – está a causar estragos nos planos de negócio e poderá levar a novos movimentos de concentração. A Glovo e a Uber Eats garantem que o negócio está bem e recomenda-se. A Bairro está a reorganizar.
“Essa incerteza impacta a dinâmica de investimentos de capital de risco e, como tal, as empresas estão a mudar a sua estratégia, focando-se em mitigar risco e em aumentar runway. Em muitos casos isto resulta num abrandamento dos planos de expansão que não tenham previsão de resultados a curto prazo”, aponta Pedro Santos Vieira, managing partner da Shilling.vc.
A Bairro é a mais recente plataforma de entregas a avançar com uma reorganização. “Tendo em conta o contexto atual e o consequente abrandamento do ritmo de investimento, realizámos uma reestruturação do negócio, que se traduz na reorganização das dark stores e da respetiva equipa, através de uma parceria estratégica com um marketplace, cujos detalhes serão anunciados em breve”, adianta fonte oficial quando contactada pela Pessoas, sem mais detalhes sobre o impacto da reestruturação.
Há um ano a plataforma tinha fechado uma ronda de 1,2 milhões de euros junto a investidores russos e os planos passam por expandir em Lisboa, chegar ao Porto até ao final do ano e, mais tarde, a todo o país. O plano de negócios passava ainda pela entrada em Espanha e mercados vizinhos.
“Estamos a captar novo investimento para continuar com a nossa missão de melhorar a vida dos portugueses, analisando novas aberturas de acordo com o contexto económico, e mantemos o foco em ser a primeira opção na entrega de compras de última hora no país”, diz a mesma fonte.
Dois meses depois de levantar 768 milhões de dólares, elevando a sua avaliação para cerca de 12 mil milhões de dólares, a decacórnio turca Getir anunciou no final de maio um corte de 14% da força de trabalho a nível global, devido ao “aumento da inflação e a deterioração das perspetivas macroeconómicas em todo o mundo”, afetando cerca de 4.500 colaboradores.
A onda chegou a Portugal meses depois, levando a empresa, que opera em Lisboa com quase 200 colaboradores, a fazer “ajustes”, focando “o seu atendimento em menos lojas”. “Esta decisão implicou alguns ajustes devido às necessidades do negócio e alguns contratos a termo não foram renovados”, adiantou em julho fonte oficial à Pessoas.
E a Bolt Market também colocou em pausa os planos de expansão em Portugal. As metas para 2022 eram “ambiciosas” mas menos de um ano depois de ter arrancado com o serviço de entregas de mercearia em Portugal, a Bolt Market colocou em pausa a expansão do serviço e “não há previsão de data para a abertura de novas lojas”. “Há primeiro que garantir uma consolidação do negócio na capital”, justificou Manuel Castel-Branco, responsável pela Bolt Market em Portugal, à Pessoas.
Em abril, tinha sido a vez da empresa online de entrega de refeições ao domicílio, Just Eat Takeaway.com, anunciar que ia deixar de funcionar em Portugal e na Noruega, depois destes dois mercados terem gerado uma perda de EBITDA de cerca de 10 milhões de euros por ano.
Abrandamento da economia a afetar negócio?
Num momento em que os consumidores já não têm os movimentos limitados pela pandemia, estarão estes negócios menos interessantes para os investidores?
“Não diria que se tornaram menos atrativos pós-pandemia mas sim que, ao fim de cerca de uma década de vários investimentos e experiências no setor, começa, sem dúvida, a existir mais atenção dos investidores às verdadeiras unit economics das empresas neste espaço, altamente subsidiadas no seu início por capital de risco, com base na crença de que era preciso atingir escalas grandes para ter um negócio viável (sendo que essas escalas foram na maioria dos casos obtidas com unit economics insustentáveis a longo prazo)”, diz Pedro Santos Vieira.
“Os negócios relacionados com serviços de entrega, muito mais quando se trata de um mercado global de consumo, podem trazer valor acrescentado aos seus investidores sempre e quando a sua ambição e os seus planos de crescimento vão ao encontro das necessidades dos seus clientes”, reforça o managing partner da Shilling.vc
Na Glovo Express o negócio está a crescer de “forma sustentada”, garante Joaquín Vázquez, general manager Glovo em Portugal. “O negócio de pequenos armazéns Glovo — Glovo Express — tem corrido muito bem em Portugal, desde a sua abertura em 2020. O negócio tem evoluído de forma sustentada e o que a pandemia trouxe foi apenas o acelerar de um crescimento que se iria verificar a médio prazo. Numa altura chave do negócio, fizemos uma parceria estratégica com a Stoneweg para a expansão e no primeiro semestre verificámos um crescimento de perto de 200% em número de pedidos, quando comparado com período homólogo em 2021″, refere.
E, apesar de não revelar dados sobre o mercado português, o mesmo diz a Uber Eats. “Assistimos a um crescimento acelerado do mercado de entrega ao domicílio globalmente, uma tendência que foi verificada também no mercado português”, diz fonte oficial da Uber Eats. Globalmente, “no primeiro trimestre de 2022, o valor das entregas do Uber Eats subiu 15% face ao período homólogo. No segundo trimestre, o valor das entregas voltou a subir 12% face ao período homólogo para os 13,9 mil milhões de dólares”.
E a expansão não abrandou. No início da pandemia em 2020, a aplicação cobria 40% da população portuguesa, estando disponível em mais de 40 cidades, hoje cobre mais de 75% da população e está em mais de 90 cidades. “O Uber Eats continuou a expandir a sua operação no território nacional no primeiro semestre de 2022”, garante fonte oficial e este verão criaram “mais de 50 pontos de pick-up virtuais nas praias portuguesas de Norte a Sul e Ilhas do país para otimizar o encontro com o estafeta e agilizar a entrega” e estrearam “um formato pop-up nas áreas das praias de Caminha, Vila Praia de Âncora e Moledo.”
Neste momento estamos a estudar diversos locais para continuar a nossa expansão em Portugal.
Planos de crescimento da área de entregas de produtos mercearia que também estão a ser implementados pela Glovo. Atualmente, a empresa tem nove armazéns em Portugal – sete na área metropolitana de Lisboa (três no centro da cidade, um na Reboleira, um em Oeiras e um em Almada) e dois no Porto, para assegurar o serviço Glovo Express.
“A estratégia que temos implementado tem sido testar as áreas de atuação e assim que a operação estiver estabelecida em determinado local, transitamos para armazéns com maiores capacidades de espaço e equipamento (frigoríficos e congeladores walk-in, por exemplo)”, descreve Joaquín Vázquez. “Neste momento estamos a estudar diversos locais para continuar a nossa expansão em Portugal”, assegura o responsável da Glovo em Portugal.
Inflação e movimentos de fusão?
Com a taxa de inflação a crescer, não estarão os consumidores a alterar os seus padrões? Que impacto está a ter no negócio?
“A subida da inflação impacta tanto a montante, no preço das mercadorias compradas e transportadas – e num eventual conservadorismo no que toca ao consumo –, e também no preço da prestação do próprio serviço de entrega, com todas as despesas de combustível, logística e serviço que lhes estão associadas. A inflação tem, de resto, um impacto direto na forma como olhamos para o consumo e como consumimos. E no quanto consumimos, obviamente”, comenta Pedro Santos Vieira, managing partner da Shilling.vc
Por enquanto, esse impacto ainda não está a afetar os padrões. “A evolução dos preços dos nossos parceiros disponíveis na aplicação segue necessariamente a evolução dos preços na economia como um todo. Por enquanto, o comportamento de consumidores, retalhistas e estafetas manteve-se estável”, diz fonte oficial da Uber Eats.
Com uma maior prudência, resultado da subida generalizada da inflação, acredito que os movimentos de fusão e aquisição serão mais frequentes, ainda que cautelosos, numa lógica alinhada com a retração que se verifica no mercado.
Já a Glovo refere algumas alterações na cadeia. “A nível de fornecimento temos sentido algum impacto. Os fornecedores têm alterado os preços com maior frequência, nomeadamente em todos os produtos relacionados e/ou produzidos com matéria-prima escassa. Em relação ao consumo, é importante compreender que este é um momento de consumo de alta conveniência tanto pela rapidez de entrega como também pelo tipo de produtos disponíveis. A maior diferença que sentimos são cestas com um número ligeiramente menor de unidades, apesar de termos um aumento no número de pedidos“, assegura Joaquín Vázquez.
E terá impacto na criação de emprego? “Acreditamos que, num cenário onde os custos de vida estão a aumentar e de instabilidade económica, o acesso a oportunidades de trabalho flexível e imediatas que permitam obter rendimentos adicionais para ajudar a fazer face ao impacto económico da inflação poderá ser ainda mais importante“, considera a Uber Eats.
O impacto das plataformas na criação de emprego é evidenciado pelos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Entre 2017, ano em que as plataformas de entregas ao domicílio chegaram a Portugal, e 2020, apenas na categoria de “Outras atividades postais e de courier”, “o emprego mais do que duplicou, tendo sido criados mais de cinco mil postos de trabalho líquidos, mais de quatro mil empresas, e tendo a faturação do setor aumentado 62%,” lembra fonte oficial da Uber Eats, citando dados de março do INE.
Mas face ao atual momento económico de “maior conservadorismo no investimento”, como lhe chama Pedro Vieira da Shilling.vc, iremos assistir a mais movimentos de fusão entre plataformas? A Glovo – que comprou o português Mercadão (que assegura, por exemplo, as compras de mercearia do Pingo Doce) e a Lola Market – viu, em julho, concluída a sua aquisição pela Delivery Hero – plataforma estima atingir break-even do EBITDA ajustado no terceiro trimestre de 2022 e gerar entre 40 a 120 milhões no quarto trimestre, atingindo EBITDA ajustado positivo em 2023, segundo os últimos dados financeiros.
A Just Eat/Takeaway – que saiu em abril de Portugal – fechou em meados de agosto a venda dos 33,3% que detinha no iFood à holandesa Prosus por cerca de 1,5 mil milhões de euros, valor a que acresce mais 300 milhões, dependendo dos resultados da companhia nos próximos 12 meses.
Pedro Santos Vieira da Shilling.vc acredita que este tipo de movimentos não ficará por aqui. “Com uma maior prudência, resultado da subida generalizada da inflação, acredito que os movimentos de fusão e aquisição serão mais frequentes, ainda que cautelosos, numa lógica alinhada com a retração que se verifica no mercado.”
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